Nossa era tem feito um trabalho: exterminar mitos. Em louca ânsia de destruição, matamos ( tentamos matar ) tudo aquilo que atende pelo nome de mito ( ou sagrado ). Usamos a palavra mito como se ela fosse um palavrão, como se mito fosse tudo o que é enganoso, falso, ilusório. O mito vive onde não existe o tempo, é eterno e imutável, e é por isso que tendemos a negá-lo e nos rirmos dele, o nosso mundo é seu oposto, temporal, falível e sempre mutável. Numa sociedade que é educada para admirar a linha de montagem, o novo produto e a insatisfação, o mito se faz marginal. Nunca precisamos tanto de mitos. A vida sem eles não tem valor nenhum.
Rollo May fala disso. E fala mais. Começa falando de dois modos de se abordar o sentido da vida. Sartre propõe que esse sentido deve ser dado por nossa força individual. É o que hoje predomina. O individualismo extremo. E há o modo de Kierkegaard, procurar o sentido que existe independente de nós, o sentido oculto, o saber que é dado pelo mito. Essa é a filosofia que nos falta. May logo percebe que a psicologia surge em mundo sem mitos, se eles ainda vivessem não haveria o porque de terapeutas e analistas. Doença mental ou emocional é sempre a falta de um sentido, de um porque, de mitos que guiem e dêem ao ser o sentido do todo, o sentido de fazer parte, de comunhão.
Thomas Mann: "O mito é a verdade eterna em contraste com a verdade empírica, que é falível e mutável."
Nessa primeira parte do livro, Rollo May diz que os mitos conduzem os fatos e não o contrário. Ele explica isso usando como exemplo a descoberta da América. A criação de um clima favorável a esse encontro entre mundos, a Europa se preparando a esse choque, a esse mergulho em mundo novo, a essa transformação. Tudo na renascença prometia essa descoberta. Os novos mitos de então o apontavam. A pergunta que faço é: para o que nosso mundo hoje se prepara? Quais são nossos pobres mitos? Esses fiapos de lendas, de sinais e de crenças nos fazem esperar o que?
May fala então sobre a América. O homem europeu impressionado com o tamanho e o mistério do continente. Se lançando ao deserto, a fronteira. Nasce o mito americano, o homem sem passado, sem história, em constante renovação, em busca pelo novo. Novo lar, novo ambiente, desapegado de raiz, apegado a sua "realização". Eis o problema: se naqueles tempos esse mito era positivo, sua perpetuação fez do americano um homem sem contato com sua subjetividade, sua origem, um ser que valoriza o novo por ser novo ( como se a novidade fosse uma qualidade em si ) e que protege seu individualismo até a solidão absoluta. May cita a antiga cidade européia, em que há sempre a presença da catedral tranquilizadora, ( mesmo para ateus ),tranquilizadora por jamais sair de lá, ser testemunha de sua vida, dar às pessoas um senso de pertencimento, de continuidade, de comunidade. Isso inexiste no "mundo novo".
Que mitos nosso mundo tem criado? Qual o mito americano? Elvis? O self-made-man? Que heróis?
Rollo May sabe que a qualidade de uma civilização está na qualidade do que ela cria. Arte, religião, mitos. Somos produtores de uma arte vulgarizada e banal, que desistiu covardemente do sentido; de uma religião que nega o verdadeiro Deus, que prega o individualismo e a solução mágica; e de mitos que estão presos ao tempo e a razão, e que portanto são anti-mitos. Pois sua função é integrar consciente e inconsciente, dar sinais daquilo que nos é mais precioso, iluminar a treva da ignorância. Conduzir.
O livro faz a análise de algumas obras literárias "mitológicas": O GRANDE GATSBY, A DIVINA COMÉDIA, OS FAUSTOS de MARLOWE, GOETHE e MANN, PEER GYNT e MOBY DICK.
Gatsby como o mito dominante da América moderna. O homem que se faz do nada, que cria sua persona por vontade de ferro, que bem sucedido, dá festas onde nada acontece de verdadeiro, e que apodrece em tédio terminal. Gatsby nada tem de verdadeiro, de humano, de real. É a imagem da solidão, do não se conhecer, do homem que não encara o inferno e assim perde o paraíso. Pois o mito traz isso, o caminho para dentro, e adentrando voce pode encontrar afinal o que está fora; e afundando no inferno voce ascende ao céu. É o único modo.
Rollo May não cita Shakespeare, mas sempre que entro em contato com suas peças é isso que sinto: o quanto perdemos. Paixões intensas que levam ao prazer imenso, dores colossais que dão o conhecimento perseguido, o sentido da vida entre raios. O mito.
Na obra de Dante o livro cresce e nos absorve. Dante como um paciente e Virgilio o conduzindo pelo inferno "em terapia". Ver o mal para então conhecer o bem. Beatriz como a final integração com a mulher verdadeira e completa. Talvez a mais bela obra mitológica. Um poema sobre a saúde da alma. ( Senti isso quando o li no ano passado, uma paz imensa na companhia de Dante. )
Peer Gynt de Ibsen impressiona muito. Uma peça imensa sobre a alma que se perde. Lendo Rollo May dá uma vontade enorme de ler essa obra-prima de Henrik Ibsen. Há tradução?
Fausto somos todos nós. Fausto vende tudo em troca do poder. Renega a Deus e ao amor pelo conhecimento, pela ciência, pela liberdade. Rollo May a descreve com brilho, e percebe as diferenças: em Marlowe, Fausto é a peça que propicia a catarse do homem renascentista, ele é um blasfemador; em Goethe há a catarse do homem iluminista, Fausto precisa do mal, do irracional, da escuridão; e em Mann ele é uma nação tomada pelo mal, ele é a destruição absoluta, o niilismo. Fausto sempre lida com a sombra, com aquilo que negamos, com o que nos dá medo.
No capítulo seguinte temos a noção de tempo. Em nossa era apressada não há espaço para o tempo que amadurece. Em todas essas obras, em todos os mitos ( e há a análise também da BELA ADORMECIDA, o mito do tempo que o amor requer e precisa para poder acontecer ), há a sabedoria do tempo. O tempo como aliado, como processo necessário. As coisas crescem dentro das pessoas e acontecem no mundo após sua maturação. Em época de correria e ansiedade nada cresce em tempo certo, nada amadurece. O tempo se torna irritante, inimigo. Ele se demora e cria tédio, ou passa e traz o apodrecimento.
Há um trecho soberbo de Nietzsche em que ele fala da necessidade da presença do herói. Do quanto dependemos da vinda ocasional desse herói para iluminar nossa vida e dar presença ao mundo. Nossos heróis hoje se escondem em trevas por detrás de máscaras, solitários e pessimistas que trazem confusão em vez de solução. O que esperar deles?
Eu cresci com heróis e mitos. Mitos que me conduziram a ser o que sou e o que me tornarei. Que coloriram minha vida e me abriram para dentro de mim mesmo. Heróis que me deram exemplo e consolo. Errei muito, me perdi, mas minha vida sempre valeu a pena enquanto estive com eles. Me é incompreensível que alguém possa existir sem um mito, um herói, um rito. Pior, sinto pena de quem passa pela vida sem suspeitar de sua existência.
Ler este livro diz muito.
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