A RAIZ DA VIDA

Estou numa praça onde vejo gente passar. Alguns ainda usam máscara, a expressão de bicho amestrado na cara. Um pastor australiano corre atrás de uma bola. Pega-a e a traz de volta a seu amo. Se deita sobre a grama e paralisado espara por um novo lançamento da bola. Ele irá repetir isso pelo tempo que o amo assim desejar. Não, este não é um post sobre gente amestrada. É sobre eu e voce. -------------- Quantos anos, séculos, foram precisos para que se fixasse nesse cão o comportamento, automático, de olhar com atenção, aguardar, buscar, trazer, vigiar? Hoje ele faz tudo isso sem pensar e eu sei que fazendo esses atos ele se sente CONFORTÁVEL CONSIGO MESMO. Está gastando uma energia que habita dentro dele. Um desejo que faz parte dele mesmo. Para ser ele, inteiro, ele necessita vigiar-correr-buscar-reunir-guardar. Pois...... sentado sobre a grama eu observo esse cão. E as pessoas que passam. Estou só, em busca do silêncio em mim mesmo. Fecho os olhos e ouço: o vento nas folhas, vozes distantes, cães arfando. O sol queima meus ombros nús. Eu estou lá. Saibam: vivo faz já 60 anos e em todo esse tempo, estar sentado ao ar livre, debaixo do sol, pacientemente deixando o tempo passar como preguiça, é a coisa que mais fiz. Seja numa rua, no quintal, na praia, na escola, ficar parado, olhando o que se pode ver ao meu redor, nuvens indo e vindo, vento e mormaço, é o ato onde me sinto mais EM CASA. Sempre fui, desde que nasci, e sou, capaz de passar um dia inteiro na contemplação daquilo que para os outros é o nada e para mim é a vida. Preguiça? Talvez. ----------------- Ficar dentro de casa, debaixo de teto e entre paredes sempre foi para mim insuportável. Fico triste quando sou obrigado a ficar mais de 6 horas sem poder ir para fora. Pois....volto para casa, vindo da praça e vejo minha mãe. E o óbvio se revela: pastorear. Por centenas de anos meus antepassados viveram olhando as cabras a comer a relva ou a beber água. Eu os repito. O mato, o sol, o vento e eu ali, guardando. Sem saber eu pastoreio. Conduzo os bichos com meu cajado, protejo-os dos lobos, aguardo. Me deito e olho as nuvens e prevejo a chuva. Toda manhã, todo dia, o mesmo e outro. Fecho os olhos e os ouço balir, mastigar, chamar, os passos que se afastam, que voltam. Quantos séculos eles não viveram isso? Os seus talvez tenham sido caçadores, ou construtores, ou soldados, os meus foram pastores. Leite e queijo, peles e carne. Cão ao lado, andar por caminhos, levar para beber, ver parir, matar. --------------- No trabalho, 2022: crianças ao meu redor, eu as vigio, eu as guardo eu as conduzo. Sendo pastor não sou necessariamente feliz, mas estou confortável. Sou aquilo para o que fui treinado. Essa a raiz.