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APRESENTAÇÃO DA FILOSOFIA- ANDRÉ COMTE-SPONVILLE. PARA QUEM QUER COMEÇAR A SABER PENSAR

   A filosofia não responde a nada. E nem se importa com isso. O que ela nos dá é um método de pensamento. Impossível filosofar sem conhecer filosofia. Sem ela voce pensa em círculo e não clareia nada. Filosofar é conversar com as ideias que vieram antes. Por isso é necessário, para filosofar, ler filosofia. Mas livros de filosofia são árduos. Porque eles não dão respostas, antes demonstram a construção, passo a passo, de uma pergunta. André Comte-Sponville nos dá aqui uma bela introdução à filosofia. Seu público alvo são aqueles que sentem o desejo de filosofar. Mas que não conseguem, por enquanto, ler filosofia.
   Na tarefa de popularização do pensamento filosófico existem dois caminhos possíveis. A pura picaretagem e a didática. Picaretas são vários e Alain de Bottom é o menos ruim deles. Didáticos são honestos. No didatismo voce pode contar a história da filosofia ou explicar o ato de se filosofar. Bertrand Russell tem uma excelente breve história da filosofia. Apesar de ignorar Schopenhauer e Marcel, é a melhor exposição histórica breve que já li. Sponville não fala de história, fala das doze grandes questões filosóficas. Cada capítulo aborda em seis ou sete páginas um desses tópicos. Ele não vulgariza.
   1- A Moral. A moral é individual. Não há uma moral que possa ser imposta. O que é a sua moral? André usa a parábola de Platão: Se voce tivesse um anel que te fizesse invisível, o que voce faria? Mataria? Roubaria? Estupraria? O que voce, mesmo sem ser visto, Não se permitiria fazer? Eis sua moral. Se voce não mataria ou mataria, eis a moral. Ela é sua e não depende de castigo ou de recompensa.
   2- A Politica. Politica é história. Moral do grupo. Tudo é politica e não fazer politica é assumir uma não-humanidade. A politica só existe na história de um grupo. Ela é o que o grupo foi e pensa ser. Acordo que nos livra da animalidade.
   3- O Amor. André fala de Eros, o amor que falta, o desejo do que não se tem. De Phillia, o amor ao que se tem, o amor feliz, o amor que protege e cuida. E de Ágape, o amor que dá e não recebe, o amor que é caridade, que defende e alimenta a tudo aquilo que é vida. Tudo que nos une a vida é amor: amor a si-mesmo, amor ao dinheiro, ao poder, aos livros, a natureza. Amor ao amor que se tem, ao amor que se dá e o amor que nega o que se é em favor daquele que se ama. Amor que é potencia.
   4- A Morte. O paradoxo da morte. A grande questão da filosofia. O que ela é? Como algo que existe ( a morte ) pode não ser? O que seria a vida sem a morte? Porque vivemos se morremos? Como pode a vida ter nascido do nada? E se havia o nada, porque surgiu algo?
   5- O Conhecimento. É possível conhecer algo? Voce conhece o que? Sua rua? Mas voce conhece mesmo sua rua? Sua história, sua materialidade, quem vive nela, cada grão de pó, cada mancha, tudo o que ela é, foi e poderá ser. Voce conhece voce-mesmo?
   6- A Liberdade. Existe? Se existe, o que é ser livre? Fazer o que quiser? Liberdade é fazer ou ser? André demonstra a ilusão da liberdade e a verdade da liberdade. Eis o que o livro tem de bom: Ele demonstra sempre mais de um lado, mais de dois, mais de três.
   7- Deus. Se Deus existe porque existe o mal? Que Pai é esse que nos deixa sofrer? Sponville é ateu, mas fala que afirmar a não existência de Deus é uma imbecilidade. Como afirmar a existência é também uma imbecilidade. Explica o que é um agnóstico, o paradoxo da fé.
   8- O Ateísmo. O que é o ateísmo, as formas de ateísmo. O ateu e o agnóstico, o mistério. Não há prova sobre Deus, nada nos leva a aceitar sua existência. O que é o materialismo?
   9- A Arte. É o mais satisfatório dos capítulos. O que é a arte? Porque ela existe? André dá a mais perfeita explicação do que seja um gênio: É alguém que cria algo de novo e de diferente, mas, que ao contrário do mero novidadeiro ou charlatão, deixa atrás de si um contingente fértil de seguidores, de discípulos. Eis a superioridade da arte: Se Newton jamais tivesse existido, suas leis com certeza teriam sido descobertas por algum outro. A gravidade estaria lá. Mas se Shakespeare, ou Beethoven, ou Michelangelo jamais tivessem existido, toda sua obra, todos seus seguidores, tudo aquilo que eles, e só eles, criaram, jamais teria nascido. Com certeza o mundo seria outro e nós nos veríamos de modo diferente: menor. Há uma bela definição: Toda verdadeira arte é poesia, pois a poesia é essa linguagem plástica que toca a  explicação do que seja a vida.
   10- O Tempo. Tempo....o passado e o futuro: existem? Tudo é o presente. Tudo é uma abstração. E se não houvesse gente...haveria tempo? Existe tempo no Cosmos? E pode haver ação sem tempo? O que é a eternidade?
   11- O Homem. O que é um homem? Eis um capítulo perturbador. Se um homem é razão, então uma criança deficiente ou vegetativa é o que? Se um homem é comunicação, então um animal que se comunique será humano? Sponville diz que para ele, homem é aquele que nasceu de um homem. Portanto, tudo o que é gerado por dois humanos é humano. Perigo apontado por ele: o dia em que homens puderem nascer de uma criação artificial, de uma fábrica, será isso ainda um homem? Se ele for sem falhas, sem dúvidas, sem medo, será homem?
   12- A Sabedoria....
   Esses os 12 capítulos. Que são os doze temas mais questionados desde sempre. E todos eles irrespondíveis. Jamais chegaremos a uma conclusão sobre a sabedoria, o homem, o tempo etc e etc. E nem devemos, pois o que tem conclusão está morto, está aprisionado. A ciência lida com conclusões, não a filosofia que não é ciência e nem é arte. ( Mas a ciência pode ser filosófica, assim como a arte ).
   Sponville não conclui portanto. Joga questões, as explica, aposta algumas teses ( filosofar é um jogo sem vencedor ), cita alguns filósofos.
   Se voce quer começar, eis seu livro.

TERRENCE MALICK/ FORD/ O DITADOR/ HANYO/ MORGAN FREEMAN/ JOHN WAYNE

   A DIFICIL VINGANÇA de Terry Miles com Christian Slater e Donald Sutherland
Dificil este modesto western passar aqui. Continuam insistindo em fazer faroestes sem ter nenhum conhecimento sobre a mitologia do gênero. Os atores não têm tipos fisicos para o assunto e sua linguagem cheia de Fuck é toda de LA 2012 e não de Dakota 1885. Nota 1.
   NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS  de John Ford com John Wayne, Claire Trevor, Thomas Mitchell e John Carradine
O Homero da América ( Ford ) e seu filme Odisséia. Uma diligência cruza território hostil. Nela vão os personagens icônicos do país: o jogador, o comerciante, o banqueiro-ladrão, a prostituta, uma esposa fiel, o bêbado e o fora da lei. Wayne tem seu famoso close, uma apresentação à eternidade como jamais outro ator mereceu. É uma aventura, é suspense e é um filme-mito. O elenco explode em carisma e Ford filma como quem narra uma saga cantada. É o mais americano dos filmes. Minha professora de literatura diz que gênio é o homem que capta todo o insconsciente de uma país e o traduz em linguagem. É o homem que traduz e batiza uma nação que não se conhecia e não se reconhecia. No cinema é John Ford esse homem. Ele captou a América de 1776 até 1976. Depois de então o mundo de Ford permanece como sonho perdido de uma ideal de país que não mais existe no mundo sólido, mas que se faz eterno e mitológico no universo do desejo. Um filme que não é o melhor de Ford, mas que é insecapável. Nota DEZ.
   A MOCIDADE É ASSIM MESMO de Clarence Brown com Elizabeth Taylor, Mickey Rooney e Donald Crisp
Quem criou este mundo? Tudo aqui é um tipo de paraíso: as casas, as pessoas, até mesmo as dores parecem paradisíacas. Eis o mundo que o século XX, sofrido, desencantado, pobre em sonhos, tolo, sonhou. Como cada vez mais descreio de criações vindas do nada, deve ter havido um dia um mundo parecido com este. Onde e quando eu não sei. Com certeza não em 1948. Liz tinha quinze anos então, exagera um pouco no choro. O filme fala de um cavalo e do sonho de uma menina em vencer um derby. Rooney está ótimo como um ex-jockey. É do tempo em que animais eram filmados como animais e não como pseudo-humanos. Nota 7.
   CREPÚSCULO DAS ÁGUIAS de John Guillermin com George Peppard, James Mason e Ursula Andress
E não é que é bom? Uma surpresa! A história fala de um ex-soldado de infantaria, que na primeira guerra entra para a aviação alemã. Ora, em 1915 aviação era coisa de nobres, de esnobes. Ele não é aceito e passa todo o filme quebrando regras de cavalheiros, sendo ambicioso e afoito, tentando se vingar do despeito com que é tratado. As cenas nos céus, com aviões de época, são maravilhosas. Nuvens, tiros, piruetas, quedas. Chegam a hipnotizar. Uma diversão correta, com belo estudo de um "herói" ruim, egoista e destrutivo. A fotografia de Douglas Slocombe é de arrasar. O diretor prometia bela carreira, mas se perdeu em filmes tolos. Este é ótimo. Nota 7.
   HANYO de Ki-Young Kim
É considerado um clássico do cinema coreano. Um casal contrata uma empregada. Ela seduz o patrão e a vida de todos vira um pesadelo. Um dos filmes mais desagradáveis que vi. Todos são cruéis, brutos, estúpidos. Pequenas violências se acumulam. O filme não é bom. Mal filmado e com atores muito ruins. Mas tem originalidade e em seu país é o equivalente ao que para nós é Glauber Rocha, fundador de novo caminho. Nota 4.
   UM VERÃO MÁGICO de Rob Reiner com Morgan Freeman e Virginia Madsen
Um escritor alcoólatra vai passar um verão na praia. Lá conhece familia de divorciada. Se aproxima das crianças e tudo acaba bem. Reiner teve seu momento ( Harry e Sally ), esse momento passou. Lançado este ano, duvido que passe por aqui, deve ir direto para dvd. Tudo é previsivel, todos se tornam bons com facilidade, tudo se resolve. Mas sei lá, às vezes a gente precisa desses filmes do bem. Relaxa ficar vendo essa gente legal vivendo de um modo legal e tendo um destino legal. Sei lá, de repente a vida é mais isto que um cara se entupindo de drogas e comendo mulheres modernetes na noite. Bem, pelo menos o meu mundo está, felizmente, mais perto disto. Nota 5.
   THE THIN RED LINE de Terrence Malick com Jim Caviezel, Sean Penn e John Cusak
Um amigo me fala que este é um dos filmes recentes do cinema que Pondé mais gosta. Então o revejo. Tinha a lembrança de ser um filme chato. Ele é. De ser apelativamente cruel, e é. Mas agora percebo algo que antes não percebera. Malick é um cristão no sentido medieval e "puro" do termo. O mundo é um horror, os homens se matam, se comem, e em nada mais conseguem crer, Acreditam apenas na força e na dor. Então vivem uma realidade de força e de dor. Um mundo de gemidos, sangue, tiros e solidão extrema. Mas, para quem ainda quer ver, existe a folha que balança, um raio de sol na água, bichos olhando distanciados, praias e crianças. Caviezel ainda pode ver. O mundo dele é o mundo do espirito. Ele não se deixa engolir, não se deixa perder. Para Malick, o que podemos fazer é conquistar nossa alma, ela é nossa potencialmente, cabe a cada um a merecer. Caviezel a possui. Penn talvez um dia a obtenha. O comandante feito pot Nick Nolte é a carne absoluta. Todos os filmes de Malick repetem esse mesmo tom. Este, talvez o mais crú, é o mais dificil. Com certeza foi por este papel que Caviezel se tornou o Jesus de Gibson. Nota 8.
   O DITADOR de Larry Charles com Sacha Coen
Não é cinema. É um programa de Tv. Engraçado? Poucas vezes. Tem a fluência atravancada de Austin Powers. Mas Powers era mais engraçado. Humor rasteiro, de amigos bêbados, fácil de fazer. Basta atirar pra todo lado e pensar que o público é idiota. Tão ruim quanto Borat, ele faz humor sem alegria, risos sem celebração. É o humor pesado, o anti-humor segundo Comte-Sponville. Nota 2.

LEI, BONS MODOS, VIRTUDE E AMOR

Uma das melhores sacadas de Comte-Sponville é quando ele percebe que se houvesse o amor, se ele fosse predominante, a virtude, a boa educação e a lei seriam supérfluas.
A lei, a coerção, só é necessária quando não existem bons modos. Em lugar onde todos respeitassem a boa educação, o bom convívio, não haveria a necessidade de leis ou de quem observasse sua vigência. Onde a virtude fosse seguida, com naturalidade, não haveria o porque do código de educação e civilidade. Pessoas virtuosas não precisam seguir código nenhum para o convivio entre iguais. E onde o amor fosse dominante a virtude seria vã.
O homem criou as virtudes para que onde não há amor possa haver o simulacro desse amor ausente. As virtudes são as regras de comportamento de quem não ama mas se comporta como se amasse.
Assim, os bons modos são o simulacro da virtude quando ausente. Dar o lugar no ônibus não é ser virtuoso, é parecer ser. Dizer obrigado ou por favor não é ser compassivo ou agradecido, mas é uma forma pobre de parecer ser.
Onde nem os bons modos existem é necessária a lei. O convívio se faz pela ameaça e pela vigilancia. O respeito entre iguais é obrigatório. Haverá um simulacro de bons modos.
Me parece que estamos indo a passos largos para o mundo da lei. Apenas a vigilancia e o castigo mantém algum nivel de civilidade. Humildade, caridade, coragem, amor, sinceridade, castidade... só à força da lei. Só aos olhos vigilantes do mundo.
O que leva também a constatação de que o amor eros só é dominante onde o amor philia não se faz presente e o amor philia domina quando não há agape. Se todo amor fosse agape não haveria necessidade de philia e se todo amor fosse philia não seria preciso eros. Temos a necessidade de leis porque os bons modos se foram, temos necessidade de bons modos porque a virtude desapareceu e criamos as virtudes porque o amor deixou de comandar.

O AMOR- ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

Um pequeno livro lançado primeiro no Brasil. Trata-se de uma compilação de alguns dvds em que André discorre sobre o amor. Para quem leu o obrigatório "PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES", este livro é um complemento.
Existem 3 formas de amor, como voces sabem. Eros, Philía e Agápe. Eros sendo o mais básico e comum, e Agápe o mais raro. Platão institui o amor Eros, Schopenhauer o desenvolve e Freud, discípulo de Schopenhauer, o cristaliza. O que seria esse amor-Eros? No Banquete, Aristófanes fala da história dos hermafroditas. Seríamos esses seres incompletos, e o amor seria a busca por essa outra metade. Todos conhecem essa lenda. O que muitos esquecem é que Platão discorda dessa crença. No Banquete, como em tudo, Platão está ao lado de Sócrates, e Sócrates fala que amor é falta, vazio, desejo puro. Desejamos aquilo que não temos, e como desejar aquilo que temos? Impossível. O amor nada mais é que essa insatisfação sem fim, miragem que ao ser atingida se desfaz. Desejamos, obtemos e descobrimos então que não era aquilo que queríamos. Partimos pra outra busca. Schopenhauer vai mais longe, é famosa sua frase que diz que viver é estar num pêndulo: balançamos entre o desejo e o tédio, pois sempre que conseguimos o que queremos ( seja trabalho, bens materiais ou vida amorosa ) nos deparamos com o desencanto que leva ao tédio. Um homem, ou uma sociedade que satisfaça todos os desejos será uma sociedade desencantada e entediada.
Mas Comte-Sponville diz que algo não bate aí. Existem casais que permanecem em constante desejo. Existem amores ( ao trabalho, a arte, a vida, aos amigos ) que não morrem, embora sejam raros. O que os explica? Que amor é esse?
Surgem Aristóteles e Espinoza dizendo que o amor é "regozijar-se". O amor não é um vazio que ansiamos por preencher, ele é antes uma potência, uma força que nos leva ao prazer, ao usufruto da vida. Não somos seres desesperados, incompletos, que sem livre-arbítrio algum, correm em busca de um amor que será sempre uma decepção. Somos sim seres que nascem com uma potência amorosa, uma vontade de amar, e livremente, partimos em busca desse amor pleno. Ao ser encontrado podemos gozar essa potência, podemos nos realizar como seres potentes. Esse é o amor Philia, amigo.
Comte-Sponville alerta que principalmente para jovens adolescentes, esse amor descrito lhes parecerá decepcionante. Estamos condicionados ao sofrimento romântico e pior, ao eterno mercado da atualidade. Um amor Eros consome sem parar, um amor Philia usufrui do que já possui. É um amor que dá todo o tempo, se doa, pensa no prazer do outro. Nele existe a chance de se livrar do Ego ( e Sponville cita a terrível frase de Pascal : "Odeie seu Ego", e a explica. Todo o inferno do mundo vive no ego. Matar o ego, que é o que ocorre em Philia, é viver o outro, se dar, livrar-se de si. ), é um amor que aumenta com o convívio, que procura mais no que já se tem.
Por fim, e estou condensando bastante o texto, há o amor Agape, amor a Deus. André é ateu, mas ele explica algo que me intriga: Como é possível que pessoas que se dizem "cultas" possam ignorar a religião? Nada pensar e nada saber sobre religião é como estudar medicina sem querer entender de biologia. Nosso mundo, nossa filosofia, nossa arte, nossa mente, nossos sentimentos são todos consequencia de um mundo de religião. Nada saber sobre isso é optar pela cegueira.
O que seria então esse amor Agape? André confessa que nunca o viu. O que não o invalida. Seria um amor que existe como ideal, como meta máxima a nos guiar. É o amor que se retira, o amor que dá espaço, que dá vida. Explico. André usa como exemplo o amor de mãe. A mãe ama seu bebê. E provávelmente não é amada do mesmo modo. Primeiro fato: Agape é um amor que existe por si-mesmo, não precisa de reciprocidade. Segundo: a mãe, que ama seu filho, poderia sufocá-lo de amor. Fazer dele seu brinquedo, ser para ele TUDO. Mas, e essa é a maior prova de amor possível, ela lhe dá espaço, afasta-se para que ele possa crescer, para que ele possa SER. Esse é o amor de Agape, amor que não é comentado entre os gregos e que nasce com o cristianismo. O amor da potência que se nega, da força que se torna conscientemente fraca, da auto-anulação. É o amor que se retira. Entre homens e mulheres é um amor que André jamais viu. Mas entre mãe e filho ele ocorre a toda hora. Amar e abrir mão. Sponville cita então a mais perfeita filósofa moderna do amor, Simone Weill: "Amar um estranho é transformar a si-mesmo num estranho". Esse é o caminho de Agape, o ego deixa de ser o centro, o outro é o que importa.
Leiam. Amorosamente.

SIMONE WEILL E O AMOR

O que é este mundo senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância ( a que chamamos espaço ), sua espera ( a que chamamos tempo ), sua marca ( a que chamamos beleza ) ?
Deus só pode criar o mundo retirando-se dele, ou então só haveria Deus. Ou se nele se mantém é sobre a forma de ausência.
É preciso estar no deserto, pois aquele que é preciso amar está ausente. Mas por que essa ausência? Por que essa criação/desaparecimento? Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a uma distância. Por que o mundo? Por que a criação?
Deus criou por amor para o amor. Deus não criou outra coisa que não o amor e os meios para esse amor.
A criação é da parte de Deus um ato não de espansão de si mas de retirada, de renúncia. Deus aceitou essa diminuição, esvaziou de si uma parte do ser. Deus permitiu que existissem coisas diferentes de si. Diferentes dele, e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo como Cristo nos preservou nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele.
As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua secreta presença aqui em baixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande revelação.
Esse amor é o contrário da violência, da força que se exerce como poder que governa.
Os filhos são como água, ocupam todo o espaço disponível. Mas não Deus, senão só haveria Deus e não haveria o mundo. Mas os pais não, eles se retiram, recuam, não exercem todo o poder que têm. Por que? Por amor, para deixarem todo o espaço aos filhos, para lhes dar poder, para os ver crescer. Para deixa-los existir e não os esmagar com sua presença, com seu amor, com sua força. A fraqueza comanda então e é esse o amor divino. Amor que prefere dar a possuir, perder a ter poder, amor que recua e deixa o outro crescer.
Essa é a síntese do maravilhoso texto de Simone Weill. Texto que mexe comigo não por eu ser cristão ou budista, ateu ou celta, mexe por ser a mais alta e bela forma de amor possível. André Comte-Sponville, sendo materialista, traz esse amor ( Agapé ) para os casais possíveis... leia:
À força de ve-la tão bem, tão forte, tão feliz, a força de ve-la tão bela, tão inteira e livre, voce sente como que um cansaço, que voce mesmo deixa de existir cada vez menos, voce quer chorar ou melhor, ficar só. Se afasta por amor e por amor se entristece. Cesare Pavese tem uma frase: " Voce será amado de verdade, no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro aproveite-se disso para afirmar sua força". Esse é o mais raro e milagroso amor, o amor dos santos e dos sábios. Se voce recua um passo, ele recua dois. Simplesmente para lhe dar mais espaço, para não esbarrar em voce, para não o invadir. Para não lhe impor sua potência, sua força, nem mesmo sua alegria e seu amor, para lhe deixar crescer. Uma renuncia a plenitude do ego, renuncia ao poder.
Simone Weill: " Amor é renuncia e abnegação. O amor é fraco, Deus é fraco, embora onipotente, pois é amor." Frase do filósofo francês Alain: " Cabe dizer que Deus é fraco e pequeno, e sem cessar moribundo entre dois ladrões, pela vontade de uma insignificante policia. Sempre perseguido, esbofeteado e humilhado, sempre renascido em três dias. Amor contrário da força."
Fala agora Comte-Sponville: " Esse tipo de amor tão raro fala fundo com nosso cansaço, com nossa solidão, com nossa desesperança. Parece tão doce, tão puro, tão nobre que toca em um tipo de nostalgia, de ansiedade que todos temos. Amor que se retira, que dá sem esperar, que se abnega, que é fraqueza, é delicadeza, é ter tudo por nada querer e por tudo amar. Amor sem interesse, sem objetivo, sem orgulho, sem futuro e sem opressão. Deus nada tem a ganhar conosco pois nada lhe falta, Ele nos ama não pelo que somos ou pelo que fazemos, nos ama por ser Ele amor e o amor a tudo ama. O amor é injustificado. Espontâneo. O homem não é amável, Deus é que é o amor.
O amor que podemos viver, nós simples mortais, seria uma tentativa, pobre, de provar esse amor/agapé, de mais que amante, ser o amor, mais que amado, dar e amar, mais que ter e exigir, deixar viver e deixar crescer. Mas limitados por eros que ansia e deseja tudo completamente, e por phillia que é ação e é potência, nos debatemos e nos perdemos do pouco que podemos ser.
Será que sempre estive errado, e na verdade, em vez de existirmos para entender a vida, estamos aqui para amar e ser o amor?

O AMOR ( MAIS UMA VIRTUDE )

E o livro de André Comte-Sponville termina com a virtude amor. É o capítulo mais longo ( 40 páginas ) e um belo final para um livro viciante. Senti uma grande tristeza quando o terminei. Me acostumei com as lições virtuosas, com o modo claro e muito instigante de Sponville. E compreendi tudo o que ele diz. Livro virtuoso. Para falar de amor, Comte-Sponville usa a ajuda de Platão, de Aristóteles e de Spinoza ( nomes constantes em todo o livro ), mas aqui ele acrescenta Stendhal, Freud e Simone Weill. E é essa mulher, Simone Weill, quem escreve a mais bela página sobre o amor que já li. Mas vamos pelo começo.
Primeiro fato: a moral só existe onde não existe o amor. Mais: as virtudes são necessárias por sermos pouco amorosos. Se o amor fosse mais comum, tanto moral como virtude seriam dispensáveis. Problema: Não amamos o que queremos amar. Amamos o amor e o inferno é viver sem esse dom de amar o amor ( e não o de não ser amado ). Então André passa a analisar o mais conhecido e influente texto ocidental sobre o amor. O Banquete de Platão e a imagem que Aristófanes propõe: a dos hermafroditas. Amamos a metade que perdemos e o amor verdadeiro é encontrar a outra metade. André logo a destrói citando o final do mesmo livro, onde Sócrates diz que amar é uma falta, um vazio. E é então que começa a exibição de verdadeira filosofia de André Comte-Sponville.
Ele demonstra a validade plena desse pensamento. Nos convence de que o amor é sim um desejo de preenchimento, uma vontade de encontro. Ele é esse desejo, e não o encontro. Ao sermos unidos perdemos esse desejo e imediatamente sentimos que o amor foi traido. Para a sobrevivencia desse amor é preciso a não-satisfação, a ponte que não une, a distância. É a paixão exigente, o sempre querer mais e mais, a vontade de posse absoluta. O amor é então esse não ter, esse não conseguir, essa derrota. Citando De Rougemont, ele logo percebe que é um amor mesclado a morte, que só pode sobreviver nela e que procura-a como ponto mais elevado e final. Esse é o amor que domina o ocidente, o amor louco, o amor ansiedade, o amor dolorido. Mas, eis que o autor resolve falar do amor como potência, o amor do qual fala Spinoza.
Indo contra Platão, Spinoza chega a idéia de que o amor não é uma falta, um vazio, mas que ele é antes uma potência. Ele é uma força que nos empurra a ação, uma energia que não é imortal mas que é a vida em sua plenitude. A tristeza que há em casais rotineiros, em sexo mecânico, não é o vazio do amor mas sim a potência exigindo sua ação. Ora, se o amor é uma potência, se ele é a vida, o amor é uma alegria. Esse é o ponto oposto a Platão que vê no amor uma tristeza. Para Spinoza não é o amor que deve ser culpado, mas sim nossa falta de coragem e de talento para o viver. A vida pode ser triste e disso o amor não é culpado, muito ao contrário.
Comte-Sponville demonstra essa verdade com vários exemplos, e diz que além de vivermos numa cultura platônica, não percebemos que amor não é fuga, pois amamos coisas que não mudam, não fogem e que são simples. Amamos uma praia, um animal, uma música, um amigo, um filho. Esse amor jamais arrefece e o amado não muda, não desaparece, e nada tem de misterioso. Então porque existem tantas pessoas incapazes de amar em paz? Que só amam o que não possuem? A resposta está no próprio amor. O amor incompleto, possessivo, é um amor não-virtuoso, ainda sendo amor, mas nada tendo de virtude. É amor que exige, que proibe, que não espera. Amor que não possui doçura, humildade, compaixão, justiça, generosidade e principalmente gratidão. É amor que é apenas desejo erótico e mais nada. Amor centrado no ego de quem ama, amor que quer se amar através do outro. Amor egocentrico então.
O amor em paz e alegria é o amor phillia. Amor amigo ( e todas as adolescentes odeiam sequer imaginar que possa haver um amor amigo ). Amor que dá e que agradece. Amor que acaricia, que suaviza, que escuta. Onde há o desejo erótico, mas não a posse absoluta. Justo, humilde ( ele sabe não ser merecedor ), doce. Nesse amor o objetivo não é ter, é conhecer, não é possuir e sim dividir. Nada de união de metades e sim a formação de vários seres. Companheiros.
Seria lindo se tudo fosse só isso, mas não é. E é então que Comte-Sponville nos arrasa. Mostra que amar é eros sim, que é vazio sim, e que amar também é potência e alegria, amizade e paz. Mas que mesmo assim ainda o achamos incompleto, temos a sensação de que deveria e poderia ser mais. Mais o que? E por que?
Vem a parte final, parte que me fez chorar ( e é muito raro eu chorar com um livro ), parte que tem o texto de Simone Weill, e onde o ateu André Comte-Sponville fala basicamente de Deus ( para depois o negar ).
Começa falando do leite materno. E cita,para então complicar, Freud. Sim, nasce aí nossa referencia de amor. Mas é mais que eros, mais que incesto, mais que tabú. É sacrificio. O amor de mãe e de pai é um amor que se sacrifica. Se amando o objeto que desejamos nós nos homenageamos através dele, se com o amor amigo nos aconchegamos nele, no amor de familia tudo é amor sem esperança. É amor que sabe que será abandonado, mais que isso, deverá ser abandonado. É o amor em sua mais profunda expressão humana. O amor que vai além do dar, o amor que se sacrifica. Continuemos.... André Comte-Sponville cita então o texto de Simone Weill, texto maravilhoso que fala do amor de Deus ( pois André começa a indagar como Deus poderia amar o homem e deixar que tanto mal acontecesse a seus amados filhos ). Para Simone, Deus amou tanto que se ausentou. Ele se sacrifica e se distancia para ver seus filhos crescerem, para vê-los sobreviver e amadurecer sem Ele. Cristo na cruz seria explicado então. A beleza do texto e engenhosidade é tamanha que meus olhos se encheram de dor ao imaginar tamanho amor da forma como ela descreve ( forma que aqui não há como reproduzir ). André diz então: como Deus não existe, o que nos importa esse amor sobre-humano, divino? Importa porque ele nos mostra que o amor só pode ser completo se formos além do próprio amor. Como? Amando não o desejado, não o amor amigo e nem mesmo o filho. Amando o inimigo. O autor é ateu mas passa todo o livro, como justo e virtuoso que tenta ser, citando e elogiando o que existe nos evangelhos e em filósofos cristãos ( e para ser ateu é preciso conhecer e entender o porque da fé ). O amor se realiza completamente se ele for amor incondicional, amor a tudo, principalmente a quem lhe é estranho. Pois o amor não é vazio, não é ego ou desejo de posse, amor é transcendencia, é aumento, é anular a si e expalhar-se pela vida. Voce pode e deve amar sua mulher, seu amigo, seus objetos, mas não pode tolher o amor a apenas isso. Essa a lição de Deus, de Cristo, de Buda. O amor está além de nós, ao redor de nós. Platão acertou, Spinoza acertou, Stendhal acertou, mas erraram também por não perceber que ele não é eu e voce, ele não é nós, ele é tudo. Dirigir esse amor a uma pessoa, seja ela amante ou esposa, a vinte amigos ou a uma profissão é não saber viver esse amor vivo.
Como toda virtude, só sábios e santos podem atingi-la, mas o que devemos fazer é reconhecê-la e tentar, humildemente, honrá-la. Em outra postagem irei transcrever o texto de Simone Weill.

HUMOR, DO PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES- ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

Seriedade em relação a nós mesmos é egoismo, seriedade em relação aos outros é altruísmo. O humor nos salva da primeira e nos ajuda a despertar para a segunda. Nesta virtude de número 17, Comte-Sponville nos surpreende e executa a verdadeira missão do filósofo: faz com que vejamos o humor por outro ponto de vista, subverte o nosso pensamento. Quem quiser saber mais sobre o autor e sobre esse magnífico livro, leia o texto que postei anteriormente.
O humor impede nosso excesso de satisfação, diminui nossa vaidade, tira de nós a seriedade do compromisso conosco. Tudo o que não é trágico é irrisório. Montaigne preferia o riso a lágrima porque sabia que mais sábio é o que percebe o ridiculo da vida: "Vaidade e tolice em excesso. As lágrimas levam a sério demais nossa condição, o riso percebe mais profundamente nossa falsidade, nossa maldade, nossa falta de nobreza."
Mas Comte-Sponville faz uma certeira distinção ( e que explica minha aversão pelo humor que mais se faz hoje, seja em cinema, tv ou principalmente a tal stand up ), é que o humor não é a ironia. Ambas são engraçadas, mas a ironia é uma arma apontada aos inimigos ( reais ou não ), a ironia é zombaria, é maldade, é destruição, jamais virtuoso. Útil? Desde que usado para o inimigo certo toda arma pode ser útil, mas jamais uma virtude. Por que não é virtude? Porque se leva sempre a sério, é o riso daquele que se põe acima de seu alvo, que se vê como mensageiro, do que não se mistura. O ironista está sempre à parte, ele zomba dos outros, ri do mundo, mas não de si mesmo. O ego comanda a ironia, o ego é preservado. O humorista irônico é sempre aquele que se faz mais inteligente que seu alvo, que se coloca muito acima de seu meio. Nada tem de doce, de compassivo, de virtuoso.
Já o humor quebra o orgulho através da humildade. O humorista autêntico é parte do grotesco e do ridiculo, ele é generoso por exibir nossa tolice, nosso medo, nossa mediocridade, e ser, virtuosamente, parte dessa desilusão, dessa dor risonha. Isso é virtuoso, pois conjuga coragem, bondade, doçura, humildade, amor.
André Comte-Sponville dá então exemplos do que é humor virtuoso ( e é triste ver o quanto Woody Allen já foi gênio e o quanto ele se tornou um simples ironista ). Frase perfeita de Woody Allen: A única coisa que lamento é não ser outra pessoa.
O humor é um luto que se vence, a ironia é um assassinato. O humor desarma o ódio, vence o desespero e aguça a inteligencia. Frase de Pierre Desproges ao saber estar com cancer e dizendo isso aos amigos: Mais canceroso que eu voce morre. Não rir contra, rir com. O humor aceita o mundo como é, e diz: Veja! È uma brincadeira de crianças! É como o condenado a morte que levam a forca na segunda-feira e que diz: A semana começa bem! Frase de Freud: O humor não tem algo apenas de libertador, ele também é coragem, é sublime, elevado. Tela de Litchenberg: Faca sem Lâmina onde falta o Cabo. Woody Allen aprendendo leitura dinamica: Li toda Guerra e Paz em vinte minutos! Fala da Rússia!
O humor exorcisa o medo. Woody de novo: Embora não tema a morte prefiro estar longe quando ela chegar. Numa frase assim onde a ironia? Onde o ego de Allen? Outra de Woody, esta genial: A eternidade é longa principalmente quando vai chegando ao fim.
A frase humorística favorita de Freud ( que adorava o humor ) foi lida por ele num anúncio americano de uma casa funerária: Para que viver se voce pode ser enterrado por dez dólares?
O humor é então uma desilusão alegre, uma forma sábia de sair da questão "Quem sou?" sem se deixar enredar por ela, mas sim dando um salto e rindo dessa absurda seriedade. O humor então não é o absurdo, a vida, nós o somos. É o Coelho Pernalonga dando um beijo no bandido no ápice do duelo, Groucho Marx apostando nos cavalos em meio a ópera. O humor desnuda, revela, rebaixa as falsas seriedades, destrói a vaidade. Como não chamá-lo de virtude?

QUEM AMA A VIDA DEVE LER: PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES- ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, OBRIGATÓRIO!

Sponville é um filósofo francês, que se define como um metafísico materialista e um espiritualista sem Deus. Este livro, reeditado agora e absolutamente obrigatório, é uma aula, um texto claro, límpido, mas não pop, sobre o que sejam as tais virtudes, essa coisa hoje tão fora de moda, e portanto, tão necessária. Aqueles que gostam dos textos de Pondé ou de Calligaris irão descobrir aqui todo o prazer que seus melhores textos tem, porém, multiplicados por mil. Este livro é uma obra-prima.

Tudo o que transcreverei aqui é totalmente tirado daquilo que André Comte-Sponville escreve, apenas com a condensação de que me acho capaz. Como todo bom autor francês, ele adora desenvolver jogos de palavras, tem um estilo que vasculha tudo, que conduz o leitor aos recantos do assunto e melhor, surpreende sempre. Mostra que tudo é mais do que parece, mas, como amante de Montaigne, tudo é mais simples, em seu fim, do que nossa cega razão tenta crer. Montaigne, Aristóteles, e principalmente Spinoza, esses são os guias de Sponville. Ele sabe que de Kant em diante a filosofia se perde em construções feitas para turvar o que é claro e enganar com poeira aquilo que nada tem a demonstrar.

Virtude é aquilo que faz a vida valer a pena. É uma superação do instinto, uma melhoria do que somos. Ela nunca é natural ( talvez só o amor o seja ), é ensinada, jamais pelos livros, sim pelo exemplo. Toda virtude é o bem, sua ausência é o mal. Mais que isso, sem as virtudes a felicidade se torna impossível. Sponville escreve então 18 capítulos, cada um sobre uma virtude, e pasmem, me convence plenamente. Sua abordagem é sempre racional, lógica, objetiva.
Transcrevo aqui uma modesta fração de seus textos. Procure o livro, dê esse prazer a voce mesmo e aprenda a valorizar as virtudes.



1- A POLIDEZ

A menor das virtudes, é a base de todas as outras. Não existe virtude sem polidez, e a criança começa a ser virtuosa ao aprender a ser polida. Polidez é disciplina e não é moral. Um nazista pode ser polido, um assassino pode ser polido. Mas sem ela não há educação. Sacada de Sponville: os certinhos, polidos ao extremo, são crianças para sempre, crianças grandes e patéticas; a polidez deve ser quebrada na adolescência, quando ela dá lugar a autenticidade. E adolescencia prolongada é preferível a infancia adulta. A polidez é portanto a base de toda a virtude, mas uma base que deve ser violada ( às vezes ) e questionada ( sempre ).

2- A FIDELIDADE

O espírito é memória, pensar é sempre lembrar. O corpo é um presente constante, o corpo conhece o tempo, o espírito lembra. E se ele lembra, se ele vive na lembrança ( entenda, Sponville é ateu, espírito aqui sempre terá o sentido de vida interior ), ele será fiel ou perecerá.

Ser feliz é esquecer, mas é esse o objetivo? Ora, a dignidade do homem reside na memória, é ela que dá valor ao que fomos, ao que suportamos. Em mundo de ciência, a memória perde seu valor, pois a ciência não pode ter memória, ela pensa apenas o futuro e descarta o passado ( assim como o mercado faz ). Mas o homem é espírito pela memória e humano pela fidelidade.

Justiça é fidelidade dos justos, a paz é fidelidade dos pacíficos, liberdade é a fidelidade de espíritos livres. Esquecer é uma higiene, lembrar é uma moral. Memória do que? Memória do mesmo, um não a versatilidade e ao excesso. O ser se mantém na fidelidade a sí-mesmo. O eu, como tudo, é mudança, mas a fidelidade procura manter a identidade, o compromisso com aquilo que fui. Ela vence sempre provisoriamente, mas se recusa a desistir.

Gratidão pelo passado, piedade pelo passado, justiça ao passado. Fidelidade ao amor, esse é o sentido. Ser fiel é amar. Vontade, desejo de ser fiel. A filosofia é fiel, todo filósofo lê Aristóteles, Platão, se não o ler não pode ser filósofo. Fidelidade na arte. A ciência não pode ser fiel, nenhum cientista deve ou precisa ler Newton. Ciência é esquecer, tornar obsoleto.

A fidelidade é a vitória do espirito judaico sobre a razão nazista. O nazista encerrava todo o passado, criava o futuro biológico, cientifico; o judeu é a fidelidade ao passado, o amor ao passado, a crença na origem. Geometria jamais salvou alguém, nenhum remédio alegra.

Fidelidade parece conformismo. Será? Vejamos: se revoltar e esquecer o passado. Esquecer quem? Sócrates? Jesus? Buda? Montaigne? Spinoza? Ora, toda moral e toda cultura é passado, ela morre sem fidelidade.

Amor infiel é amor que nega o amor que um dia viveu. Amor infiel não é amor livre. É amor renegado, que detesta o que amou, que se esquece, que se detesta. "Ama-me enquanto desejares, amor, mas não nos esqueça."

3- A PRUDÊNCIA.

É a virtude mais esquecida. Pensa-se nela como um tipo de covardia. Não. Prudência é o fazer inteligente. Respeitar seu tempo, não se precipitar. Ser prudente é ser responsável.

4- A TEMPERANÇA.

Ter prazer sem se tornar escravo desse prazer, saber usar as coisas sem se enfastiar delas. Não é desfrutar menos, é desfrutar melhor. O destemperado é escravo de seu corpo e carrega seu amo consigo. O melhor, não o mais. Pão e água que não faltam ( quase sempre ), ouro e luxo que faltam sempre ( por mais que se tenha ). Poder da alma sobre o impulso, afirmação sadia do poder de se existir.

5- A CORAGEM.

Não há virtude mais admirada. Mas, ao contrário da temperança ou da doçura, que são admiradas apenas por aqueles que desejam ser virtuosos, os imbecis e os maus também admiram a coragem. Pois ela pode servir ao bem e ao mal. A coragem não é uma virtude em sí, ela pode se tornar e potencializar as outras virtudes. A coragem só é virtuosa quando desprovida de egoismo, quando não visa o aplauso, quando é sentida como um dever ao outro. O medo é egoista, a covardia é egoismo, são presos ao ego. A coragem virtuosa transcende esse ego, é a coragem de ser virtuoso.

Coragem é um ato, não um saber. Não se aprende, e não se é corajoso amanhã. Toda razão é universal, toda coragem singular, a razão é anonima, a coragem pessoal. Coragem é uma vontade, quem é corajoso deseja ser corajoso, paga o preço de sua coragem.

6- A JUSTIÇA.

Como a justiça seria a igualdade e a igualdade é impossível, a justiça é sempre aquilo pelo que lutamos. Ela existe no ideal, na fidelidade a esse ideal. A justiça é sempre virtuosa.

7- A GENEROSIDADE.

Ser generoso é um dom. Ninguém se torna generoso. Ser generoso não é ser solidário, voce pode ser solidário ao mal. A generosidade é mais que isso, é simplesmente dar, e dar é sempre ser livre, pois só damos aquilo que temos e não nos possui. A generosidade, se unida a coragem resulta em heroísmo, se unida a doçura dá em bondade. Todo generoso é feliz, pois ele é livre.

8- A COMPAIXÃO.

Compaixão é partilhar uma dor. Não é piedade, pois piedade é estar acima da dor do outro, a compaixão é horizontal. Compaixão é simpatia desinteressada, simpatia mesmo aos animais, simpatia àquilo com que temos deveres ( e temos sim deveres para com os animais ). Diferença entre ocidente ( masculino ) e oriente ( feminino ): no ocidente é "ama e faz o que queres", no oriente é "compadece-te e faz o que deves". A compaixão, como toda virtude, nos faz feliz, mesmo que as vezes pareça o contrário. Elas nos livram do medo, da raiva, da inveja, do ódio, do poder absoluto do ego. A compaixão, que é a mais dolorosa das virtudes, acaba por nos libertar.

9- A MISERICÓRDIA.

Perdoar não é esquecer, pois seria infidelidade ao passado. Perdoar é cessar de odiar, sem esquecer. A misericórdia nega um desejo ( vingança ) e vence um impulso ( o ódio ). Vencemos o ódio em nós, já que não se pode vencer o ódio no mundo. Misericórdia não é desculpar, desculpa-se o ignorante, o que se perdoa é sempre um mal. O perdão é então a liberdade. Livra-se do ódio aprisionador. O homem tem livre ação, mas não possui livre vontade, o perdão é uma vontade livre. Spinoza:" Os homens se detestam mais quando se imaginam livres, e tanto menos quando se sabem determinados". Malraux:" Julgar é não compreender. Se compreendemos não podemos julgar." Spinoza:" Nunca zombar, nunca chorar, não detestar, isso é compreender."

Aplacar o ódio possibilita a justiça e o castigo sereno. O mal passa a ser compreendido, mas jamais ignorado.

Dizem que o nazismo é incompreensivel. Isso é lhes dar crédito demais! Mozart é incompreensivel, Vermeer o é, mas as S.S.? Pois a vida seria racional e o ódio não? O nazismo não é razoável mas é real, portanto ele é racional. Podemos deixar de odiar os nazistas, mas jamais esquecer. Combater, mas combater sem ódio. Toda a virtude é esforçar-se nesse sentido.

10- A GRATIDÃO.

Só agradece quem não é egoista. Agradecer é prolongar um prazer. Gratidão é generosidade, desprendimento, é a música de Mozart: agradecimento a vida por se viver.

O egoista agradece para fazer invejosos. Guarda seu prazer em si, quem agradece espalha esse prazer. O egoista jamais reconhece o que deve. O grato dá o prazer de receber, reflete aquilo que lhe é dado. O egoista absorve sovinamente tudo, ele mata a alegria.

Voce agradece a alguém, virtude que confirma o outro, que une. Bach agradece, dá graças a seu dom, Mozart é a graça, graça de quem se sabe efeito e não causa, de quem é arrebatado e não senhor. A graça de existir sem o merecer, de ter o dom sem o pedir. A Ètica de Spinoza é isso. A graça de amar, a maior das alegrias.

11- A HUMILDADE.

Virtude invisivel, pois quem se gaba dela não o é. Filósofos não são humildes ( fora Montaigne ), pois se levam a sério demais. Ser humilde á amar a verdade sabendo que toda verdade é falha. Humildade é saber que essa falha existe e é nossa. Freud é um mestre dessa humildade. Conhecer-se como pequeno e reconhecer algo maior não é pequenez, que é se humilhar, se fazer baixo. O humilde reconhece sua fraqueza, sua tristeza, mas se afirma nela, a usa como força.

Mais vale uma verdadeira tristeza que uma falsa alegria. Orgulhosos vêm a humildade como humilhação.

Kant dizia que se ajoelhar na igreja é se humilhar. Será? Mendigar seria se humilhar. Será? Há algo para se condenar em São Francisco ou em Buda? Seria humilhação se ajoelhar diante de Mozart ou de Spinoza? O erro ( mais um ) de Nietzsche que confunde a falsa humildade do perverso com a verdadeira humildade. Descartes:" Os mais generosos são os mais humildes." Nietzsche:" A humildade é virtude de escravo, para os amos a humildade é desprezível". Mas o desprezo não é mais desprezível que a humildade? O que é mais ridiculo que a glorificação do eu-mesmo, o super-homem? Para que deixar de crer em Deus se é para se enganar a esse ponto? Por que quebrar todos os ídolos se é para se glorificar o eu?

Humildade é sinceridade, ou se ama a verdade ou se ama a si. A humildade leva ao amor, pois sem ela o eu ocupa todo o espaço. A humildade dissolve a prisão do eu. Somos tão pouca coisa, a humanidade é tão irrisória, como imaginar que Deus tenha desejado isso? A humildade, nascida da religião, conduz assim ao ateísmo: crer em Deus seria um orgulho.

Adendo meu: No Budismo, Deus é um vazio que não criou o mundo. Deus e mundo foram criados juntos. É a única religião em que se pode crer sem cair nessa armadilha do orgulho.

12- A SIMPLICIDADE.

O real se basta. O animal se basta. Ser simples é viver o hoje sem pensar sobre o pensamento. É o olhar, olhar as coisas e vê-las em sua simplicidade. Uma flor floresce porque floresce, nada há de oculto aí. Simples é o ser portanto. O contrário da vaidade, que é sempre presunção e toda presunção é sempre complexa.

A maior prova de inteligencia é simplificar ao máximo aquilo que é complexo. Como a má-fé é complicar uma idéia simplória. ( O que muitos artistas falsos fazem sempre e que impressiona os ingênuos ). A filosofia atual, que tudo complica, na verdade cria sistemas complexos para não poder ser refutada. Cria labirintos que nada explicam. Água rasa que é suja para não se ver sua falta de profundidade. Pois toda verdade é sempre simples. E simplicidade é o esvaziar do si. E o esvaziar do si é a base de toda virtude ( não há nenhuma virtude possível no egoismo ).

A simplicidade é o resgate da infancia que deveria ter sido e que nunca é. É a virtude dos sábios e a sabedoria dos santos.

13- A TOLERÂNCIA

É a mais perigosa das virtudes. Tolerar o que? Ser tolerante e não discriminar?

É este o capítulo mais espinhoso do livro. Mas André Comte-Sponville se sai muito bem. A tolerância deve ser ilimitada quando ela não coloca a liberdade em perigo. Voce pode discordar de um racista, mas ele pode ser tolerado enquanto não ameaçar a existência da própria tolerância. Um dado muito interessante: toda tirania começa pelo relativismo. Quando uma sociedade pensa que tudo tanto faz, que isso ou aquilo dá no mesmo, é aberto o campo para a verdade do mais forte, a tirania.

14- A PUREZA.

Eis a mais dificil virtude de ser apreendida. Porque a pureza não existe. Viver é ser impuro. Mas então que pureza virtuosa é essa? A pureza é uma luz. Sponville se recorda das meninas puras que amou na escola. Elas não eram assexuadas, eram luminosas, eram passíveis de serem maculadas.

A pureza hoje se confunde com higiene, profilaxia. Mas o limpo não é puro e o sujo não é impuro. Pureza é inocencia, do corpo e do espirito. Dado: Toda mulher que tem a coragem de relatar um estupro se queixa principalmente da sujeira do ato. Sexo impuro, casamentos impuros. Impureza seria então o fazer sem desejar. Vem daí: O coração é puro, só ele é puro e só ele purifica ( E eu digo: -Parabéns André!!!!!!!! Que belo pensamento, digno de Montaigne!!!! ). A saliva que é cuspida ao passar pelo coração é a mesma do beijo. O desejo que pode ser violencia se faz amor. Luz. Aquelas meninas seriam então coração.

Pureza é desejo sem violencia, desejo aceito e partilhado, desejo que sorri e que celebra. Mais: o impuro vê o mal em tudo, a sujeira em tudo, o puro vê o mal apenas no mal e a ele resiste. E impuro é tudo que se faz de má vontade. Amar com pureza é não possuir, aceitar a distancia, alegria desinteressada. O amor impuro toma, o amor puro dá. Toda pureza é pobre, pois ela vê a falta, a não-suficiencia, a não-posse. O puro nada possui, nada ganha, nada lucra, mas ele dá e nisso é feliz.

O egoismo pode ser amor, mas é amor impuro. Amar o próximo como a si mesmo é impossível para o ego. Mal não é amar a si, é amar apenas a si mesmo. O sexo é o império da impureza pois é onde mora a preocupação com o próprio gozo, com a submissão, com a posse, com amar o outro para o bem de si. Ser dono, procurar o que lhe é útil, amor que se faz objeto.

Amor Eros, amor que exige. Amor Agapé: amor que defende o outro, que é amizade, que goza no gozo do outro. Amor livre de nós, amor feliz.

Esse amor, essa pureza pode ser encontrada na arte. Arte sem cobiça, desinteressada, não egoista, humilde: arte pura. Tudo o que pode ser possuido é impuro ( dinheiro ), pois o coração não pode ser possuido. Nele o ego nunca manda. Simone Weil: "O amor casto é o amor que agradece: ele existe, que mais posso querer? É o amor do presente. O impuro se situa no futuro: eu o quero."

Desejar que esse corpo exista, e ele existe: eis a pureza!

15- A DOÇURA.

Força sem cólera. Ação sem agitação, sem impaciência: doçura. Recusa a fazer sofrer, a destruir. A doçura é parte de toda virtude, ela torna a coragem virtuosa.

Doçura na guerra? Simone Weil:" Digamos que o soldado x está na guerra. Ele mira o soldado y. Digamos que ele só poderá matar o soldado y se ele aceitar morrer ao mesmo tempo que ele. Se o soldado x mesmo assim desejar matá-lo ele poderá o matar."

Somente os doces podem exercer a violencia inocentemente. Os outros ( todos nós? ) não.

16- A BOA-FÉ

É o amor a verdade. Contrário do narcisismo, amar a verdade acima de sua opinião. Pois a verdade é livre, não pertence ao eu.

Transcrevo um trecho do capítulo sobre a gratidão ( cada capítulo tem em média 15 páginas e são deliciosos )....
A vida de quem se volta todo para o futuro é insensata. Nunca se saciam pois esperam por viver e quando lá chegam se decepcionam. O passado, como o futuro, lhes falta. O sábio regozija-se com viver e com o vivido. A gratidão é essa alegria da memória, esse amor ao vivido, tempo reencontrado, gratidão ao que foi. A morte, como bem o sabia Proust, é vencida então, pois ela não poderá nos tomar essa alegria, essa gratidão, esse amor ao cumprido. A morte rouba nosso futuro, e quem vive só para ele por ela é derrotado.
Considero esse trecho uma definição perfeita do valor do passado. Outro trecho:
O homem ideal para o reino da opressão não é nem o nazista convicto e nem o stalinista convicto, mas o homem para quem a distinção entre fato e ficção e entre verdadeiro e falso não existem mais. Esse homem se colocará a margem de todo movimento abrindo caminho para aqueles que estão no real.
Deixo os dois mais belos e longos capitulos para outra postagem: O humor e O amor.
Neste mundo cientifico o que se valoriza são as qualidades da máquina: rapidez, eficiencia, modernidade, funcionalidade e reciclagem. Todas são qualidades que nada acrescentam ao ser, seja ele espiritual, seja ele corpo. Abrem espaço para o oposto das virtudes, que são os antigos pecados capitais: orgulho, cobiça, avareza, luxúria, vaidade... todas, não por acaso, ligadas ao egoismo. Lembrar que existem as virtudes e que elas serão sempre válidas é o objetivo deste livro. Mais que válidas, são o caminho para o coração, única via segura de alguma felicidade.