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OS VISITANTES DA NOITE, O MAU E O AMOR, A POESIA EM FILME

Um letreiro anuncia: O Diabo mandou à Terra duas almas para semearem o desespero entre os homens. França, 1485. Vemos então duas pessoas à cavalo. Cruzam um campo, árido, e chegam à um castelo, branco. Primeiro acerto do filme, o castelo é novo em folha. Vários filmes medievais mostram castelos em ruínas, esquecendo que em 1300 ou 1400 eles seriam novos. A dupla é recebida numa festa que lá se realiza. Anne, jovem bela, irá se casar com o dono do castelo. Em meio ao banquete, o homem, Gilles, canta para Anne. Se instaura a poesia: a canção é belíssima e Anne se apaixona por Gilles. Ao mesmo tempo, o outro forasteiro, que na verdade é uma mulher, seduz o pai da noiva. A dupla, humanos que se venderam a Satã, instauram o desespero usando um falso amor. Cena exemplar: o tempo cessa, todos são congelados, para que a sedução se realize. O amor surge como solidão no tempo, mundo à parte, morte em vida. Mas algo ocorre: Gilles se apaixona de fato e o Diabo precisa intervir para vencer o amor. E mais não conto. ----------------- Raras vezes vi filme tão despudoradamente romântico. Prévert, o roteirista poeta, nos mergulha no amor. Anne e Gilles são torturados, tentados, tapeados, mas se agarram um no outro, em seu mundo além do mundo. Me pego chorando em duas cenas. O modo como Anne enfrenta o diabo é de cortar nosso coração. Paganismo: este mundo é do mal, o amor é de Deus. Deus enfrenta o Demônio a cada vez que um amor real nasce. Ao fim, o casal "perde", são transfomados em pedra. Mas, que surpresa! O Diabo ouve que o coração dos dois ainda bate! Irado, ele chicoteia as estátuas, mas o coração insiste, persiste, vence... Não há como resistir a este filme. --------------- Assiti esta obra prima em 1989, na velha TV Gazeta. Sábados de noite havia um festival de clássicos franceses. Foi lá que vi meus primeiros Renoir, Feyder, Clair...e Carné. A imagem dos filmes era péssima! Não restaurados, alguns eram quase impossíveis de assistir. Mas mesmo assim me apaixonei por este filme. Ele me pareceu mágico. Era um mundo onde o impossível acontecia de forma convincente, lógica, cotidiana. O sabor medieval era autêntico. Então fiquei 30 anos sem o ver! Revi em 2019 e mais uma vez ontem de noite. Não me decepciono! É uma obra prima de fato! ---------------------- Todos os atores são comoventes, mas Jules Berry como o Diabo é a melhor encarnação de satã que vi na vida. Charmoso, elegante e profundamente mau, ele é o oposto absoluto à Anne feita por Marie Déa, um primor de força natural, de beleza bondosa. Fiquei 30 anos com a voz de Gilles dizendo "Anne Anne" ecoando em minha mente! É um dos raros filmes que vive para sempre dentro de voce porque ele reflete algo que respira dentro do nosso inconsciente. A luta entre a sombra e a luz. Mais: o filme desperta uma absoluta vontade de amar, e vemos que o amor é uma solidão, pois ele nos isola do mundo e nos faz viver dentro dele. Ao mesmo tempo, é ele a única força capaz de vencer o medo, o mal e a morte. Anne e Gilles são vencedores porque amam. E nada mais tem a menor importância. ---------------- Pois se os Templários estavam certos, somente O Amor é Deus, e todo o resto é Mundo de Satã. No amor estamos vivos, fora dele somos almas em danação. O filme mostra essa filosofia, profunda, em falas e imagens que parecem vir de algum lugar muito antigo e muito "de sempre", parece remoto e ao mesmo tempo esteve sempre aqui. Jacques Prévert e Marcel Carné criam uma história simples, porém eterna. Não há fala fraca e não há cena inútil, cada fotograma é um lembrete: amor, amor, amor, amor... ------------- Penso em como uma alma cínica, deste século vagabundo, se sentirá vendo este filme. Incômodo? Sono? Raiva? Fuga? Quem hoje tem coragem? Que amor é este, o de 2023, que não enfrenta nada e na verdade obedece? Mergulhados em ruídos e em coisas, onde está a coragem de tecer um mundo solitário? Quem geme e grita o nome do amor em meio a tortura? Quem? --------------- Pois o amor é espírito, é gentil, alma que canta, olho que vê além. Ele vence quando nasce. Ele sobrevive quando morre. Obra de arte, este filme dignifica o cinema francês e dá estatuto de nobreza a uma arte tantas vezes vulgar. Voce sai do filme e deseja se apaixonar. Completamente. É um filme veneno.

DOIS CLÁSSICOS DE JEAN GABIN: PEPE LE MOKO e TRÁGICO AMANHECER

Cigarro enfiado na boca de lábios muito finos, olhos frios azuis, cabelo claro e expressão dura, ele quase nunca ri, Jean Gabin foi durante décadas a imagem que a França transmitia ao mundo. Ator dramático glacial, ele tinha na voz, soturna, o ar de quem vivia Camus e Exúpery no sangue. Sua presença, imensa, foi influência geral no tipo de ator dos filmes policiais do mundo inteiro, mas na França ele foi mais que isso, ele era o amante que toda mulher queria. ( Seria interessante pensar no que significa a mudança de Gabin para Alain Delon nos anos 60 e 70, e depois para Depardieu nos anos 80 e 90, o que essa mudança no gosto sifnifica. O Gabin de hoje seria quem? ). Jean Gabin era sólido, firme, forte, mesmo sendo nada mais que um gordinho não muito alto. Ver Jean Gabin comer, beber e fumar é um prazer. LE JOUR SE ELEVE ( TRÁGICO AMANHECER ), de 1939, é um dos muitos filmes clássicos que têm Gabin no elenco. Devo aliás dizer que não há ator com maior número de obras clássicas em seu currículo. Marcello Mastrioanni foi eleito recentemente o ator com mais filmes históricos, James Stewart veio em seguida, mas Gabin no mínimo empata com os dois. Como eu dizia, TRÁGICO AMANHECER tem Gabin, e além dele tem Jules Berry e Arletty, dois ícones da época. Marcel Carné, diretor que fez aquele que é o maior filme da história da França, O BOULEVARD DO CRIME, dirige aqui um dos mais deprimentes filmes já feitos. Gabin é um operário, amargo e doente, que se apaixona por uma jovem. Mas essa jovem, que não é fatal, tem um outro. Que o persegue e o provoca. Gabin mata esse rival. E todo o filme é feito de uma sequência de flash backs em que Gabin recorda sua história enquanto a polícia cerca seu quarto. Não há alívio. O filme é duro e frio como aço. Gabin não tem como escapar e sua vida de nada valeu. Tudo deu errado. E eu imagino como este filme, em 1939, deve ter sido uma porrada na cara do público de cinema. Ele tem sexo, tem amoralidade, e a cena final ainda choca: Gabin dá um tiro em seu peito e cai no chão, o despertador toca, é hora dele ir ao trabalho... -------------- Jacques Prévert, um grande poeta, escrevia os roteiros de Carné e isso fazia com que seus filmes fossem muito falados e muito poéticos. Este não foge à regra. -------------------- Mas vamos falar de um filme ainda maior: PEPE LE MOKO é impressionante. Julien Duvivier dirigiu, e ele foi um dos 5 grandes dos anos 30-40. Nos EUA, fugindo dos nazis, conseguiu manter seu alto nível, coisa que Renoir não conseguiu, e ao voltar para a França manteve sua carreira em bom caminho. Duvivier era mestre em editar, em dar ritmo, em visual criativo. Em PEPE LE MOKO, Jean Gabin é Pepe, um bandido. Ele vive em Argel, não esqueça que em 1937 a Argelia era a França, e Pepe se esconde dentro do Casbah, o bairro árabe, intrincado, hiper povoado, sujo, belo, impenetrável. As cenas, muitas, que mostram o povo e a arquiteura do lugar já valem o filme. Paredes brancas, vielas, ciganos, árabes, chineses, negros, é um caleidoscópio de sol tórrido. Voce sente o calor do filme, voce transpira com eles. Pepe é rei, é o chefão, é amado no Casbah. Mas ele não suporta mais ficar preso lá dentro, não poder ir à cidade, ou melhor ainda, à Paris. Então vem a tragédia: um grupo de turistas ricos vai visitar o exótico Casbah e Pepe se apaixona por uma delas. O que era dificil se faz impossível, ele precisa sair para ficar com ela.... É um filme maravilhoso! Sensual, agitado, confuso, trágico e nunca pesado, inexorável. E real, muito real. Gabin-Pepe pode ficar com a mulher que quiser, mas ele escolhe a mais difícil e a polícia o cerca. --------------- O filme noir americano nasceu aqui, em Gabin e em Duvivier e Carné. Bogart era o Gabin americano. Um cinema necessário. Para lembrarmos do que ele foi. E do que poderá, tomara, um dia voltar a ser.

POEMAS DE JACQUES PRÉVERT

Há um poema onde ele lamenta, sempre em seu modo leve e bem humorado, a destruição das florestas. Ironicamente ele diz que o papel das florestas é usado pelos jornais para divulgar a destruição das florestas. O tempo muda tudo: Prévert fala mal dos professores "que ensinam as crianças a obedecer". Escritos nos anos 30, nos anos de 1940, pelo comunista Prévert, seus poemas pregam aquilo que a direita prega em 2021: desobedeçam, não sigam seus professores, não creiam nos jornais, sigam aquilo que seu coração, e apenas seu coração, pede. Jacques Prévert, que foi também autor de alguns dos melhores roteiros do cinema francês, era comunista em um tempo em que ser comunista ainda soava honesto. Sua poesia é feita para o homem que ama e trabalha, para aquele que sofre mas não se deixa cair. -------------- Claro que Prévert zomba da igreja, zomba do patrão, zomba do pai de família, e essa zombaria deixa tudo datado. É aquele intelectualismo francês, necessário em 1920, primário cem anos mais tarde. Intelectualismo que por vaidade, por burrice, por rigidez, tanto artista latino, tanto pensador "original", ainda se apega para não ter de se auto analisar, se julgar, se revalorizar. -------------- Era o esquerdismo romântico de uma Paris que passava fome. O intelectual, solidário, se absolvia de sua inutilidade, nutrindo sentimentos fraternos pelo operário faminto. Não movia um dedo para lhes dar o pão, mas sofria com eles. Ou assim escrevia. Nunca saberemos o quanto de hipocrisia havia nessa postura. A do autor que comia ostras com Picasso e depois escrevia sobre a fome dos subúrbios. Enquanto isso os padres que ele odiava faziam sopas para as mães abandonadas e arrecadavam roupas para os que sentiam frio. Eu pergunto: Será que o texto irado era assim tão importante? ------------- Mas há a beleza da linguagem e essa não passa, não se faz demodée. E Prévert escreve bem, muito bem. Que sina não? Aquilo que parecia ser seu ponto mais irrelevante, a beleza da escrita, é o que faz dele legível em 2021, enquanto sua ideologia, aquilo que mais era elogiado em 1940, é hoje de uma pieguice óbvia e rasa, sem fim. Vale a pena ler? Quem sabe?