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NO ALTO

Eu nasci no alto. Vento e chuva. Ao longe eu podia ver as montanhas do Pico do Jaraguá. Era minha primeira visão de manhã. Da porta da cozinha eu o via. Às vezes claro e brilhante, o sol lhe dando um prateado de joia. Outras manhãs mal se podia ver, o vulto cinzento envolto em chuva ou em névoas de inverno. Mais bonito era quando o Pico surgia todo verde, risonho como uma criança brincando. Mas havia mais: da frente de casa eu via o Morumbi e à direita "a cidade". O Morumbi era uma terra de Tom Sawyer, um Missouri de sonho onde havia córregos com peixinhos, lagos com tartarugas e cobras escondidas em montes de capim alto. Cada rua era uma aventura a espreita. Naquela havia uma velha bruxa, na outra um bando de pedreiros bêbados. A rua onde se corria de kart, a outra onde o Circo montou praça, e a do Moacyr Franco e do Roberto Carlos. Excursões que eu fazia. Um bairro tão pacato, uma vida tão familiar, que na casa do meu primo se entrava pela piscina, pois ela não era cercada e da rua voce andava direto para a água. Era 1969 e na minha casa meus amigos entravam sem avisar, quando eu percebia o Valtinho já estava entocado no porão. -------------- Era alto e de lá eu ouvia radinhos de pilha no jogo do São Paulo, Gerson e Pedro Rocha. Ou, andando pelas ladeiras, eu ouvia os rádios das donas de casa, nas cozinhas, no Silvio Santos que falava com suas colegas de trabalho pelo telefone. Era alto, casas lá longe, casas brotando, aviões vindo distantes, urubus, helicópteros, um disco voador. Meu pai, homem criado nos montes, sempre disse: More no alto, nunca no baixo. No alto há largueza, há o que ver. No baixo voce sufoca. Abra a janela na baixada e veja outra janela ou uma rua sem graça. Abra a janela no alto e veja o céu, a Lua ou uma montanha distante. Cães que latem a quilômetros daqui. ------------------- De quando nasci até meus 36 anos eu sempre vivi no alto. Da minha segunda casa eu olhava o Alto de Pinheiros e Perdizes inteiros. O inverno chegva em cheio na cara da casa, como um tapa. O verão tinha um céu tão vasto como aquele da praia. ( Única baixada que vale é a do mar ). Pois agora eu voltei para a parte alta do bairro e a diferença é imensa. Agora eu gosto de ver e de andar, pois há o que ver e onde andar. A chuva vem caindo do céu e não cai entre paredes, cai lá de cima. Quando olho pela janela não vejo outra janela, vejo o vazio, e que saudade eu tinha do vazio! Não é uma montanha, mas é meu alto. E eu me sinto de volta. Amém.

A RAIZ DA VIDA

Estou numa praça onde vejo gente passar. Alguns ainda usam máscara, a expressão de bicho amestrado na cara. Um pastor australiano corre atrás de uma bola. Pega-a e a traz de volta a seu amo. Se deita sobre a grama e paralisado espara por um novo lançamento da bola. Ele irá repetir isso pelo tempo que o amo assim desejar. Não, este não é um post sobre gente amestrada. É sobre eu e voce. -------------- Quantos anos, séculos, foram precisos para que se fixasse nesse cão o comportamento, automático, de olhar com atenção, aguardar, buscar, trazer, vigiar? Hoje ele faz tudo isso sem pensar e eu sei que fazendo esses atos ele se sente CONFORTÁVEL CONSIGO MESMO. Está gastando uma energia que habita dentro dele. Um desejo que faz parte dele mesmo. Para ser ele, inteiro, ele necessita vigiar-correr-buscar-reunir-guardar. Pois...... sentado sobre a grama eu observo esse cão. E as pessoas que passam. Estou só, em busca do silêncio em mim mesmo. Fecho os olhos e ouço: o vento nas folhas, vozes distantes, cães arfando. O sol queima meus ombros nús. Eu estou lá. Saibam: vivo faz já 60 anos e em todo esse tempo, estar sentado ao ar livre, debaixo do sol, pacientemente deixando o tempo passar como preguiça, é a coisa que mais fiz. Seja numa rua, no quintal, na praia, na escola, ficar parado, olhando o que se pode ver ao meu redor, nuvens indo e vindo, vento e mormaço, é o ato onde me sinto mais EM CASA. Sempre fui, desde que nasci, e sou, capaz de passar um dia inteiro na contemplação daquilo que para os outros é o nada e para mim é a vida. Preguiça? Talvez. ----------------- Ficar dentro de casa, debaixo de teto e entre paredes sempre foi para mim insuportável. Fico triste quando sou obrigado a ficar mais de 6 horas sem poder ir para fora. Pois....volto para casa, vindo da praça e vejo minha mãe. E o óbvio se revela: pastorear. Por centenas de anos meus antepassados viveram olhando as cabras a comer a relva ou a beber água. Eu os repito. O mato, o sol, o vento e eu ali, guardando. Sem saber eu pastoreio. Conduzo os bichos com meu cajado, protejo-os dos lobos, aguardo. Me deito e olho as nuvens e prevejo a chuva. Toda manhã, todo dia, o mesmo e outro. Fecho os olhos e os ouço balir, mastigar, chamar, os passos que se afastam, que voltam. Quantos séculos eles não viveram isso? Os seus talvez tenham sido caçadores, ou construtores, ou soldados, os meus foram pastores. Leite e queijo, peles e carne. Cão ao lado, andar por caminhos, levar para beber, ver parir, matar. --------------- No trabalho, 2022: crianças ao meu redor, eu as vigio, eu as guardo eu as conduzo. Sendo pastor não sou necessariamente feliz, mas estou confortável. Sou aquilo para o que fui treinado. Essa a raiz.

DA ALEGRIA

O sol. As ruas pareciam sorrir mas de fato elas brilhavam às 8 da manhã. Detrás dos balcões, das lojas pequenas, material de construção, botecos, uma única farmácia, roupas, comidas, os vendedores sorriam, solícitos. Carros corriam sobre o asfalto seco. Minha pele cheirava à banho, o cabelo ainda molhado, a camiseta solta deixava respirar. Eu amava e naquele tempo amar era uma felicidade, mesmo que a menina não soubesse quem eu era. Isso porque amor me fazia sentir vivo, dono da vida. Ele abria meus olhos, meu coração dançava e tinha planos. Na escola não haveria aulas, íamos apenas para ver as notas. Eu sabia já ter sido aprovado. Meus amigos estavam lá: Carioca, Tinho, Diógenes. O riso, a atenção, a companhia. Nós quatro explodíamos de hormônios. Quando nos avistávamos dávamos pulos, ríamos, gritávamos. Não pensávamos em fazer tipo, não havia medo de parecer bobo ou de ser "amigo demais", nada de tentar ser cool, a gente simplesmente sentia. E assim, eu amava aqueles caras como amava aquela manhã e como amava a Aninha. Tudo era amor, tudo era estar estando. --------------- Surgiu Aninha, sempre com Clara ao seu lado. O cabelo preso em um rabo de cavalo, franja, o corpo magro em seus 15 anos de idade. Assim que a vi meu coração pulou. Calor no rosto, respiração difícil, pernas bambas, pensamentos de alegria, suor nas mãos. Era amor como é: o mundo parecia ser perfeito porque ela era parte dele. Eu era feliz por saber que ela existia, então tudo fazia sentido. Ela tinha uma bola de volei nas mãos e logo foi jogar. Era a melhor jogadora da escola, era a capitã do time, eu era talvez o pior, odiava volei. Carioca jogava bem. Enquanto eles jogavam andei pela escola sem rumo, ainda feliz, com Tinho e Diogenes. Os outros estavam por lá: Persio, Flaminio, Renata, Nivaldo, Jorginho, Japa, Tamanduá, Giba, Fábio, Demétrios. A cantina do Mi, a sala da direção onde estava a Patricia, o sol cada vez mais forte. Fomos, após o fim do volei, à Faria Lima, correndo pela rua por todo o caminho, quatro moleques com rostos de sol da manhã. Dávamos tapas nos postes, arrancávamos folhas das árvores, atravessávamos o sinal bem devagar, só para irritar os motoristas. O mundo era nosso, a gente sabia disso. O fliperama já estava cheio, as luzes das máquinas na escuridão da sala barulhenta. Eu adorava o Space Invaders. Compramos fichas, o dia parecia leve como brisa. Depois, no Cal Center, Carioca comprou uma camiseta e mandou estampar ela. Coisa bem do Rio, blusa branca com estampa de praia. Toda cheia de brilho. Voltamos pra escola, agora já meia vazia. Passamos ao lado da rua de Aninha, a rua mais bonita do mundo todo. Bertoldi Bianchi. Diziam que uma menina chamada Bethânia gostava de mim, queria me beijar, mas eu não sabia o que fazer, ficava perdido, ela era bonita e tinha seios grandes, mas ela não era Aninha. Carioca ficava irritado porque ela era amiga da menina que ele gostava, uma loirinha bonita, quieta, Ligia. Ele beijou a Ligia, mas para mim, beijar era algo tão misterioso como a luz de uma estrela ou o voo de uma águia. Eu evitava Bethãnia. Mesmo em um mundo alegre existe um problema confuso. -------------------- Fomos almoçar no bar de meu pai, rua Cunha Gago. Lotado de clientes, peguei coxinhas para eles e sorvetes. Carioca, sempre lembrando sua cidade de origem, mergulhou o picolé de coco num copo de Fanta laranja. Açucar em grau máximo. Nós quatro falávamos das meninas, ansiosos pelas alegrias que iriam vir no ano seguinte. Nenhum deles sabia de Aninha, eu os escutava e não falava muito de mim, na verdade eu falava besteiras, minha capacidade de falar sem nada dizer era infinita. Na calçada gente com sacolas e pacotes, não é fantasia minha não, se comprava muito presente no Natal. Era pacote até para o entregador de contas de luz. -------------------- Um passeio pela loja Yaohan. Tinho, sempre metido à malandro, todo mundo que morava em Pinheiros era, roubou um pacote de peixe seco. Só percebemos na rua, quando ele mostrou o fruto do roubo cheio de orgulho. Voltamos à loja para roubar mais. Carioca pegou um saco de balas. Eu não consegui pegar nada, não por honestidade, por medo de ser pego. Já começava a anoitecer. O céu tinha tons de roxo e azul escuro. Uma melancolia surgiu, mas até mesmo a melancolia era feliz, porque ela era parte do estar vivo, do ser jovem e pronto para o que acontecesse. Essa melancolia tomou sentido no ponto de ônibus: era hora de me despedir de Carioca. Ele iria para casa, longe, em Quitaúna, o pai era tenente do exército, e no dia seguinta iria para o Rio, Madureira, ficar todo o verão no lugar onde nascera. Houve um súbito silêncio no ponto, nenhum dos quatro falava. Carioca falou então: Tu vai ver o Flamengo perder de novo? ------------ Ele era Botafogo, eu me tornara Flamengo. Tinha raiva de ser paulista. Então imitava o modo carioca de ser e de falar. Enganava bem. Vivia usando uma camisa do Flamengo e gente na rua, às vezes, perguntava se eu era do Rio. Por causa do meu sotaque. Um jovem camaleão. ------------------ O ônibus veio e se foi, levando nosso líder. Todo grupo de meninos tem seu líder, o cara que inventa o que fazer. O Tom Sawyer da turma. Carioca acenou da janela, rindo. Então Tinho falou uma besteira e Diogenes espirrou. Ele estava sempre espirrando. Fomos correndo de volta à Yaohan. Lá comprei o mais lindo cartão de Natal. Eles queriam saber para quem era. Não disse que era para Aninha. Paguei e o segurava nas mãos como se fosse um tesouro. Nos despedimos na calçada, promessas de nos vermos amanhã, promessas não cumpridas. No ônibus, voltando para casa, eu tinha plena consciência de estar vivendo feliz. Todos ao meu redor pareciam tipos interessantes, abertos, faladores, gente que fazia parte da minha alegria. Quando entrei na sala de casa, meus pais vendo TV, a felicidade foi tanta que eu quase chorei. Deitei sobre o colo de minha mãe e adormeci. Olhos fechados ouvindo as vozes dos meus pais. O sono me levou. ------------------- Hoje, mais de 40 anos passados, eu penso, infelizmente, que tanta alegria se devia ao simples fato de possuir um corpo jovem. Meus olhos enxergavam o brilho das ruas e meus músculos eram leves como pluma. E pensar isso, pensamento de velho, entristece. Porque trai aquele dia. E então eu lembro: Era feliz porque pouco pensava e não planejava, vivia. Minha vida era impulso, era o momento em que ela existia, agora. Quase sem passado e ignorando o futuro, eu via e ouvia o hoje. E por isso amava. Pois o amor é o HOJE. O amor não é antes nem depois, é já. ------------------- 9 de dezembro outra vez e ontem, na escola onde trabalho, meninos e meninas de 15 anos jogaram volei na quadra. Esta geração é muito diferente da minha, a interconectividade joga sobre eles, coitados, a consciência de SER e ESTAR todo o tempo. O sol de uma dia lindo é obstruído por mensagens, notícias, fatos, fofocas, datas e modismos onipresentes. Eles não podem mais ser apenas um jovem corpo solto em um agora sem vínculos. São dirigidos. Mas..... vibram ao fazer um ponto, pulam e gritam e choram na despedida dos amigos. Me abraçam e agradecem por eu ter estado com eles. Me dão presentes. Se despedem. E jogam volei. ------------------ Nesta noite eu recebo a visita DELA, aqui em casa. E olhando o corpo dela eu perco a consciência de onde estou, quem sou e para onde vou. A beleza cheia de curvas daquele corpo, a volúpia tentadora, me deixam como o menino que amava Aninha sem saber o que fazer. E pouco se importando com isso. Hoje quando a toco é tocar o cartão de Natal de 1980. Ouvir sua voz é escutar a voz do Carioca. E sentir sua presença é saber que o menino está vivo, em mim. ----------------- A vida é muito mais alegre que pensamos.

AZEITONAS - MORT ROSENBLUM

Mais que falar sobre o fruto sagrado, o que há de melhor neste livro é nos abrir a mente para a cultura do mediterrâneo. Há uma raiz, uma identidade em comum entre Espanha, sul da França, Itália, Grécia, Turquia, Croácia, Tunisia, Marrocos, Israel e Palestina. Inclui-se também Portugal e Chipre. Essa cultura, antiga como o Velho Testamento, se caracteriza pelo vinho, pelo pão, pelo amor ao sol e pelo culto à oliveira. Não exsite vida, como a conhecemos, nessa nações, sem o azeite, sem a azeitona, sem a árvore que para eles simboliza o espírito do Homem. ------------ Pois é a oliveira uma árvore indestrutível. Ela pode ser congelada na neve, esmagada por deslizamentos, queimada pelo fogo e mesmo assim renascerá. Voce pode cortar todos os seus galhos, serrar seu caule, ela irá brotar mais uma vez. Ela parecerá morta, mas a raiz, essa permanece. E volta a subir à luz da superfície. Oliveiras em Israel do tempo de Cristo. Oliveiras na Grécia do tempo de Aristóteles. Oliveiras na Espanha plantadas pelos romanos de César. Oliveiras do meu avô que estão lá desde sempre. -------------- Minha família, por parte de mãe, tinha oliveiras em Portugal. Ler estas histórias é para mim rememorar tudo que ouvi. Minha mãe, aos 8 anos, já ia colher as azeitonas no inverno gelado. As mãos congeladas agarrando os galhos para tirar os frutos. Essa imagem me persegue desde que nasci: O Tempo das Azeitonas. Só quem é de família desses lugares sabe como a oliveira é central para esses povos. Eles amam, servem, comem, vivem por e para elas. Não há no planeta nenhuma árvore tão central. ------------- Azeite para iluminar. Azeite para revitalizar a pele. Sabão de azeite. Azeite no pão, na sopa, na carne e na verdura. Azeite no doce, no peixe, na ave, no legume. Em casa tudo levava azeite. Não ter azeite era ser a pessoa mais pobre do mundo. Azeite no feijão, no arroz, beber azeite. Vida em forma de alimento. História que tem sabor. Quente, macio, vivo. Citado na Bíblia, na Ilíada, no Corão. Sempre sagrado: azeite e pão. Aldous Huxley disse: " As raízes penetram a rocha, abrem caminho, trazem a vida...eu amo todas as árvores, mas nada se compara a força da oliveira". ---------------- Voltando a Portugal, em 2016, minha mãe chorou por ver que suas oliveiras haviam sido todas arrancadas. ( Único modo de matar uma delas: arrancar a raiz central ). Vejo naquilo que minha mãe a prova viva do que este livro diz: Quando arrancam uma oliveira é arrancada a raiz de quem lá vive. Minha mãe não quer mais voltar à sua terra. Não é mais sua, as raízes foram retiradas. ------------ Na Palestina quando Israel desaloja uma comunidade arranca as oliveiras e planta novas. Eu entendo isso. Vi aqui em casa. ---------------- Agora, por ordem de Bruxelas, plantam milhares de oliveiras em Portugal. Decidiram que Portugal será produtor de azeite e só de azeite. Derrubam castanheiros, nogueiras, cortiças, uvas e pessegueiros, tudo será oliveiras. Mas ninguém as ama. São raízes estrangeiras. São impostas. Pior: o azeite será vendido como made in Italy. ( Sim, 80% do azeite vendido como italiano não vem da Itália ). ---------------- Vinho...o vinho é diferente. Embora tão velho como o azeite, ele virou moda desde a muito. Não é mais uma tradição de famílias, de todas as famílias do campo ao redor do Mediterrâneo. Perdeu sua alma. A azeitona manteve seu aspecto familiar, simbólico, sagrado. Até quando? Até quando houver barris de azeitonas em mercados de rua. Oliveiras em propriedades simples, onde se faz o azeite da casa. Árvores com centenas de anos. Velhos colhendo a mão na geada de dezembro. A união do mundo do sul da Europa com o passado-futuro árabe do continente. Mundo de sol, de instrumentos de corda, do mar sempre presente, de longas conversas sobre comida.

EDUCAÇÃO E INFÂNCIA

Um aluno foi retirado da sala de aula. Havia jogado uma bola de papel na cabeça da professora. Ao ser levado ele repetia a frase: "Quem ela pensa que é?" ---------------- Pessoas modernas gostam de dizer que uma coisa nova pode estar nascendo. Quando perguntamos o que seria essa novidade elas dizem ainda não saber, mas que ela virá. Observe como é fácil dizer isso: uma coisa está nascendo, mas não sei o que é. Mas pode crer em mim, está nascendo. ------------ Falo isso porque não há nada nascendo para substituir a educação. A escola. O que existe é uma falsa crença dos progressistas de que alguma coisa, um milagre?, irá cair dos céus e fazer existir algo que substitua a antiga escola. Como diria o velho e "fascista" Paulo Francis: Waaaaaalllll........ ---------- Desde que o mundo existe, seja no ocidente ou no oriente, seja na cultura grega ou africana, educação é baseada em autoridade. Essa autoridade pode ser exercida de modo rígido ou amigável, de igual para igual ou numa cátedra, de modo alegre ou grave, mas sempre tendo por base a autoridade de quem detém conhecimento. Esse conhecimento sendo adquirido por experência ou por educação. Sem que se aceite uma autoridade, sem que se reconheça que alguém sabe mais que voce, não há a menor chance de se manter uma escola real. O que se pode fazer é fingir que ela existe, exatamente o que acontece hoje. Inclusive na escola de 4 mil reais que voce paga para sua filha. --------------- O professor está falando de porcentagens. Ou de história medieval. E imediatamente voce dá um Google e vê aquilo que voce DESEJA saber. Ou então recorda o filme visto semana passada que falava do assunto e então voce pensa: Eu já sei! -------------- O professor perde sua função. Ele pensa ser o que? ------- O diagnóstico é esse e só esse. Não se aceita autoridade de quem não tem um mérito maior que o seu. Não se pode ter mérito em um mundo onde o conhecimento, aparentemente, está a um clic. O professor tenta conquistar o aluno via amizade, via bom humor, via cumplicidade, tenta criar uma relação de iguais. É isso o máximo que ele pode tentar conseguir. Mas sempre haverá o risco de ouvir: Quem voce pensa que é? ------------- A escola se tornou mais uma das muitas fantasias que aceitamos sem discutir. Assim como o jornal finge informar a verdade e políticos fingem legislar, a escola finge ainda ensinar. Trabalho dentro dela e sei o que acontece. A verdade não se encontra via intermediários, é preciso ir ao mundo sólido e real. Ela não existe mais. Jovens aprendem o que desejam saber por meios que não são os da escola e entram na faculdade aprendendo apenas o necessário para exercer uma profissão. Tudo isso à margem do ensino abrangente, fora da alçada do professor, fora daquilo que se conhecia como "sala de aula". -------------- Aliás, é preciso dizer que o professor é hoje nada mais que uma babá de adolescentes. ----------- Como falo no texto abaixo, esqueça o século XX. A escola não é mais aquela de 1970 ou mesmo de 1990. ---------------- Falar da infância é ainda mais simples. Crianças usam seus sentidos afiados, sua mente em construção, para captar impressões da vida ao redor. O primeiro cheiro de queimada. O primeiro trovão. A canção que hipnotiza. O cheiro da grama molhada. O azul mágico do céu de outono. Todos esses contatos, incluindo dores e risos, vão dando à criança seu passaporte para o mundo real, despertando seu cérebro, construindo sua identidade. Mais importante, são nos momento de vazio, as longas tardes sem nada para fazer, em que ela fica de ouvidos atentos captando o silêncio, vendo o suspense do que vai acontecer, esperando o tempo que chega e passa, são nesses momentos que ela se faz como SER INDIVIDUALIZADO. É ao pegar uma joaninha do chão, ao ver um rato correr na mata, ao abraçar o pai, que ela se afirma como ela-mesma. Age e sente como um ser único dentro de meio cheio de COISAS REAIS. ------------- Pois isso não é mais assim. Ela ainda vê o rato correr e ouve o trovão, mas essas experiências significativas são agora MACULADAS pela pressa dos horários marcados ( creche e cursos ), pela distração do smartphone, pela hiper excitação de jogos, telas e musiquinhas. Não há o solo fértil do silêncio e o adubo do espaço sem nada. A preguiça que constroi. São crianças que aos 10 anos de idade já sentem saudade de uma infância que nunca tiveram. ----------- Bem vindos ao séulo XXI.

SOBRE CIGARROS E LIBERDADE ( VENDO FILME DE JACQUES BECKER )

Talvez voce não se recorde, mas um dos maiores prazeres na infancia é ver um homem fazer um trabalho bem feito. Recordo da alegria que era ficar o dia inteiro assistindo os pintores trabalharem em minha casa quando ela sofria uma reforma. Eu e meu irmão ficavamos atrás dos pintores vendo eles lixarem e passarem massa nas paredes, pintarem, limparem. Ainda hoje o cheiro de tinta látex me traz boa sensação. Na rua, quando um eletricista consertava algum poste, logo dezenas de crianças se juntavam para observar. Dos maiores prazeres era ver o técnico abrir a TV e revelar o mistério do aparelho cheio de tubos, lâmpadas e fios. Pois bem, assistindo a dois filmes de Jacques Becker, Le Trou e Grisbi, recordo esse deleite. E penso, o grande cinema nos faz recuperer esse prazer puro de olhar. Em Le Trou o que vemos é um grupo de presos escapar, ou tentar escapar, da prisão. O filme dura 3 horas e consegue não cansar mesmo sendo inteiramente feito dentro de uma prisão. Observamos barras sendo lixadas, buraco escavado, porta arrombada, tudo com tão grande detalhe e capricho que voltamos a ser a criança olhando um pintor a pintar. Em Grisbi, filme fetiche meu, o revejo vezes sem fim, vemos Jean Gabin viver sua meia idade. Um bandido que quer se aposentar. Ele come torradas com foie gras, bebe vinho, se veste, e esses são os grandes prazeres do filme, olhar Gabin viver. A câmera o focaliza 100% do tempo. Becker é um diretor sem limites, faz o que quer, se filmar Gabin lendo a lista telefônica conseguirá parecer interessante. ------------------ Mas é do cigarro que desejo falar. Gabin fuma Gitanes no taxi, na rua, no bar, no bordel, no restaurante. E penso, mais uma vez, que o mundo ficou bem chato a partir dos anos 90, quando deixamos que os fumantes se tornassem o primeiro grupo a ser perseguido pelos "bons". Todos sabiam que fumar dava câncer, mas essa era uma escolha indivudual e ninguém tinha nada a ver com isso. Então criou-se a história de que existia o fumante passivo e em seguida se fez a conta do quanto custa um câncer de pulmão. Pronto! o fumante era um pária. ------------------ Desde então foram criados centenas de párias, o fumante foi o primeiro. A partir dele tornou-se comum uma coisa que até então era impensável: obrigar um adulto a ser saudável. Mais ainda, vigiar esse adulto todo o tempo. Abriu-se um precedente. Consigo lembrar que dentro de seu carro, ambiente que era privado, meu pai podia dirigir sem cinto, colocar o braço para fora, me levar no colo, fumar. Era uma escolha de um adulto e caso houvesse um acidente ele pagaria por seu erro. Como adulto responsável ninguém se sentia no direito de invadir sua vida. Eu não era fumante e odiava bares e cinemas cheios de fumaça, mas jamais passara pela minha cabeça proibir que pessoas deixassem de viver sua escolha. Eu prefiro uma boate sem fumaça, mas abomino obrigar um fumante a fazer algo que ele não quer fazer. Não fumar. Penso que as pessoas foram abrindo mão de suas escolhas individuais pelo tal "bem de todos", e isso sempre pode ir longe demais. ------------------------ Democracia não é liberdade. Democracia é um acordo onde a minoria aceita obedecer a maioria. Liberdade é individualidade, é uma coisa diferente de democracia. Sociedade livre é aquela onde há democracia e liberdade individual. O cigarro acompanhou o mundo nas décadas mais livres de sua história, entre os anos de 1900 até 1990 ( com várias tiranias, eu sei, mas nunca antes houve tanta liberdade ). Temo que seu fim marque o fim do mundo de Jean Gabin.

29 DE MAIO

Nasci em 29 de maio, a quase 60 anos atrás. Sim, sou mais que velho, sou vintage, antigo, testemunha de outro tempo. Vejo na BARSA que quando nasci, o Brasil era a sétima economia da América Latina. Sim, a primeira era a Venezuela. Então vinham Argentina, México, Uruguai, Chile e Colombia. Surpreso? Em 1972 seríamos já os segundos e em 1977 o primeiro. Nasci em bairro de classe média. Não tinha água encanada. Para usar água havia o poço artesiano. Uma bomba puxava a água lá do fundo. Era divertido. Mas era incrivelmente século XIX. Esgoto nem pensar, só o centro da cidade o tinha. Só duas ruas tinham iluminação noturna. E várias eram de terra, sem calçadas. Até 1970, apenas ricos tinham TV. Nossa primeira TV, em preto e branco, veio em 1966, então não eramos exatamente pobres. Quando nasci existiam 3 canais: 4, 7 e 9. Funcionavam das 12 às 24 horas. Faltava luz quase todo dia. Telefone? A farmácia emprestava. Creia, meu primeiro telefone foi instalado só em 1979!!!! Meu pai o comprou em 1974. Levava cinco anos para o instalarem. Ninguém tinha fone em casa. Só quem era muito, muito rico. Como disse antes, puro século XIX. O século XX só chegou no país nos anos 70. ----------------------- Morria-se de sarampo aos montes. Metade das crianças não vivia até os 5 anos. Eu vivi. Minha casa tinha geladeira, um luxo que era motivo de exibicionismo na época. Minha mãe diz que eu dormia muito e não dava trabalho. --------------- Green Onions do Booker T foi a música do ano. Mas havia também Sam Cooke. Elvis ainda era relevante. Os Beach Boys lançaram Surfin Safari. Era tempo dourado da surf music. Os Beatles lançavam Love me Do. Os Stones estavam ensaiando. Bob Dylan lançou seu primeiro disco. No cinema, Lawrence da Arábia foi o maior sucesso de bilheteria. Incrível né? Havia fila pra ver Lawrence. Teve também o primeiro James Bond, Dr, No, e o primeiro Pantera Cor de Rosa. Nasci com James Bond e o Inspetor Clouseau. ----------------------- O Santos foi campeão do mundo, o Brasil ganhou aquela copa e Cassius Clay era o maior boxeador do mundo. Na F1, Jim Clark e Graham Hill duelavam. O Boston Celtics ia ganhar oito NBAs seguidos e John Kennedy era o presidente. Auge da gerra fria. ----------------------- Aqui tinha muita macumba na rua e se ouvia muito rádio. Dizem que quando nasci geava. Foi um inverno de matar pinguim. O Brasil amava piada. Roberto Carlos ainda tentava ser famoso. O cantor era Cauby. Nelson Gonçalves. E Elizeth Cardoso. Garrincha só poderia ter surgido em país muito muito muito pobre. Pelé já era o cara do futuro: um atleta. --------------------- Nossa intelectualidade tinha a certeza absoluta de que toda a América seria Cubana. Haveria a América do Norte, cruel e capitalista, e a Latina, socialista e justa. Pois é....o século XIX não terminava por aqui... -------------------------- A imagem do homem brasileiro, quando nasci, era a cara do meu pai: bigode fininho tipo Errol Flynn, cabelo com brilhantina, terno escuro. Todo bairro tinha pelo menos um cinema, e ir ao cinema ainda era hábito do dia a dia. Os vizinhos se encontravam na sala escura e saíam à rua comentando o filme. Esse costume morreu no fim dos anos 70, quando a TV se torna onipresente e faz as famílias ficarem em casa. ------------------ Todo bairro também tinha seu clube de várzea de seus campos de futebol. Só no Itaim Bibi havia oito. O Canto do Rio era o mais famoso. No meu bairro existiam seis. O Muricy Ramalho foi o jogador mais famoso da várzea de meu tempo de criança. Ele estudou na escola em que trabalho, escola onde fui aluno. Muricy era famoso por ser imarcável e por namorar todas as alunas bonitas. --------------------------- Meus primos brincavam com os filhos do Moacyr Franco. A casa deles, no Morumbi, não tinha muro. Voce simplesmente adentrava o gramado do jardim e mergulhava na piscina. Ladrão só havia lá pros lados do Bixiga. ---------------------- Era bom ser criança então, porque a gente era solto na vida e na rua. Mas o Brasil era de uma pobreza constrangedora. Não havia classe média, voce era pobre e te punham um rótulo de classe média só por ter o que comer e uma geladeira pra guardar comida. O que existia era a pobreza miserável faminta, o menos pobre, mas ainda sem bem material algum, a falsa classe media e os ricos, que eram um tipo de nobreza intocável e distante. Classe media no Brasil só surgiu nos anos 70. Foi quando gente como eu passou a viver com telefone, carro e TV. ---------------- Impressiona o modo como o país mudou em apenas cinco anos: 1970-1975. Entramos enfim no século XX. Mas foi de um modo tão rápido e atabalhoado, que até hoje somos esquizofrênicos. Ganhamos TVs, shopping centers e água encanada, deixamos de ter 60% de analfabetos ( em 1965 eramos vergonhosos 60% ), mas não saímos do mundo do esgoto a céu aberto e da febre amarela. Nos empurraram para o século XX, mas não nos transformaram em pessoas da época certa. -------------------------------------------- De qualquer modo, eu nasci. E agradeço a Deus por ter tido céus sem fim, estrelas de noite e árvores pra subir.

PEIXE GRANDE, LIVRO DE DANIEL WALLACE ( PAI )

Nossa época está jogando no lixo um dos símbolos mais sublmes que a humanidade amou: O Pai. Por culpa de homens fracos e acomodados, ruiu a beleza desse ser que se dividia em dois papéis: O Provedor protetor e o Homem da Lei. Ele era o duro mestre do conceito de realidade e ao mesmo tempo o Maravilhoso Mago que promovia milagres. Lembro que meu pai era o cara que trouxe um dia uma tartaruga pra casa, e isso foi um milagre. Ele apareceu com um grande carro vermelho e nos levou pela cidade inteira à noite, nos conduzindo por luzes e sombras e vazios imensos. Isso era magia. Quando doente eu me curava ao escutar sua voz em casa e era mandado ao inferno quando ele brigava comigo e me dava um de seus olhares frios. Sim, eu odiei meu pai profundamente. Não houve no mundo alguém que eu tenha odiado tanto. Me senti morrer de tanto ódio. E no entanto, morto a já 12 anos, é dele o amor mais constante e vivo e claro e bonito que sinto. O amor entre pai e filho é sagrado. Diferente do amor de mãe que é só carinho e aconchego, é um amor feito de raiva e disputa, ciúmes e dor, ódio e bondade. A nobreza vive neste campo. Tim Burton leu este livro quando seu pai morrer e fez o filme para ele. Daniel Wallace o publicou em 1998 e não é um grande livro. Mas é bonito. E eu chorei lendo as últimas cinco páginas. E enquanto chorava tudo que conseguia pensar era Pai eu Te Odeio! Como te odeio, amor da minha vida, desgraça da minha vida, exemplo da minha vida, estúpido, teimoso, frio, amoroso, meu pai. O livro fala de um filho. Seu pai está à morte e ele recorda das incríveis histórias que seu pai lhe contava. Um pai distante, que viajava só, que voltava e ria de sua próprias piadas. Wallace usa o exagero e a fábula. As histórias são fantásticas. Wallace acerta o tom: é um filho de 40 falando com o sentimento de um filho de 7. E aos 7 anos, até os centavos que seu pai te dá para os doces são moedas mágicas. Elas vêm do mundo lá de fora, daquele mundo vasto e incrível onde seu pai vive. Ele tem a chave. Meu pai morreu brigado comigo. E a última coisa que ele me disse, horas antes de partir, foi : Filho, me dê um copo de água....Quem ler o livro entenderá porque chorei tanto.

SONHO E SERRA DO MAR

Alguns momentos em minha infância foram reais, hoje eu sei, mas durante anos me pareceram ser sonhos. O mais fantástico foram as cenas que eu lembrava do filme SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO, de 1932, cenas que vi na TV, talvez aos 4, 5 anos de idade, e que cresci, até os 45 anos, pensando ter sonhado aquelas cenas. Pois bem...sempre que desço a Serra do Mar, seja pela Anchieta ou pela Imigrantes, tento entender de onde tirei as imagens, mágicas, que guardo daquela descida. Vejo dentro da minha memória uma estrada sinuosa, que passava roçando nas folhas das árvores. Um caminho onde eu sentia o cheiro da mata e ouvia, muito de perto, sons de insetos e de pássaros. O carro percorria as curvas com vidros abertos, o bafo úmido da floresta invandindo nossos corpos. Lembro de cachoeiras onde dava quase pra molhar as mãos. Descendo a Serra, lugar que mais amo no mundo, sinto prazer, mas ao mesmo tempo fico intrigado: sonhei esse outro caminho? Vejo no Youtube um video da velha estrada de Santos, aquela que Kipling conheceu. Aqui está meu sonho! Minha mãe assiste comigo e me conta: Sim, até os seus 11 anos era esse o caminho que fazíamos. Seu pai preferia usar a Anchieta, mas todas as vezes que fomos no carro de outras pessoas elas foram por aí, por ser mais bonito. A viagem levava quase 3 horas, contando tudo, e quando voce tinha 7 anos, a primeira vez que voce viu o mar, descemos por aí, de noite, chovendo, numa Kombi. Nunca senti tanto medo....Voce desceu comendo bolachas e rindo. Houve um domingo, eu tinha 9 anos então, em que subíamos para São Paulo, de taxi. Cheio de sono e calor, eu vi macacos nas árvores e enormes pássaros voando tão perto....em certo trecho os galhos caídos de uma árvores roçavam os vidros do velho Chevrolet. Crianças quando felizes sentem essa alegria na barriga. Como um calor suave. A falta de passado faz isso. A satisfação é nova, estala de tão perfeita. Eu fechei os olhos e dormi ouvindo os pneus rolando. Desde então essa é minha imagem da felicidade perfeita.

Descida pela estrada velha de Santos



leia e escreva já!

HOUVE UMA TARDE NOS ANOS 70 ( SOBRE MEU PRIMEIRO VERDADEIRO LIVRO )

   Antes houve O Zorro. Capa preta com uma ilustração de Guy Willians, o Zorro da série Disney na TV. Mas não foi meu primeiro livro de verdade. A filha da minha madrinha, Lena, o deixou em casa. Já usado, meio amassado. Depois houve Renard, A Velha Raposa. Esse dado para mim por minha madrinha. Mas eu não o escolhera e ele já vinha rabiscado. Também era usado.
   Agora não! Este eu pedira para meu pai, e ele o encomendara ao dono da banca de jornais que ficava em frente á padaria. Meu pai era o proprietário da padaria, e um dia ele chegou. Meu primeiro livro! A capa roxo escuro com uma pintura de um navio e um bote ao lado. A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Rapidamente arranco o plástico transparente e recebo nas narinas o perfume que nunca mais sairia da minha memória. Uma mistura de tinta fresca, papel e cola. O cheiro de livro novo. Eu tive a sensação de que ele estava quente ainda, parecia pão saindo do forno. Me deitei no sofá e comecei a ler, em voz alta, para meu irmão, que aos 6 anos ainda não conseguia ler.
  Black Dog, Long John Silver, Jim Hawkins, a cidade de Bristol, a hospedaria Benbow. Tudo isso grudou na minha alma. Como grudou o navio, o nome de cada vela, de cada corda, o mapa do tesouro, o papagaio. Enterrei um tesouro no Caxingui. Não sei onde. Tentei fazer um navio usando paus, latas e uma mala de viagem de papelão e couro. Várias lutas de espadas com meu irmão, e a certeza de que meu quarteirão era uma ilha. Quando muito jovem, voce não lê um livro, voce não pensa que alguém escreveu aquilo. Voce assiste uma história que acontece na sua cabeça. Mais real que tudo que o cerca.
  Relendo hoje, tenho consciência de que aquilo é Stevenson. Um escocês viajante, que Borges considerava o melhor narrador da história. Stevenson viajou pelos mares do sul, foi o primeiro europeu a falar de surf. E note bem, ele não é, nem quer ser, um artista. Ele é um narrador. Seu objetivo é descrever e desenvolver. Te envolver. Fazer com que voce se sinta lá, onde acontece a ação. Eu não poderia ter começado em melhor companhia. Por isso é amor eterno.

INFÂNCIA E WORDSWORTH

   Wordsworth teve uma longa vida. 1770 até 1850. Oitenta anos que no século XIX equivaleriam a viver uns 100 hoje. Sua melhor poesia foi feita entre 1790-1820, ou seja, enquanto sua memória ainda estava fresca. Wordsworth não escreve nada sobre sua infância como biografia, mas ele só é poeta quando revive o sentimento de ser uma criança. Mas não pense que ele compactua da moda de então, aquela de que toda criança é inocente. Não. O que o poeta inglês tenta preservar é a sensação de estar vivo DENTRO da vida e não FORA do elan vital. Para Wordsworth a vida só é plena enquanto somos crianças. O hábito mata esse dom. O tempo nos obriga a viver numa eterna repetição,  e essas repetições destroem a memória. Nascemos vindos da divindade. Quanto mais jovens mais podemos sentir essa nossa origem.
  Fazer poesia, para ele, é rememorar. A emoção e o casamento entre criança e natureza, na idade adulta, estão perdidos. Mas calmamente voce pode relembrar e assim reviver, mesmo que a distância e de um modo frio, o que foi aquele encanto natural.
  Wordsworth faz assim dois movimentos na época revolucionários. Primeiro tira o poeta do pedestal do classicismo. Todo ser humano pode ter essa experiência. Pois toda infância vive dentro desse encanto. Segundo fato: Fazer poesia é memória e não arte de pura técnica. Essa é outra pedrada nos clássicos.
  É aceito hoje que todo artista verdadeiro tem acesso à um tipo de espírito da infância. O homem tende a perder esse espírito com a idade. Segundo Wordsworth o que o degrada é a pura e simples repetição. Somos presos numa rotina diária que embota nossa emoção. Horários, estudo, ruídos da cidade, distrações, tudo nos faz ESQUECER. Para ele, a infância é sagrada simplesmente por estar próxima ao outro mundo, o universo de onde viemos. Esse porque é para mim o único ponto discutível do que Wordsworth diz. Para mim o simples fato de sermos jovens cria o encanto. Vemos tudo pela primeira vez, sentimos pela primeira vez. Para esse encanto não é necessária nenhuma memória de outro mundo. Mas, de todo modo, Wordsworth cria uma bela imagem poética. E quem poderá negar essa verdade?
  Desse modo, em nossa vida de adulto, e agora quem fala sou eu e não o poeta inglês, só tem valor poético TUDO AQUILO QUE É ALGUMA RECORDAÇÃO DA INFÂNCIA. Não posso cometer o erro de dizer que minha experiência é a experiência de todos. Mas só consigo habitar o meu mundo de contentamento, paz e sensação de absoluto, quando mergulhado em algum tipo de rememoramento da infância. Ás vezes provo a felicidade total simplesmente por sentir em minha carne uma espécie de calor ou sono COMO DO DA MINHA MAIS REMOTA INFÂNCIA. É como se minha pele ou minha barriga voltasse a sentir o calor de uma tarde de 1970 ou o cheiro de uma fruta sentida em 1968. A sensação é de uma porta que se abre dentro de mim, e então olho dentro daquele mundo outra vez. O que vejo lá dentro não é alegria ou dor, felicidade ou melancolia, é A SIMPLICIDADE ABSOLUTA DE SE ESTAR VIVO. Eu não penso em nada de especial. Nenhum fato dramático é lembrado. O que sucede é somente uma sensação sem história. Um estar aqui. Viver.
  A frase mais famosa de Wordsworth é a que diz O MENINO É PAI DO HOMEM. Isso porque todos nós tivemos um menino antes de ter um homem. Nascemos de um menino, fomos esse menino, ele veio antes e nos abriu as portas. Para não perder todo o encanto da vida, é necessário que esse menino-pai permaneça a nosso lado, mão com mão, sempre.
  Isso me recorda muito as sessões de terapia que tive durante 1986-1989. Quem já fez sabe que 80% das sessões não são proveitosas. Mal nos lembramos delas. Mas que existem tardes em que uma porta se abre. Li mais de uma vez que a linguagem de nosso inconsciente é sempre poética. Nossa mente mais profunda fala e enxerga por poesia. Pois eu diria que ao tocar nosso inconsciente nos tornamos uma criança novamente. Nos tornamos básicos. Puro sentimento. Pura sensação. É aí que mora o pior medo. E a mais bela recordação.
  Wordsworth intuiu isso. Ler esse poeta é sempre uma terapia.

MEU PAI EM 1984 E EU EM 2020

   Meu pai nasceu em 1926. No norte de Portugal. Mundo sem rádio, sem Tv, claro, sem cinema. Nunca iremos entender a mente de alguém que não cresceu vendo imagens de New York, do Japão ou de um avião sobrevoando o mar. Sem essas tecnologias, o mundo dele era um universo de ouvir falar. Ele nunca vira uma girafa ou um prédio com 10 andares até ir à cidade do Porto, já aos 18 anos. É um tipo de mente onde sua vila é o mundo inteiro. Onde pessoas da família são muito maiores do que podemos hoje sequer imaginar. Não havendo o escape do "mundo vindo até nós", o mundo é aquilo que podemos tocar e cheirar. As 200 pessoas da aldeia são o planeta inteiro.
   Meu pai tinha 18 anos em 1944. Fosse russo ou alemão teria lutado na guerra. Nesses países, vivendo no desespero da invasão, meninos de 15 anos já eram convocados. Tivesse nascido lá, eu provavelmente nunca teria nascido. Na aldeia dele a segunda guerra era coisa mais distante que o Rio ou SP. Entre ele e os aliados ou os nazis havia uma Espanha de distância. E para o jovem meu pai, uma Espanha equivalia a Saturno para mim em 2020.
  Quando veio para o Brasil ele tinha 24 anos. Era 1950 e fazia duas semanas que o Brasil perdera a Copa em casa. Ele andava pelo Rio impressionado com duas coisas: negros e a quantidade de carros. Meu pai nunca vira um negro na vida. E em Lisboa não havia a confusão de ruas e bondes que havia aqui. Ele logo veio morar em São Paulo, na Barra Funda, e se espantara com a imensa distância entre SP e Rio. Amigo era seu primo, que cruzara o oceano cinco anos antes. E na solidão de trabalho e casa, meu pai se apaixonou pelo cinema. Nas ruas e avenidas, São João, Ipiranga, São Bento, ele iria assistir até 3 filmes por dia, em um tempo em que se lançavam até 20 filmes novos por semana na cidade. MGM e Paramount, Fox e Warner, Columbia e Universal, esses logos e marcas eram suas guias. Como todo frequentador de filmes, ele sabia que cada companhia tinha um tipo de produto. Meu pai evitava musicais e filmes de "mulher". Ele amava faroestes e filmes de ação, filmes de "homem". John Wayne, Burt Lancaster, James Stewart e Kirk Douglas eram seus atores favoritos. Se os filmes fossem com eles, ele comprava o bilhete. Nunca se arrependia. Um ator era o filme.
  Quando nasci meu pai tinha 36 anos. Ele torcia pelo Santos de Pelé e morava no Caxingui, o melhor bairro do mundo porque é o bairro onde eu nasci. O Caxingui era uma festa feita de riachos, ruas de terra e áreas vazias. Foi minha aldeia durante meus primeiros dez anos. Até hoje é meu Valhala e meu Camelot. TV eu via desde sempre, rádio sempre ligado, mas mesmo assim era meu bairro meu universo. California e Japão eram no Caxingui. Ultraman, Speed Racer e Rin Tin Tin viviam por lá.
  Esqueci de dizer que em SP meu pai se espantara com os japoneses. Que raça era essa que ele nunca vira? Para mim, o Caxingui era núcleo de japas, o Japão era aqui. Eu achava que em todo o Brasil 60% das pessoas eram do Japão.
  Estou escrevendo isto porque não me sinto velho. Mas na minha fase de auto avaliação, sei que começo a me distanciar do futuro. Meu pai tinha a idade que tenho hoje em 1984. E como acontece comigo, um certo tipo de filme de 1984 não o interessava mais. Assim como eu, ele não se via mais em atores típicos da época. Assim como pouco me importa quem é o ator que fez Freddie Mercury ou quem ganhou o Oscar este ano, meu pai pouco ligava para William Hurt ou Kevin Kline, os atores da moda em 1984. Ghostbusters ou Amadeus lhe eram indiferentes.
 Estarei eu me alienando? Será?
 Mas então lembro de uma coisa: meu pai amava os filmes de Mel Gibson. Eddie Murphy. Stallone. Arnold. Bruce Willis. E eram esses, e não Al Pacino, os John Wayne e Kirk Douglas de 1984. Assim como em 1960 meu pai pouco ligava para Marlon Brando ou Laurence Olivier, em 1984 ele pouco se lixava para Robert de Niro ou Woody Allen. E eu nisso?
  Se não me vejo no novo ator frágil de Hollywood ou na nova atriz da Espanha, é porquê esse é meu gosto e não sinal de envelhecimento. Um ator da escola de Steve McQueen ou Clint Eastwood sempre vai me impressionar. E se neste ano há poucos nesse estilo, o problema é da moda e não meu.
  A queda de meu interesse em cinema atual é um enjoo. Os filmes, em sua maioria, não são feitos para mim. A entrega do Oscar exibe gente que não gosto. Gente que eu jamais convidaria para uma viagem. Ou mesmo um café. Isso não ocorre porque estou velho. Isso ocorre porque eles são da velha escola James Dean: ambíguos sexualmente e infelizes afetivamente.
  Meu mundo não está nesses filmes que hoje ganham festivais e o hype da crítica. Eles são aqueles que passam ao lado. Alguns superam recordes de bilheteria, mas não entram nas listas de melhores do ano e definidores deste tempo.  São os filmes de Charlton Heston de hoje, outro ator que meu pai adorava.
  Não me sinto velho diante do cinema de 2020. Sinto que os filmes ficaram modorrentos. Chatos. Assim como com o rock, são jovens envelhecidos aos 20 anos fazendo coisas que nos convidam a querer morrer.
  Tou fora baby.

ANO NOVO - DESLUMBRAMENTO

   Uma coisa é ter vivido 15 anos novos, réveillon. Outra é ter passado por mais de 50. Se voce não usa sua criatividade, tudo ficam entediante. Deus criou o tédio para que pudesse haver criação. Então eu penso ( pensar é criar ).
   Não há graça na vida sem a capacidade de se deslumbrar, e lembro que aos 12 anos eu me deslumbrava com o fato de um ano terminar e começar outro. Não era apenas uma piada boba, eu realmente sentia a magia de se acordar num ano e ir dormir em outro. Eu vivenciava na alma a distância, imensa, entre ter acordado em 1977 e ir dormir em 78. Era deslumbrante. Como era deslumbrante ver aqueles caras correndo por  São Paulo enquanto o ano morria. Pois ele morria, e eu sentia até mesmo pena do ano que se ia. Dentro do deslumbramento, um novo ano era um vazio onde tudo podia acontecer.
  É cliché artistas dizerem que fazer arte é manter viva a chama da infância. Poder ainda se deslumbrar com coisas cotidianas. Acho que Renoir foi o primeiro a dizer isso. Não sei. Mas penso agora o seguinte: Esse deslumbramento artístico é a capacidade de se deslumbrar com a simples mudança no calendário. Não vale o deslumbramento forçado e caro de ir ver o Taj Mahal ou o mar de coral. Mas, eu agora te pergunto, no mundo hiper exposto de 2020, ainda alguém se deslumbra com o Taj Mahal? Chegaremos à um tempo em que ir à Lua não causará mais espanto, muito menos deslumbramento. Já vivemos uma época em que a visão do primeiro corpo nú, ou a primeira noite fora de casa, não causa deslumbramento algum. Existe um tédio antes mesmo da primeira experiência. Culpa do quê? Talvez por sermos cobrados a não ser ingênuos. Talvez por termos de planejar a vida desde cedo. Eu não sei.
  Tenho sorte. Ainda me deslumbro com a Serra. Com um Sabiá levando minhoca no bico. Com o céu quando se tinge de roxo. A chuva violenta de verão. Penso que coisas humanas me deslumbram cada vez menos. Mas a natureza...ela é o deslumbramento absoluto.
  Portanto espero que 2020 seja deslumbrante. Que seu queixo caia e que as coisas façam voce parar e admirar. Olhar. Olhar sem pensar.

AQUELE ASSUNTO CHATO QUE NINGUÉM FALAVA E AGORA VIROU BANALIDADE.

   Leio que o suicídio já á a terceira causa de mortes nos EUA. Banalizou-se. Aqui, no país da banana, onde trabalho entre crianças e jovens pobres, faz muito tempo que me acostumei com meninos e meninas "treinando" suicídio. Eles cortam os braços quando estão muito tristes ou muito nervosos. Sentem alívio ao fazer isso. Já não me choca mais. Mas ainda procuro as ajudar.
  Nunca tentei me matar. Fingi uma vez, mas acho que esse "teatro" não conta. Foi um ato consciente para tentar fazer uma ex voltar. Nunca mais faço isso. A dor que vi no rosto dela me curou de toda mentira. Não minto mais. Mas vamos ao tema:
  A primeira onda de suicídios da modernidade foi por volta de 1810. Mas tenho dúvidas se essa onda foi assim tão "onda". Acho que foi uma moda entre pretensos poetas. De qualquer modo, foi um sinal. O individualismo em extremo pode dar na hiper vaidade, no superhomem de Nietzsche, ou numa corda com nó. Vivemos um tempo que nos pede a fazer três movimentos fatais: ser original, querer todo o tempo, esquecer o passado.
  Ao lutar por ser único caminhamos para o alto da montanha. E como somos únicos, lá não haverá mais ninguém. No máximo um pobre ou uma pobre serviçal. Ao querer e desejar todo o tempo teremos a recompensa do vazio. Se queremos sem parar estaremos insaciáveis para sempre. Será uma fome sem razão. E ao esquecer o passado jogamos no lixo toda a referência que nos diz de onde viemos, quem somos e a quem devemos. Sem esses laços nos tornamos barcos sem leme e sem ancora. Livres sim, mas sem rumo e sem descanso.
  Bourdain é o símbolo desse mundo. Livre, aventureiro, sempre querendo coisas novas. Sem rumo.
  Mas tudo talvez seja ainda mais simples.
  Eu tinha uma amiga de minha mãe que se chamava Dona Mabília. Velha, muito velha, a casa dela era sempre a mesma. Seja em 1972 ou em 2001, era a mesma horta, os mesmos móveis, as mesmas fotos nas paredes. Até os programas que ela ouvia no rádio eram os mesmos. Quando minha mãe estava triste ela ia à casa de Dona Mabília. Faziam chá e falavam das plantas. Quando eu estava triste ia lá. E sentia que nada mudara. Que a vida continuava a mesma que sempre amei. Era um colo. O calor de uma voz amiga. O cheiro da cozinha fria e imensa, com um fogão Walig e uma geladeira Frigidaire.
  Não há mais colo. Na dor não existe mais uma casa para se ir. Onde ver que a vida continua a mesma, familiar, amiga, conhecida. O aumento de suicídio se liga à diminuição de Donas Mabílias. De avós que cantam, de avôs que fumam charuto, de pais que dão bronca e mingau quente. Ao fim dos bares-casa, das praças-memória, dos cantos-recantos.
  Não estou idealizando. Não penso na figura do avô sábio ou do pai forte. Sei que são raros. Falo da simples existência dessas figuras. Do cheiro da cama do avô. Da loção de barba do pai. Mesmo que frio e ausente, lá está ele. Falo do colo da mãe. Mesmo que ela só fale tolices, o colo está quente, está o mesmo de sempre. Falo do sentimento de que a vida tem uma história, um acontecer corrente, um fio de vidas.
  Podem dizer que estamos construindo uma nova vida, uma nova família, uma nova realidade. Mas assim como o feijão é sempre o mesmo, a água só existe uma e sonhamos de noite os mesmos sonhos dos gregos, a necessidade de um avô rotineiro, uma mãe que canta enquanto cozinha ou de um velho tio esquisito, não muda.
  Somos macacos, somos humanos, somos espírito: precisamos de um lugar seguro para fugir. E de braços conhecidos para nos salvar.

O JARDIM SECRETO - FRANCES HODGSON BURNETT. nascendo a new age.

   Só um idiota não leva a literatura infantil a sério. Nascemos crianças e as marcas que essa literatura deixa numa criança é para sempre. Quando lidos em minha idade, quando visitados por um adulto, esses livros mostram aquilo que eles são, os melhores, claro: fonte de símbolos e arquétipos, imagens que revelam o que respira na nossa alma.
  Frances Hodgson Burnett foi uma escritora muito famosa na virada do século XIX para o XX. Nasceu na Inglaterra, empobreceu quando criança e passou a viver de sua escrita desde os 17 anos ( !!!!! ). O Jardim Secreto, hoje um dos mais famosos livros infantis, foi lançado em 1911. A princípio não foi um de seus maiores sucessos, mas a partir da contracultura se tornou um tipo de livro fundador da new age. Na história da menina infeliz e chata que se transforma no contato com a natureza, vive a crença de "volta ao jardim", plantar e colher e assim fazer o mesmo por sua alma. Burnett era estudiosa da cientologia, da teosofia e de rituais "do bem". A mensagem do livro é a de que ao se abrir a mente para as flores e os bichos, sua vida se abre para ela-mesma. Mais ainda, há a crença no pensamento positivo e na força da vontade.
  Mary vive na India e é enviada ao Yorkshire para viver com um tio. Mergulhado em luto, esse tio nunca está presente. Mary, feia e fraca, mimada e arrogante, se humaniza ao conhecer gente do lugar e principalmente ao cuidar de um jardim. No processo ela salva o primo doentio, Colin, e o próprio tio. Burnett escreve simples, escreve como quem fala. É uma linguagem deliciosamente despretensiosa.
  O livro tem sido atacado na última década. É tachado de colonialista e misógino. Não vi o menor sinal disso. Mary é a heroína e o colonialismo é várias vezes tachado de injusto. Me parece que esses bobocas do PC exigem panfletismo em tudo. Aff.
  Bela edição da Penguin com introdução e pós escrito.
  Junto a "O vento nos salgueiros" e "Peter Pan", é dos melhores livros "para crianças".

1973, UM ANO FODA PARA A MPB ( AINDA NÃO LI ESTE LIVRO, VERSÃO BRAZUCA DO 1965 )

   1973 foi um ano foda. Escolheram esse ano pra fazer um livro. Os gringos optaram por 1965. Sim, para o pop estrangeiro eu teria escolhido 1972, mas ok, 65 foi foda também. Pra MPB tem de ser 73, não tem opção. Foi o ano dos Secos e Molhados e isso justifica tudo. Mas foi também o ano do Steve McLean, que era brasileiro, do samba dito "joia", do Benito di Paula, do Martinho e dos Originais do Samba. Da Clara Nunes. Foi o ano da Rita Lee e do Raul Seixas. Maracatu Atômico e Antonio Carlos e Jocafe. Foi ano do brega legal de Odair José. "Irmão, vamos seguir com fé, tudo que ensinou, o homem de Nazaré..." essa é do Antonio Marcos. " De onde ela veio pra onde ela vai...oooo não tem ninguém...", foi um ano muito romântico!
  Fora do Brasil foi ano do Dark Side of The Moon, do Houses of The Holy, do Billion Dollar Babies, do Berlin, do For Your Pleasure, do Alladin Sane, do Sabbath Bloody Sabbath, do Goodbye Yellow Brick Road, isso só em rock branco. A banda revelação do ano foi o Queen. 1973 foi mais foda ainda porque eu liguei o rádio pela primeira vez.
  Estava sozinho em casa numa manhã de sábado e pela primeira vez girei o botão, ele fez clic, e ouvi rádio por vontade própria pela primeira vez. Mais ainda, girei o dial até a Difusora! E escutei " Leve...muito leve leve leve pluma....muito leve leve pluuuumaaaa...." Agora eu era dono do meu gosto musical.
  Diz um psicólogo que aquilo que a gente ama aos 11 anos a gente ama pra sempre. Então 1973 é pra sempre.

VIRGINDADE.

   Fazia um calor dos diabos e eu corri pra janela e a fechei. ( Na verdade era um vitrô. Acho que hoje ninguém mais usa essa palavra francesa, vitreaux ). Os insetos começaram a bater contra a janela e eu ouvia o tunc tunc tunc de seus desastres aéreos. Era verão e acontecia a irrupção de uma nuvem de "oito". Oito era o nome que a gente dava pra um inseto voador formado por uma bola preta grande e uma menor, daí o oito. Eu estava no campo e era três da tarde quando vi a nuvem se aproximar. Corri pra casa da minha tia e me tranquei lá dentro. A coisa durou só uns cinco minutos, talvez menos. E logo a paz preguiçosa do verão voltou.
   Mas eu recordo outra nuvem, essa de cigarras, eu ao lado da minha mãe, e ela se defendendo com um guarda chuva que ela usava pra se proteger do sol. Ela e uma amiga conversando na rua, como se nada houvesse de estranho, e eu sentindo um aturdimento enorme. Os insetos se chocavam contra nossa roupa, caíam e voltavam a decolar. Como eu disse em outro post, a vida nunca estava longe da gente.
  Crianças têm olhos imensos e com eles bebem tudo que está ao redor. São as impressões que gravam como tatuagem no cérebro. A mente está ansiosa por receber imagens, virgem de impressões, e os olhos dissecam cada cor e cada movimento ao redor. Desse modo, uma teia de aranha é um universo completo e um tom de azul uma maravilha sem fim.
  A felicidade do adulto seria a de jamais ter perdido essa virgindade.

VIDA TODA VIDA

   Me leva pra Serra do Mar que eu me encontro lá. Ela é pra mim o que os Andes foram pra Humboldt ou a Sierra Nevada para John Muir. Na Serra eu escuto a voz da minha alma que é a alma do mundo. Não existe dor naquela embrenhação de mata, porque não mora eu nenhum lá. O nós eterno e imorredouro é o que habita cada folha daquele lugar que é todo lugar.
 Desde sempre eu assisti formigas e minhocas. Procurava as estradas de exércitos de formigas e via as saúvas carregando suas folhas verdes para dentro de buracos bem abertos. Cavava na lama dos patos e descobria as minhocas que se enfiavam em túneis esbeltos. E ia correndo atrás das abelhas que nunca me deram medo. Toda minha infância, berço da mente, é um reino de encontros com coisas vivas. Os marimbondos em seu cacho pendurado no telhado ou os ratos minúsculos que se escondiam no meio da roupa suja.
 Mas tão vivo quanto tudo isso eram as nuvens que eu aplaudia no brinquedo de encontrar formas em seu transformamento súbito. Um coelho, uma cara, um deus, um barco, uma flor. Na tela azul do céu a gente via nuvem e cria que ela era casa de um titã. Como vivo era o fogo que comia e rosnava no meio da lenha seca e do papel inútil.
 Havia vida no escuro do quarto de noite. Não só uivos de cães vizinhos. Bater de asas de pássaros aninhando. Havia vida no próprio negror do escuro espaço. Suspeitava e confirmava a vida em suspensão. Detrás e tudo uma dimensão de vida: escondida.
 Andar era sempre ir ao encontro de mais pedaços do universo. Uma pedra mal enterrada ali, uma árvore jamais vista lá. O encontro com um velho coxo, um japonês deformado, uma menina de saia rosa. Avião cheio de pensamentos e um helicóptero levando gente. Em cada trilha de terra uma promessa, em cada riacho uma constelação de peixes e girinos.
 Mais vida nos livros e nas cores das revistas. Dentro do aparelho de TV, vivos elétrons que viravam pessoas, coisas e lugares. Naqueles tubinhos de vidro dourado nascia o mundo de lá além. A TV era uma incubadora. E o rádio uma festa. Multidões de vozes que riam, cantavam, berravam, anunciavam. Um rádio em cada casa, alto, uma casa em cada passo, sol.
 Mais vivo o sol, mas a chuva e a neblina também. O sol erguia os punhos e pulava ao se espreguiçar de manhã. Ele se abanava e à noite andava pra depois de lá. A lua era uma menina discreta que apenas olhava aqui. E a chuva...ela era um animal que anunciava a sua chegada em som e em cheiro. Chuva ser vivo, garoa ser vivo. Eu beijava cada manhã como se fosse um encontro de destino.
 Porque a vida é inevitável e se ainda sei isso é por causa dessa infância que sempre e toda hora a confirmava. Meu coração era a marcação de tambor de toda vida ao redor. Mais que ao redor, dentro e fora. ( E é por isso que ainda hoje me é impossível fechar portas e janelas...fora e dentro são o mesmo ).
 Vou lá...