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SAGA DOS VOLSUNGOS- SAGAS ISLANDESAS.

   Feira de Livros da USP. Não ia desde 1999. Melhorou muito e valeu muito a pena! Rocco e Companhia das Letras não foram. Mas eu comprei 12 livros! Nos meus cálculos, em preços da Cultura, teria gasto mais de mil e quinhentos reais. Na Feira gastei 400. Comprei livros de luxo. Um com fotos de SP no século XIX. A bio de Matisse. Um livro com fotos de Doisneau. O livro escrito por Capa, com imagens raras. O recém lançado livro sobre o glitter rock. A bio de Bergman com intro de Woody Allen. A bio de Pete Townshend. E mais Chaucer, Marlowe, um livro catalão Tirant Lo Blanc, um álbum de Snoopy, Guerra e Paz em capa dura, um sobre decoração, e ainda este livro, sobre sagas medievais da Islândia.
   Porque Islândia? Na introdução de Théo de Borba Moosburger, fico sabendo que a Islândia ocupa um lugar privilegiado na história do romance europeu. Primeiro, foi o país que antes de qualquer outro escreveu em língua própria e não em latim; e segundo, escreveu em prosa e não em verso. Tolkien adorava essas sagas e muito de sua obra vem daqui. Do que trata? Da fundação da ilha islandesa, de seus primeiros reis e heróis. Um mundo que nos é quase incompreensível.
   A primeira coisa que salta aos olhos: A ausência de clemência ou de piedade. Matar é coisa absolutamente corriqueira. Mata-se por que se gosta de matar, pois para se poder ir para o céu dos vikings era preciso morrer em luta. Morrer de doença ou velhice era ir para o reino de Hel, o inferno, morrer lutando era ir para Asgard, onde se podia lutar mais. Pois a vida era isso, uma briga sem fim. Sangue e vísceras. Um homem vivia pela espada, por sua familia e por seu rei.
   Não posso nem discutir sobre sua coragem. Em barcos pequenos eles chegaram a Groenlandia e até a América!!! Eles eram mais que corajosos, não tinham noção alguma de preservação da vida. Tinham muitos medos, mas ao contrário de nós, seus medos não se ligavam a morte ou a dor. O maior medo era a desonra, ter o nome sujo, ser um fraco. Dor fisica e morte eram nada.
   Algumas cenas espantam. Além de assassinatos sem culpa ( e não falo de guerra, as mortes eram em simples passeios na floresta ), o reino começa com um filho que é fruto de um casamento entre irmão e irmã. Sem qualquer culpa, a irmã seduz o irmão e têm um filho que será um rei e um herói.
   Dragões, bruxas, adivinhações, tudo entra nessa saga como fato normal, conhecido, cotidiano. É um mundo pré-cristão e não-greco-judaico, é o mundo da mais pura raiz européia ( nos esquecemos sempre que Atenas e Judéia, Pérsia e Egito são reinos orientais. A Europa pura é a celta, ou seja, a dos vikings, suevos, francos, saxões, íberos ). Uma sociedade familiar, voltada para a guerra e para a magia.
   O estilo da escrita, sem qualquer adaptação, traduzida a crú, é rústica. As coisas são narradas de modo direto. Nada de descrições, nada de ambiente, nada de clima. É ação e mais ação. Briga e mais briga, viagem e mais viagem, mortandade sobre mortandade.
   Anti-europeus gostam de falar que a Europa e sua cultura são violentas, a mais violenta do mundo. Não sei. A China nunca foi um mar de rosas e Maias ou Incas estraçalhavam os inimigos sem dó. Talvez a velha cultura judaica, os cartagineses e os hindús tenham sido menos cruéis. Talvez. Mas nos choca muito ver um massacre inutil de crianças e mulheres ser louvado como ato heróico, o que ocorre todo o tempo aqui. Para passar o tempo, o herói vai a uma cidade para "saquear e matar um pouco".
   Jung estudava muito essas histórias medievais e via nelas a raiz de sonhos e de sintomas. Se ele estiver certo, chega a ser aterrador a imensa carga de violência que temos em nosso sangue. Porque neste mundo, o grande, o supremo prazer é o de matar. Se assim for, nosso mundo cristão e pós-cristão cometeu uma obra ainda maior do que eu pensava. A substituição da guerra pela convivência e do sangue pela fé. Mas o guerreiro, o doido e sem freio assassino, o irrefletido e puro impulso, o vaidoso e inconsequente está lá, está cá e está em todo canto. Desse duro ponto de vista, um moleque briguento e ladrão está muito mais perto da verdade humana que um dinamarquês hiper-civilizado e do bem. Não a toa o alto indice de suicidio na Suécia, o reino dos vikings tendo se transformado no país da paz e da sociedade justa.
   É um livro dificil.

VIOLÊNCIA

   A vida é violenta. Toda vida. Violência que tem sentido, a sobrevivência. O mundo do homem sempre foi violento, mas essa violência, pública ou privada, sempre foi sinal de um sentido. Voce pode discordar da feiticeira queimada em praça pública, pode abominar os cristãos comidos por leões em arenas romanas, mas toda essa dor, todo esse sangue tinha um sentido. Preservar um status quo. Violência que tinha seu ritual, suas regras. Isso se traduzia na guerra. Existia uma coisa chamada Campo de Guerra. Quando Hunos ou Godos ignoravam essas regras de guerra eram imediatamente considerados bárbaros. A guerra tinha um limite, como a violência tinha seu lugar.
   Quando o exército alemão aniquilou a cavalaria polonesa uma regra de ouro foi quebrada. Foram tanques e metralhadoras esmagando cavalos e sabres, uniformes de gala e estandartes. A violência deixa de ter ritual, ética e limite. Não se deseja mais a captura da posição inimiga. Não se deseja mais a captura do inimigo. Deseja-se a aniquilação absoluta.
   Hoje fomos completamente educados para a violência. Ela não nos deixa mais chocados. E pior, ela existe como um fim em si-mesma. Não a utilizamos a contragosto, ela faz parte da coisa. Observe este exemplo...Em filmes antigos a cena violenta só aparece em extrema necessidade. O sangue não precisa ser mostrado, o tiro é quase escondido. A violência está lá, mas nunca é o centro do evento. Hoje o centro é o sangue, a tripa que salta, a dor.
   Tudo então se torna violencia pura. O video-game não pede estratégia, ele apenas quer tiros e reflexo, adrenalina. As ruas têm cenas de violência que já nada produzem de indignação.
   Mudo o texto.
   Na sala ao lado acabo de ouvir que uma certa cantora novata fazia com que seus músicos na van escutassem seus puns. Isso é dito num programa em rede nacional. Isso é a tal violência não percebida. Não o ato da cantora, mas o fato de termos de ouvir tal história. Dessensibilização.
   Volto.
   É isso.

VIVE, LOUIS, LUDWIG, MIA, KANDINSKY

   VIVE LA FÊTE tocou em SP. Tenho um amigo que criou uma boa definição sobre 99% das bandas de 2012: Compõe bons covers. O VIVE abusa da chupação sobre o sublime VISAGE. Bom, pelo menos eles têm bom gosto em suas cópias. A maioria plagia lixo.
    Mia Couto transbordou simpatia no Roda Viva. Pena os entrevistadores variarem entre uma bobissima atitude blásé, tipo "Somos de um país maior" ( E há quem ainda pense que só a América tem arrogância ), e algumas tietes vazias. Mas o gajo tirou de letra. Esperavam discurso contra Portugal, não veio; esperavam traumas sobre a raça, nada a declarar. Couto é doce, sóbrio, poético e falou uma coisa lapidar: "Comecei a desistir da biologia ao perceber que explicava a vida pela poesia e não pela biologia". Ah sim, ele é biólogo. Que belo sotaque!
   Louis Malle tem justa homenagem em SP. Malle é melhor que Godard e Truffaut? Posso dizer que Malle não fez nenhuma obra-prima, mas também percebo que seus filmes são mais profissionais, mais atemporais, caem mais no gosto daqueles que esperam do cinema algo de "bem feito". Malle sobrevive melhor que os mais radicais. Mas atenção! Os filmes de Malle nada têm de careta ou de banais. Ele filmou em 1971 o incesto sem culpa, em 1977 a pedofilia sem discurso. Ele não tem obras-primas mas tem uma grande quantidade de filmes excelentes. E nenhum filme ruim. Mesmo Black Moon tem seu charme doido.
   Ando estudando pintura e começo citando uma frase de Wittgenstein que sintetiza toda a arte feita de 1910 em diante: "Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar."  Wittgenstein começou como um tipo de linguista e terminou descobrindo que a lingua é apenas um código que nos é imposto. Ela não revela a vida, a vida é que foi compactada para caber na linguagem.
   Pois eu não sabia o que era o abstracionismo. Rothko, Mondrian, Malevich, toda a pintura abstrata é uma tentativa de se capturar aquilo que está além do concreto, da linguagem da imagem, a pintura sentida como religião. Kandinsky e uma frase de Wittgenstein, outra vez ele: " O mundo é tudo o que é o caso". Caso: natureza e sociedade, as estruturas da religião, da arte e da ciência. Todos os atos, todo pensamento, toda emoção e toda imaginação. A pintura abstrata se apropria do todo, do caso. Olhar uma tela e ver nela aquilo que ela te faz sentir. Experimentar.
   Mas o mundo agora não é abstrato. Muito menos é impressionista ou surrealista. A cidade acostumou-se a guerra. Entramos nela suavemente. Toques de recolher não nos ofendem, aceitamos. A arte que criou este mundo está toda no expressionismo.

UMA QUESTÃO DE CIVILIDADE

   Se a civilidade é um valor a ser desejado, e eu creio que é, nosso dever é lutar para que ela seja sempre predominante.
   Civilização é o oposto da violência. Sim, eu li Pondé e concordo que eu e voce somos violentos. Isso é biológico e histórico. A civilização é a tentativa de se domar esse impulso. Bela criação, a luta, inglória, para se deter um impulso natural. Portanto o civilizado é sempre artificial, criado pelo homem em negação ao puramente animal.
   A civilização então é anti-violenta e sendo assim, anti-natural. Ela vai contra a violência física, mas também a violência das paixões, e nelas podemos incluir o ódio, a vingança e as dores em geral. O homem civilizado não sente ódio, ele usa o humor contra seu inimigo. Ele não se apaixona, ele desfruta do amor. Não sofre inutilmente, ele canta ou sai para espairecer. Aqui fica claro: o civilizado não existe no mundo real. Ele é um ideal a ser perseguido e jamais obtido. Um homem ou uma sociedade civilizada é aquela que não desistiu da busca.
   Creio também que a civilidade se manifesta no modo como as mulheres são tratadas. Ela nasce com o fim do estupro, o controle do instinto e se desenvolve no modo como o homem se aproxima da mulher. Mulheres civilizam o homem, o modo como ele reage a isso demonstra sua civilidade.
  Por isso que Fred Astaire é o ponto extremo da civilidade em música. Ele é o oposto mais radical a funk ou coisas afim.
  Astaire canta sempre com calma, lentamente. Não há pressa em sua dicção, cada palavra é dita com precisão, de um modo delicado e sem jamais perder a firmeza da virilidade. As letras existem para serem entendidas e elas falam de mulheres como seres com valor. Elas são seduzidas, nunca "pegadas". Ouvir Astaire é um ato politico porque é uma tomada de posição. Contra a violência, contra a pressa e o ruído. Tudo é feito com cálculo, o senso da beleza está sempre presente. É um mundo ideal, onde os automóveis estão sempre limpos, a bebida sempre gelada e as ruas são pistas de dança. Um mundo que não existe, mas com o qual pessoas civilizadas têm compromisso.
  O cd que a Abril lançou ontem tem uma amostra dessa civilização. É o grau mais alto em elegãncia a que chegamos. Combina bem com P.G.Wodehouse, George Cukor e Mondrian. Desfrute.

VIOLÊNCIA

Este texto é inspirado pelo que Ivan Angelo escreveu na Veja.
Carros. Se já foram fumacentos calhambeques e coloridos rabos de peixe, hoje eles são monstros cinzentos que têm design intimidativo. Carros eram para despertar inveja. Hoje são tanques que devem despertar temor. E são dirigidos como fortalezas de guerra: vidros fechados escuros, alta velocidade, impaciência. Flanar com a capota arriada? Só velhos saudosistas ou chicanos enlouquecidos. Sim, a violência nos toma de assalto. Nossa época é a época da violência.
Ivan fala disso. Das crianças que têm como brinquedos monstros, assassinos e sangue. Barulhos sem fim, tiros, bombas, facas. Elas estão sendo treinadas para que? Que tipo de fantasia é plantada em suas cabeças? Basta olhar: o mais simples dos cartoons é violento. Pior, violência burra pois é sem ironia.
Ruídos. Todo filme é invasivo, mesmo os ditos de arte. Não se exibe nada que seja delicado ou sub-entendido. Se há depressão, é uma depressão violenta; se há silêncio, é o silêncio opressivo que anuncia a explosão. Todo filme é over, é estridente, é feito com cortes que chocam, que exasperam, que violentam. As comédias têm um riso de escárnio, de raiva, de rancor. E mesmo quando há "fofura" é uma leveza doentia, exagerada, caricata, falsa. E violentamente ameaçada.
As mãos estão pesadas, duras, secas. Não se pode mais ser sutil.
Politicos falam como se fossem babuínos, familias discutem em público, e nas calçadas o que se ouve são gritos histéricos, risos agressivos e medo em olhares solitários. O que se passa?
Tripas expostas em filmes, funk pregando o estupro, o sexo de pornôs, o tiro. Comerciais de cerveja onde tudo é pose de agressão: a super-bunda petulante e o cara de atitude mandona e debochada. Tudo over, hiper: ou voce é super feliz ou é nada. Agressivos.
O futebol se torna cada vez mais uma "conquista de território". Rimos dos marcadores de Pelé que pareciam querer dizer " posso lhe roubar a bola?", deveríamos chorar... Os corpos se chocam no jogo de "Guerreiros". O vôlley se tornou porrada e porrada e o boxe foi abandonado por ser pouco agressivo!!!!!!!!!!!!! Basquete de enterradas e gritos e tênis que é só saque e ponto. Toques, firulas, habilidade, leveza, tempo distendido, onde???
Na TV temos a corja do Pânico fazendo agressões sobre agressões, a corja da tarde mostrando mortes ao vivo, a corja das novelas com seus dramas onde todos ferram todos, a corja dos seriados onde todos são agressivamente doentes.
Voce pode dizer: Ora, o mundo sempre foi violento, veja a renascença, veja a revolução francesa, as guerras.... E eu digo: sim, o homem sempre foi animal violento, mas a violência tinha espaços restritos, lugar onde podia irromper. O lar era protegido, a escola era protegida, havia a igreja, o feriado, a praça pública. E principalmente entre 1880/1914 houve a certeza do fim da violência, mesmo com a colonização da Africa e a revolução bolchevique. Pois o homem comum, médio, podia passar a vida em calmo usufruir dos dias, podia viver sem assistir uma só explosão, um tiro, um grito de desespero. Isso é passado. Todos somos expostos todo o tempo a violência insidiosa. Porque?
Tenho assistido a uma caixa de dvds de Columbo. Não vou falar da genialidade da composição de Peter Falk, o que me dá um imenso prazer é o fato de que em toda a série ( policial ) não existir uma só cena de violência. Sem uma gota de sangue. Como isso era possível? Em 1971 se torturava como hoje, se guerreava como hoje, mas havia a hipocrisia de não se mostrar isso? Ou não seria o respeito de se saber que uma familia deveria ser uma ilha preservada da selvageria do mundo de fora? O que me importa é: Porque e como essa ilha foi estuprada?
Se na minha época de primeiro grau o que voce tinha de fazer para ser O Cara era jogar bola direito e ter uma Caloi 10, hoje voce tem de se parecer com um traficante e falar alto e com atitude ( atitude de quem está pronto para surrar alguém ). Contra esse tipo de jovem temos os sensíveis, um tipo de hiper-sensibilidade, o exagero da delicadeza, uma reação forçada e assustada contra os celulares em alto volume e os palavrões machistas. Violência negativa contra a violência positiva.
Ivan Angelo insinua que tudo isso prova que o fim está às portas. Bem, eu não tenho a menor dúvida de que o mundo como o conhecemos está em seu terço final, mas não creio que o mundo em si esteja no fim. O que sinto, irracionalmente, é que o mundo que valeria a pena ( para alguém como eu ) já se foi. É uma forma romantica de se ver o mundo, e eu sou muito romântico! Mas racionalmente qualquer um com mais de trinta pode perceber que a evolução nos tem levado na direção de um embotamento da paciência, do ato de escutar, do silencio, da solidão e do fazer nada; cada vez maior, e a uma preponderancia do ruído, da pressa, do falar sem ouvir, da histeria, da violência cada vez maior.
Sempre que um garoto vê um jogo de tênis ( ou uma luta de boxe ), assiste a um filme ( ou escuta um disco ) de trinta anos atrás, sua reclamação será sempre a mesma: Onde está a pressa, o movimento, a adrenalina, a porrada? Onde a explicitude da pornografia violenta? O mundo em preto e branco é gentil, gentileza que ele não conhece e que lhe parecerá uma linguagem desconhecida. O nosso, em 3D, é histérico, mesmo quando tenta ser suave.
Já disse e repito, porque?

TEMA DESTE TEMPO

Cada época tem seu tema. Cada época se define por aquilo que lhe é urgente.
Não venha me falar no sentido da vida. Isso é tema de 1880. É coisa de Tolstoi, Dostoievski e Kiekegaard. Nem pense que agora vivemos a época new-age ou tempos de revolução. O tempo revolucionário foi 1776, o tempo da new-age jamais existiu. O que nos define é a violência, nosso ícone é uma arma, nosso engenho é um novo caça e nossos desejos são desejos de poder.
Toda a literatura relevante, hoje, fala de guerra, de fuga, de sangue. Os filmes que valem a pena ( dos últimos vinte anos ) tratam da banalidade da maldade. All you need is love é nostalgia para meninos dos jardins.
Não me venha com dramas familiares, casais descasados, freudianismos e sexo travado. Isso é velho como Tennessee Willians e Ingmar Bergman. A vida interior fechou, o que abriu foi o boteco da carne. O sangue jorra, os tiros cantam, os carros estão blindados, a cidade da bossa-nova é a metrópole da guerra.
Sem religião vale tudo. O medo do pecado nos freava. Sem estado forte pode tudo. A punição nos dava medo. ( Sim, existem ateus bonzinhos. Mas esses têm sua religião própria. Substituem Deus e Cristo por Marx e Poesia ).
Portanto vale tudo. Para quem não tem deus-Platão ou jesus-Hegel. O que guia é o desejo livre, e desejo livre não leva a felicidade e paz, leva à selva. O que eu quero eu quero agora.
Nossa melodia não pode ser melódica. Ela tem batida de metralhadora. Nossa roupa não pode ser elaborada, tem de favorecer a fuga. E nossas casas não são mais jardins hospitaleiros, são casamatas. Flanar como Baudelaire ? Onde ?
Toda arte que não trata da violência é irrelevante, saudosa, falsa, vazia, passadista.
Toda bandinha alegrinha, todo cantorzinho fofo, todo filminho cabeça. Avestruz. Manual de fantasia para bando de avestruzes. Masturbação.
Os melhores filmes deste milênio falam do medo, do sangue, do tiro e da fuga. ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ. A fala final de Tommy Lee define esta era. O resto é supérfluo. E nada é mais supérfluo que Woody Allen.
Não precisamos de um novo Mozart. Precisamos de um esconderijo.

DA VIOLENCIA E DO JARDIM

Cabeças de inimigos eram penduradas em postes na entrada da cidade. Um corpo é exposto em carrinho de supermercado. Inimigos. O ser-humano é violento por natureza. Violento por ser covarde. Nossa violencia não nasce da necessidade, nasce do medo. Não somos um Leão caçando para comer. Somos uma Zebra que aprendeu a destruir.
O iluminismo nos deu a ilusão de que com o uso da razão tudo de ruim e sujo seria eliminado. Mera questão de educação, de evolução, de tempo. Adquirimos essa fé no progresso. É dificil perceber que o progresso é só o das Coisas. O mundo vivo, a natureza e o homem, esses continuam iguais. Provávelmente mais sujos, menos virginais, mais desencantados; mas com os mesmos impulsos, desejos, fenômenos e medos.
A única coisa que ganhamos foram vinte anos a mais de vida. Para morrer mais vinte anos de tédio. O que perdemos foi a sensação de possuir uma alma. A cabeça pendurada no poste era um símbolo. Simbolizava a vitória, a morte do mal, o afastamento do inimigo. O corpo no carrinho é uma compra no supermercado. Adquiri este corpo, fiz dele o que desejei, ele é um produto. Eu sou foda !
O corpo não é mais sagrado. Abre-se uma barriga para extrair um tumor, abre-se uma barriga para matar um mané. Não se ama um corpo como invólucro de mistério sagrado. Penetra-se nesse monte de carne quente como posse de coisa que desejo. A nobreza não vem mais do modo de olhar e da atitude de uma refinada alma. Vem de fora para dentro : a plástica certa, a roupa certa, a dieta certa. O corpo manda, mas o corpo é falível, perecerá, é máquina química, é coisa sólida e desvendável. Todo ato desse corpo é portanto banal.
A morte então se banaliza. Como o sexo se banaliza. Eu disse, o homem sempre foi violento. Mas a morte nunca foi banal. Sofria-se por ela. Havia um sentido, mesmo que falso e injusto. Mas agora é um corpo que morre. Carne desvendada. Máquina que elimina máquina. Como o ato sexual. Corpo dentro de corpo. Simbolizando o gozo de dois corpos. E nada mais que isso.
Quando trucidava-se um inimigo, um pecador ou um bandido, eu o trucidava pela vida da nação, da fé ou da justiça. O trucidamento agora é por meu narcisismo, meu ego, porque sou mais fodão que ele.
Talvez a verdade tenha sido sempre essa. No fundo toda violencia sempre foi uma questão de egos. Mas os símbolos nos consolavam. O que nos consola hoje ?
Voltaire dizia que no fim tudo que importa é que cada um cuide de seu jardim. É o que tento fazer. Viver como eu quero. Com meus valores, meus símbolos e meu sentido. Tentando me sentir um cara do século XVIII. Tentando ignorar esta hora errada em que nascí. Mas é impossível. Violentamente sou invadido pelas imagens de corpos destroçados e do carrinho do supermercado levando a coisa morta pela rua. Pior que a violencia é esse sensacional frenesí pela divulgação do mal. As coisas assistem coisas sendo destruídas.
Não seja bobo. Cada corpo destruído num atentado é mais um passo na futilização de seu interior. Cada filme novo que mostra a destruição de tudo que é vivo, é mais um tijolo na parede que nos aliena da vida. Tudo tem uma direção : a falência do símbolo. Cristo crucificado se torna apenas um bom homem que pagou o pato. Todo o sentido do sacrifício e da dor se faz pó.
Cuidar do jardim. Nunca isso foi tão necessário.