Mostrando postagens com marcador daniel defoe. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador daniel defoe. Mostrar todas as postagens

O EGOÍSTA - GEORGE MEREDITH...ESSA COISA TÃO INGLESA...

   Há um capítulo, neste longo romance, em que se homenageia o vinho do Porto. Odes e belas frases são ditas à esse vinho, o favorito pelos homens de gosto. E o único que melhora com o tempo. Por isso, é um vinho "conservador". Lendo esse ótimo capítulo tomos consciência de que o Porto é um símbolo da velha e alegre Inglaterra, símbolo tão forte como o fog. o guarda-chuva, a pontualidade, o chá e o livro de mistério. Outra ideia vem em sequência: o romance, em que pese a birra dos franceses, é também uma coisa bem "velha Inglaterra".
   Aprendi com professores menos francófilos, que o romance foi inventado na Inglaterra do século XVIII e que Robinson Crusoe é o livro que dá forma àquilo que se produz até hoje. O romance é pensado como passatempo para pessoas razoavelmente instruídas ( as bem instruídas leriam poesia ), com tempo livre e algum dinheiro. Isso se mantém ainda, talvez hoje com o adendo de que o romance deve ter "alguma utilidade". Bem....lendo um romance como este, escrito pelo popular George Meredith, autor de fins do século XIX, sentimos como esse ato cotidiano de ler um longo romance se mescla ao estilo de vida britânico caseiro e conservador. Pois é nesse tempo, o vitoriano, que se instaura a noção do "Home sweet Home", o lar como castelo do homem e da mulher, paraíso a ser herdado pelos filhos, fortaleza contra o mundo hostil. É nesse mundo, de charutos, lareira e bibelôs, de biblioteca e sofás de couro, que se faz a cisão entre mundo de fora e mundo de dentro. Sentar-se à janela, confortavelmente, com um cão aos pés, lendo Meredith, ou Hardy, ou Doyle, é fazer parte desse lar vitoriano. Esse mundo, destruído na precariedade do mundo mutável de hoje, ainda respira na lembrança de filmes históricos e em novas ondas tipo Harry Potter e que tais.
  Dito isso, O Egoísta é uma crítica ao tipo de dono de terras de nariz empinado, autoconfiante, duro, compenetrado. Um deles se torna noivo de uma linda moça, Clara, e descrê que ela possa não o amar e o obedecer. Mas Clara percebe sua vaidade, seu egoísmo, sua pose e tenta desfazer esse noivado. Clara, personagem que lembra as heroína de Henry James, é uma proto feminista. Quer ser livre. Livre para viver. O romance, todo ambientado nas terras do egoísta, é a história desse jogo de pensamentos e interesses, medos e vaidades. Meredith, profissional, competente, se dá um trabalho e o cumpre. Mostra à classe média o limite afetivo da classe alta. É uma delicia de leitura.

CORONEL JACK- DANIEL DEFOE

   Daniel Defoe escrevia para garçons. E para mulheres entediadas. E é essa sua maior importância. Antes de Defoe, livros eram escritos para eruditos. A literatura era específica. Homens, professores, religiosos, filósofos. Livros eram para gente do meio, gente de poder. E portanto, os textos eram como coisas fechadas. Com Defoe, que antes de romancista foi jornalista, livros passam a ser produtos. E como produtos devem ser vendáveis. O apelo precisa ser geral. O interessa variado. Daniel Defoe é portanto um escritor moderno.
   Este livro trata de um garoto que vive nas ruas de Londres. Ele rouba. Depois de várias peripécias ele vai aos EUA. Como escravo. E fica rico. Interessante o modo como Defoe vê a escravidâo. Brancos eram escravizados. Condenados ingleses eram enviados a colônia como forçados. E lá o personagem de Defoe descobre que negros têm alma! Essa parte pode chocar leitores de hoje. Mas é mérito do autor ser razoavelmente liberal. 
   O romance tem um esquema bem definido. Tudo começa nas ruas. Depois vem a fuga da lei ( e essa é a parte que mais gostei, uma viagem a pé até a Escócia ). A vida como colono na América. E só então, as mulheres. Casamentos que fracassam. Como em Robinson Crusoe, as mulheres pouca importância têm. Fala-se muito de dinheiro. O que importa é sobreviver. Comer. Ter onde dormir.
  Escrito no começo do século XVIII, época crucial em que o romance surge como manual do mundo burguês, Defoe exibe todas as qualidades e defeitos da sociedade que seria a dominante pelos próximos dois séculos.

THE GUARDIAN, AS 100 MELHORES NOVELAS DA LÍNGUA INGLESA

Só pra constar.
O jornal The Guardian fez uma lista com os 100 maiores romances da história. Nada de muito surpreendente. Ah sim, valem apenas aqueles escritos em inglês. Venceu John Bunyan com seu A Balada do Peregrino. Eu tenho uma tradução mas ainda não o li. Sua importância reside no fato de ter sido ele o livro que deu aos ingleses o hábito da leitura. Toda pessoa alfabetizada tinha uma cópia. O resenhista o chama de o Dom Quixote do mundo anglo-saxão. Justo?
Em segundo está Robinson Crusoe de Defoe. Esse eu li duas vezes. É uma aventura maravilhosa. E sei agora, graças as aulas de Marcelo Pen, que ele não apenas foi o primeiro best seller em termos modernos, como ajudou a moldar a mente dos ingleses. É o romance do empreendedor. Depois temos Tom Jones de Henry Fielding, Tristam Shandy de Sterne e Jane Austen com Emma. Muito antiga essa lista? Well, ele foi na raiz, naquilo que deu às letras inglesas sua particularidade. Livros que não poderiam ser escritos na França ou na Alemanha. Depois temos Poe, Heminguay, Fitzgerald, Wodehouse, temos ainda o Frankenstein de Mary Shelley, Dickens, Wells...
Adoro listas. Quando ler o livro de John Bunyan comento.

O QUE TEMOS DE MAIS MEDÍOCRE DENTRO DE NÓS?

   Qual o assunto principal de nossas vidas nos últimos 200 anos? Do que falam os filmes, livros, peças e a maioria de novas áreas de estudo? A resposta é tão óbvia que se torna até opaca: relações pessoais. De 1800 para cá, a impressão que temos é a de que viver se trata de se relacionar com alguém. Mas a questão que se deve colocar é: isso é verdade? O centro da vida é a relação pessoal, ou isso é mais um tipo de crença ideológica que nos foi imposta? Ian Watt, professor em Stanford e figura de centro dos estudos literários ingleses, vai fundo. Sua abordagem engloba história e filosofia, antropologia e arte. A resposta? Somos filhos de uma conjugação que une religião protestante, capitalismo e romance. E todas essas forças, alinhadas ao acaso, levaram àquilo que somos, seres ansiosos em busca de alguém. Porque? E quem é esse alguém?
   O primeiro romance: Robinson Crusoe. Um homem em sua ilha. A aventura de se virar sózinho. A técnica salvando um homem da miséria. Ele faz da ilha uma fábrica. Com ferramentas ele enriquece. E nunca sente a solidão. Seu medo é o de perder sua liberdade. O homem vencendo o meio natural. Sózinho. Daniel Defoe cria o romance de ação pura, de realização. Ele descreve a realidade. Nada é sobrenatural. Nada é obra de acaso ou de deuses. E Crusoe não é especial. Ele é como nós. Classe média.
   O romance é a primeira forma de narrativa que exalta o banal.
   O segundo romance. Clarissa de Richardson. Uma moça virtuosa que é seduzida pelo patrão. Mas ela vence, os dois se casam. Aqui nasce a descrição da vida interior. Homero, Petrônio, Bocaccio, e mesmo Cervantes pouco falam da vida interior. Pouco analisam sentimentos e motivações. Pouco descrevem, eles contam, narram, sem se preocupar com realismo. É fantasia sem culpa. Porque as coisas mudaram então? Com Clarissa, Richardson cria o romance como arte da feminilidade. Ou voce nunca percebeu que romances são coisa de mulher? Que mesmo machos como Tolstoi ou Faulkner observam a vida em detalhes e cuidados femininos? Homero é a hiper-masculinidade. A ação pura e direta. A aceitação sem observação. O romance é delicado.
   A indústria levou o povo para a cidade. E na cidade o que havia era medo e confusão. No campo todos sabiam de todos. Agora não mais. No campo se trabalhava e se via o resultado. Voce plantava e colhia, criava e comia. Fazia e vendia. Na cidade voce passa anos fazendo uma asa de xícara. Sempre a mesma. E na vida do campo voce via a vida, começo meio e fim. Na cidade não mais. O que voce vê são paredes. Sózinho, sem tempo para nada a não ser trabalho, solitário como jamais antes, sem parentes próximos ( no campo uma familia se compõe de tios, primos, avós ), o que voce faz? Cria sua ilha imaginária de auto-suficiência. Voce lê a vida que não pode ter. Ou melhor, lê aquilo que te dá sentido. Lê sobre voce.
   Mas vem daí um problema. Quem tem mais tempo livre? As mulheres. Romances desde o princípio são coisas comerciais, populares, com público alvo, e esse público é a mulher. Os romancistas que se destacam sabem falar à mulher. E mulheres gostam de sentimentos sutis, vida interior, a casa e o quarto.
   Outro fato: em 1700 há uma grande crise do casamento. Os homens não desejam mais se casar, ocupados que estão com o dinheiro. Solteiras se proliferam, mulheres que não sabem se manter, que são inuteis. Surge nessa época a ideia do casamento como coisa sublime, desejável, suprema. O calvinismo ajuda nesse processo. Pois veja: no catolicismo homem santo é aquele que se isola e vive para a alma. O homem sublime é solitário. No calvinismo o homem sublime é pai de familia, tem filhos e uma boa esposa. Solidão seria egoísmo para Calvino. Mas há mais. Para católicos a iluminação vem de Deus para o fiel, para os calvinistas ela vem quando encontramos Deus dentro de nós. Introspecção versus iluminação. Romances são introspectivos. Nada há de introspectivo no mundo pagão de Homero ou no catolicismo de Cervantes. Mas na Inglaterra de 1700 tudo caminhava para isso. Solidão nas cidades, vida ditada pelo trabalho  e pelo tempo, introspecção espiritual, e a transformação do casamento em ato sagrado e no único sentido para a vida. Tudo o que entendemos como romance está nesse perfil.
   Posso então voltar a pergunta: Porque os livros são como são? Porque somos criados a acreditar que tudo se resume a relações pessoais?
   Voce nunca teve a sensação de que um grupo de amigos falando e falando e falando sobre namoros, flertes e noitadas se parece com um bando de solteironas falando sobre noivados? Nunca pensou que isso é extremamente limitante? Que seja Proust, Conrad ou Mann, sejam filmes de Antonioni, Von Trier ou Lynch, a questão de fundo sempre é: eu e alguém. Voce não sente alivio quando vê ou lê alguma coisa que foge disso?
   Faz duzentos anos que oramos, estudamos, ganhamos dinheiro e fazemos ginástica ou terapia com apenas uma coisa em mente: a relação com o outro. E o que pergunto é: isso é nato ao ser-humano? Não, claro que não. É ideologia, como é o catolicismo e todo ismo que existe. A ansiedade por relação passa a existir apenas no momento em que o homem perde sua familia, a enorme rede de segurança de primos, tios, vizinhos etc. Passamos a colocar tudo no amor. O amor deverá ser nosso deus, nossa familia, amigos e prazer. O romance surge exatamente nesse momento crítico e se ocupa desse universo.
  Um grego iria rir de nós. Nos acharia débeis, atrofiados, feminilizados. Suas narrativas eram sempre sociais, o herói e a cidade, o estado e os deuses, a guerra e o destino. O homem para eles é parte de um todo. Ele não se interioriza e ansia por companhia porque ele vive sem solidão. Ele sofre, claro, chora, mas por outras razões. Por dores relacionadas a familia, ao estado e a injustiça. Nunca por solidão e muito menos amor de romance.
   Já nós somos capazes de num filme de guerra nos interessarmos muito mais pela mocinha e seu amor que pela Inglaterra e a Alemanha. É isso que temos de mais medíocre.
  

ROBINSON CRUSOE- DANIEL DEFOE, O NASCIMENTO DO HOMEM MODERNO

   Escrevo aqui observações minhas sobre texto de Ian Watt ( e aula de M. Pen ).
   Calvinismo. Ao contrário do catolicismo, aqui o trabalho é um bem e não maldição. O homem deve, quer e pode trabalhar. E se for iluminado, obterá sucesso. Bens materiais. Mas deve ser modesto, jamais ostentar, e mesmo rico, continuar na labuta. A natureza existe para ser domada pela razão e pelo trabalho, civilizada. John Locke diz que o homem progride por ser inquieto, essa inquietude é sua benção. Pascal, francês, é seu oposto: o homem é amaldiçoado pela inquietude, deve procurar a quietude.
   Robinson Crusoe, livro- produto, feito para vender, é lançado em meio ao século XVIII, época da consolidação de Inglaterra e Holanda como modelos do futuro. Robinson é inquieto, e portanto ele viaja. Vai a Africa buscar aventura e a aventura é só uma: enriquecer. Depois vem ao Brasil e fica por aqui ao longo de quatro anos. Faz-se católico ( por interesse ) e latifundiário, negocia escravos. Viaja mais e naufraga nas costas da Venezuela. Encontra sua ilha, isolado por mais de vinte anos.
   Na ilha o que faz Robinson? Lastima o destino? Chora sua solidão? Fosse latino, provávelmente. Mas ele trabalha, cria e é absolutamente feliz. Eis nosso nascimento: ilhados em trabalho, felizes em ganhar o dia. Felizes?
   Robinson faz casa, faz encanamento, faz ferramenta, arma e plantação. Mas acima de tudo ele domina a ilha, domina a matéria, se faz dono do mundo. Ele é um INDIVIDUALISTA.
   Tem um Deus, afinal é cristão, mas esse Deus é visto como algo seu, um ente com quem ele dialoga. Sua ética é dada pela sua consciência, Robinson fala consigo mesmo, mede seus atos, e sempre vai em frente, nada pode o deter. Essa ética se molda a sua ambição.
   No mundo medieval, Robinson Crusoe seria impossível. Sua aventura deveria ser em grupo, sua ilha seria um reino de encantamento, seu Deus seria distante e inflexível, seus laços com familia e cidade fariam dele um poço de saudades. Ele choraria a distancia das mulheres, da igreja, dos amigos, lamentaria as dificuldades, temeria a natureza. Jamais seria feliz na sua ilha ( que nem seria vista como sua ). Mas não aqui, aqui Robinson se adapta, vê oportunidades, progride. Faz ciência.
   Gênese do mundo que herdamos, aventura sobre a vida desterrada, personagem sem laços com ninguém a não ser com sua própria ambição, dono de seu nariz, e habitante de mundo onde o único sentido é ganhar dinheiro e deter poder, não seria ele nosso trisavô? Mergulhado no mundo em que vivia, Defoe criou a bíblia do mundo do capital.

ROBINSON CRUSOE- DANIEL DEFOE

Inglaterra do começo da revolução industrial, nasce o livro como o conhecemos. Não mais texto para monges, para estudiosos, para nobres colecionadores. Não mais religião, epopéias míticas, poemas heróicos; agora são romances e poemas sobre o coração. Livros, agora vendidos aos montes, em lojas, em livrarias. O primeiro best-seller pode ser Crusoe ( ou Tom Jones, ou Clarissa, ou Gulliver ). E, ao contrário dos best-sellers de hoje, Robinson é para sempre.
Voce pensa ser ele infantil, voce pensa que o conhece, mas assim como Gulliver, Crusoe é adulto, e é muito mais que a simples história de náufrago e selvagem. Robinson Crusoe é uma critica a sociedade, é o medo da industrialização, mas é acima de tudo, um elogio ao engenho do homem, ode a criatividade.
É delicioso lê-lo. Há genuíno maravilhamento. Voce sente o retorno do encanto dos primeiros livros lidos. Quando, então, abrir um livro era viajar para longe. ( Meus primeiros foram A ILHA DO TESOURO, TOM SAWYER, O CONDE DE MONTE CRISTO e CARLOS MAGNO, Stevenson, Twain e Dumas... nada mal ). Voltando: tudo o que Crusoe faz e vê na ilha, nós vemos, e além disso sentimos a vida que ele vive lá. Após o desespero da solidão e da fome, a constatação: eis a aventura de viver! Quando Crusoe volta a Inglaterra, sua readaptação é impossível. A dor maior é ter perdido sua ilha.
Daniel Defoe viveu de letras. E essa é a maior das revoluções. Na Inglaterra de seu tempo ( século xviii ) já existia uma realidade que nós aqui ainda tentamos criar. Ele foi jornalista e romancista, contista e editor, ele foi imenso talento. Robinson Crusoe merece sua fama? Claro que sim! Pois ele é absoluto prazer, jóia de invenção e libelo por boas causas. É uma obra-prima.