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FINADOS 2021

Costuma-se dizer que quando morre uma pessoa querida é como se um pedaço nos fosse tirado. Mentira. O que sentimos é que um peso nos é acrescentado. Nos tornamos mais lentos, viver aumenta seu trabalho. Pensei isso não por ser hoje dia de finados, mas por ter observado o rosto de um famoso artista. Suas marcas são as marcas de quem já se foi. Sentimos que ficamos para trás. É estranho porque é quem morre que parte, mas sentimos que ficamos aqui enquanto aquele que fazia parte de nosso mundo se foi. Não é o morto que foi abandonado. Somos nós que fomos deixados por ele. -------------- Só conhece a dor quem passou pela morte. Seja sua quase morte, seja a morte de quem voce ama. Nosso amadurecimento se dá pela morte. Diante dela todo o resto parece pequeno. Na beira da cova nós somos quem nós nascemos para ser. Não há como ser mais real. ------------ Noto hoje que em 2021 o dia de finados foi ainda mais ignorado que em 2018 ou 2012. É mais uma de nossas datas que será cancelada. Nosso mundinho cultural tenta tenazmente destruir o passado e um dia como este é a lembrança de que todo passado nos leva à consciencia da morte. ------------ Voce pode pensar que em plena pandemia a morte se tornou mais presente. Mas não. O que se tornou mais presente foi o medo. A histeria mundial diante de um virus foi a busca obscena pela vida sem riscos. Tudo valeu para negar a verdade da morte. O dia de finados nada tem a ver com a histeria covarde da pandemia. Finados é a aceitação trágica do fim. E o revalorizar dos que nos deixaram. A pandemia foi apenas um choro berrado de crianças mimadas. ---------- Coloque-se diante de suas memórias e sinta a falta de quem morreu. E não venha falar da morte de um amor. Eu falo da morte física, do corpo sem vida, daquilo que era vida e agora é objeto inanimado. Essa morte, a real, a verdadeira, a absoluta, é muito mais severa que qualquer amor perdido. Pois ela é o momento em que voce, o vivo, o enlutado, deixa de ser um indivíduo e se reconhece como absolutamente humano. Voce se vê como todos os outros são: um vivo que chora a morte. Nada mais que isso. A morte nos vence a todos. E nossas rugas são as cicatrizes de te-la encarado. ---------------- Eu mudei radicalmente com meus lutos. O homem que eu era antes não mais tem como existir. Pois se ele voltasse eu negaria a morte de meu pai e de meu irmão. A morte, a condição de não mais estar, é estranhamente, a mais real das presenças. Então eu poderia escrever, apenas para criar um belo efeito, que morrer é finalmente se tornar real. Mas não é isso. Nunca saberemos o que é morrer pois ao morrer não somos mais. O que digo é que em nós, vivos, a experiência da morte faz com que essa experiência se torne o mais real dos momentos. Portanto, por não mais aqui estarem, nossos mortos ficam ALÉM DO TEMPO, e assim, REAIS como nunca antes.

VIDA SEXO E MORTE

   Estou lendo um livro de Amos Oz, e nele um dos personagens diz que o contrário-complementar de vida não é morte, mas sim sexo. Isso porque o oposto de uma coisa é aquilo que existe com ela, uma não pode existir sem a outra. Não há luz sem antes haver escuridão e a luz destrói a escuridão ao mesmo tempo. Onde há luz a escuridão não há, mas onde há escuridão, a luz também não existe. Simples isso. Mas vamos à vida e morte.
  A vida quando nasce, eis o pensamento comum, traz em si a morte, seu oposto. Onde haveria vida não haveria morte. Ou se está vivo, ou se está morto. O personagem diz que não é assim. Como?
 Por bilhões de anos a vida existiu sem que a morte existisse. Os primeiros organismo vivos, os unicelulares, não morriam. Eles se dividiam em reprodução assexuada. Cada um se tornava vários e esses vários eram os mesmos que os uns. E mesmo esse um original, misturado a seus descendentes, não morria. Pode haver um vírus original que ainda vive por aí. Não há como saber, pois ele é igual a seus descendentes. Isso prova que a morte não surge no universo junto com a vida. Ao contrário da luz, que só pode existir em oposição ao escuro, ou da alegria, que só pode ser percebida em meio a tristeza; a morte passa a existir muito depois da criação da vida.
   A morte começa a existir apenas nos organismos sexuados, sejam vegetais ou animais. É com a reprodução sexual que nasce o envelhecimento dos organismos e a inevitável morte. Portanto o oposto à vida é sexo e não morte.
  Por intuição, todo poeta sabe disso. Que ao entrar na vida sexual começamos a morrer. Mas o mais impressionante é a intuição da Bíblia, onde a morte nasce com a expulsão do Paraíso, que é consequência da consciência da diferença entre os sexos. Adão perde a imortalidade ao conhecer, e o conhecimento traz o tempo que traz a morte.
  Eis um tema digno de uma vida.

NO AEROPORTO

   Amamos aquilo que tememos...é um chavão e às vezes é uma verdade ( só às vezes ). Tenho receio de pegar estrada, mas quando estou nela fico doido de alegria. Estou numa agora, perdido de novo, tentando chegar no aeroporto, que fica fora da cidade. Passam campos limpos e sem fim, bichos em currais, algumas ruínas, pontes e riachos. O carro vai a 150 km por hora e eu me deixo ir com a paisagem. Nossa alma precisa de espaço.
  No aeroporto há uma alegria ansiosa. Sinto a energia do lugar assim como senti os eflúvios virulentos do IML. As pessoas aqui estão vivas, em movimento, e me dá uma vontade imensa de embarcar. Mas não para Paris ou Londres. Sinto vontade de ir ao Tahiti. De ir à Bali. Ao Congo. Lugares que podem fazer diferença em sua vida. Lugares de viajantes.
  Esperamos minha mãe que volta de Portugal. Ela acabou de perder seu filho, meu único irmão. Ele se foi porque sua alma, presa a um corpo doente, precisava voar. Ele quebrou a casca e saiu pelo ar afora. Livre afinal.
  Pessoas esperam com a gente. Uma muçulmana tem um cartaz onde se lê: I Love You Kamal. Ela usa um véu amarelo. Há outro cartaz onde se pode ler: Welcome Pravid! Um menino indiano que vem morar um tempo no Brasil. Chega um monte de gente vinda da Irlanda via Ethiópia. Uma mistura de caras com prancha de surf e negros cor de petróleo. E lindas meninas. Um grupo de hare krishnas cantam com tambores e sinos. Esperam mais um indiano.
  Minha mãe pegou o avião sozinha. Ela é forte. No voo uma menina de olhos e rosto lindos como um sonho, sentou-se ao lado dela. E veio a amparando por todo o caminho. Ela é brasileira e namora um luso. Vai lá duas vezes por ano. Ficam juntos 3 meses, e 9 separados. Minha mãe fala de seu luto. E a menina a consola, ajuda, segura sua mão.
  É noite e voltamos pelas estradas escuras. Meus primos e ela conversam. Eu sei que vamos todos sobreviver. Eu sei que a dor nunca será esquecida. Ela vai repercutir lembrando o valor da vida e da morte.
  Luzes ao longe em janelas espaçadas. A vida nasce todo minuto. Porque a gente morre a toda hora.

IRMÃO

   Nós rodamos pela estrada e nos perdemos. Isso foi ontem, após o enterro. Caímos no rodoanel e entramos na Imigrantes. O tempo cor de chumbo e a conversa dentro do carro que nunca cessa. Porque temos de falar. Temos de falar muito. Palavras não expressam a verdade, mas o ato da fala, a força que nos faz emitir sons, esse ato diz muito. Verbo, sujeito e conjunção nada significam, mas soltar um som, um uivo, um blá blá blá, uma canção sublime, isso tem significado. A gente sabe.
   Cruzamos imensidões de água. Espelho cinzento, frio, retrato. Cada segundo gasto olhando a água era um prazer melancólico para mim. A natureza entende a morte e o que há de natureza em nós a aceita. A ajuda vem. Ela vem. Ela vem.
   Tomamos café numa padaria. Quando o liquido quente cai no meu estômago eu sinto que tudo está como precisa estar. Há um encaixe. E o carro corre muito, corta caminhões agressivos, segue a BMW do meu primo, e uma BMW corre muito mais que um simples GM econômico. Mas o carrinho se esforça.
   Não. Meu irmão não foi um samurai. E nem um inventor maluco. Meu irmão foi um homem que amava sua esposa. E que vivia só para ela e ela só para ele. Nunca o vi mentir. Nunca o vi esquecer. E só o vi chorar uma vez. A doença, a doença que destrói aquilo que ela pensa proteger, destruiu a vontade de meu irmão. Ele sabia que estava em auto-rebelião. Suas forças de defesa se voltavam contra ele mesmo.
  Mas não mais falarei de doença. Ela morre com ele e eu vi o fundo da cova onde ele está. A vinte metros de meu pai. Entre grama, pássaros que voam, vento em árvores. Um banco verde de madeira. Espaço para abrir as asas.
  Meu irmão era bonito. Tão bonito que me dava inveja. Ciúmes. Chegou à vida chorando, um bebê que não dormia e não comia. E que pegou laringite e quase morreu. Depois se tornou o que tinha de ser, alegria do meu pai, suporte da minha mãe. Era o favorito do pai. Jamais brigaram e falavam a mesma língua. Se entendiam como amigos. Com minha mãe havia um atrito. Ele pensava ser eu dela o favorito. Não era. Eu apenas sabia mais como falar com ela. Ela o admirava e respeitava. Por mim ela tinha preocupação.
  Fomos amigos. Muito amigos. Futebol nas tardes de domingo, no Morumbi, quase virei torcedor do SP por ele. Jogar bola na chuva. Rir do Chacrinha, do Carnaval na TV, de videoclips ruins, de desenhos animados bobos. A gente gozava as coisas, inventava novas palavras, tinha códigos secretos, rimas, ataques de riso sem fim.
  Ele bebia néctar de flores. É verdade. E engolia bananas até vomitar. Eu falava muito. Ele agia. Eu tinha melancolia. Ele brincava sem parar. Eu tinha insônia. Ele roncava. Eu falava. Ele se movia. Corria. Pulava. E às vezes a gente brigava...
  Agora é ir em frente. Pedir ajuda à meu pai, à ele, à meus deuses. Agora é abrir as asas. Voar, navegar, seguir pela água, pela Serra do Mar. Levar sua lembrança como uma das penas mais claras. Sua seriedade adulta que se desfazia em brincadeiras de bebê. Ele sabia amar. E por isso foi amado. ( Mas houve a doença... ).
  É cedo, muito cedo para não sofrer por ele.
  Ainda falo com ele dentro de mim.
  O BMW pega um desvio, e acena. Eu e minha prima seguimos rumo à casa. Minha mãe chega amanhã.

DE CEMITÉRIO E DE MARCHINHAS

   As casas da rua continuam à venda. Ninguém quer morar nelas, ou o preço pode ser muito alto. O sol me faz suar e encontro meu amigo Julio que me espera em seu carro. O carro tem uma porta quebrada. A tranca não tranca. Ele dirige e as ruas parecem menos vazias do que eu esperava. É carnaval hoje. Segunda feira.
 O carro acha uma vaga. Os túmulos se amontoam no velho cemitério.
 - Você tem medo...eu não. Sabe, eu sou um ex ateu...tive umas coisas que me aconteceram...
 O velório fica no alto de uma ladeira. Logo na entrada vejo um cara conversando que me recorda, em sua aparência despreocupada, alguém que conheci muito tempo atrás. É Ricardinho. o irmão de Romeu, que é o cara com quem ele conversava. São dois irmãos que conheci nos anos 80 e que não vejo desde...1992...Caramba...
 Abraços e eles lembram de mim, o que me surpreende. Ricardinho não mudou nada. Romeu engordou, e como eu sempre adivinhei, continua solteiro. Tempos de hoje, somos quatro velhos amigos de 50 anos, três nunca se casaram. E aquele que nos uniu hoje, Giba, também morreu só, sem esposa, sem filhos, numa praia de Floripa.
 O caixão repousa entre flores. Talvez eu esteja acostumado aos enterros portugueses, não sei, mas eu estranho a ausência de lágrimas. Cerca de 40 pessoas estão ali, de pé, olhando o véu que cobre meu amigo. Não há crianças. Nenhuma.
 Giba foi capoeirista. E por isso um mestre de capoeira faz um discurso. Lembro então de como ele era quieto. Conhecia as pessoas sem fazer questão de as conhecer e ficava com as meninas sem nunca se apaixonar. Parecia um cara natural. simples, fácil de conviver, mas tinha terríveis acessos de teimosia. E brigava bem. Era alto.
 Quando o conheci ele tinha 15 anos. Eu tinha 18. Gostei dele de primeira. Era um cara que representava o melhor de então, dos anos 80-82. Um pé no take it easy hippie. E outro na vida louca dos anos que viriam. Pó. Onda. Estrada.
 Andamos atrás do caixão entre túmulos. Ricardinho reclama do absurdo daqueles túmulos que ostentam tanto. Muito melhor ser cremado. Eu peço para eles não se esquecerem meu desejo: ser cremado. E que minhas cinzas sejam adubo para uma mangueira. O caixão desce e o mestre canta capoeira. Batem palmas. Romeu fala em cerveja.
 Eu e Julio discutimos se a pessoa escolhe sua vida ou se ela é vítima daquilo que a vida faz. Giba viveu só. Sempre só. Numa praia. E morreu só. As pessoas, poucas, iam o visitar, mas ele era um homem quieto. E morreu cedo.
 A cerveja tem pedaços de gelo. Desce arranhando. Romeu continua o mesmo. Carros, motos, bebidas e um silêncio grande. No bar de esquina, cheio de gente que ele conhece, Julio lembra de uma música de sucesso dos anos 70. Uma canção que hoje seria proibida: "Te carreguei no colo menina, Cantei pra ti dormir"...
 Sinto que estou dentro de um sonho. Que o tempo não existe. Que estamos onde sempre estivemos. Mas Giba partiu e eu li as datas dos túmulos. Há quem tenha morrido em 1910.
 Passa um bloco de carnaval na rua. Cantando "Ó jardineira por que estás tão triste..." Garotos vestidos de panos brancos. E muitas meninas de shorts e garrafas na mão. Olho seus rostos e observo que nada há de alegre neles. Ou talvez eu não seja alegre. As meninas olham o vazio enquanto marcham atrás do som. Os meninos ficam bêbados. Um bando de coroas na mesa de um bar, nós, as assustamos com nosso olhar de lobo mal.
 O tempo passou meus amigos. Hoje achamos que todos os caras são viados e todas as meninas são mal amadas. O mesmo que nossos pais diziam e pensavam. E enterramos nossos amigos.
 Não sei se os melhores morrem primeiro. Os mais puros sim.
 As últimas meninas passam com suas bundinhas redondas em shorts brancos pouco sexy. O novo gole me parece ruim. Me levanto. Abraço Romeu e vou embora com Julio. Ele vai lançar seu segundo livro e um filme está sendo feito do primeiro. O sol lança tudo sobre a gente.
 O sol, ele é sempre o mesmo.

OS INFINITOS- JOHN BANVILLE....ERAM DEUSES, ERAM HOMENS ERA A VIDA.

   John Banville escreve aqui o melhor romance dos últimos 14 anos. É meu terceiro Banville e é, em suas primeiras página, o que menos promete. Parece bobo com o deus Hermes voando por entre os humanos que se reúnem numa casa de campo inglesa. A sensação é de que se trata de uma sátira sem leveza. Mas rapidamente a coisa muda e começamos a perceber que o romance é uma obra de arte. Mestre da língua, Banville faz poesia em prosa, filosofia em diálogos e diverte em meio a um drama pesado. Esse escritor irlandês, nascido em 1945 e que esteve na Flip, acho que em 2011, merece muito mais fama neste país tolo do que tem tido. Candidato ao Nobel, jamais irá vencer, aposto, é figura central da prosa deste século. Este livro o prova.
  Adam é um velho matemático. Famoso, ele revolucionou a ciência pura, ( ciência pura é aquela que vive no mundo abstrato, onde sua ambição está dentro dela mesma, não é prática. Como a arte, é inutil ). Adam descobriu uma equação que resolve o infinito. Adam está em coma após um derrame. Na casa está sua segunda esposa, alcoólatra. Seu filho, Adam Jr., um alegre e otimista rapaz. A nora, Helen, uma belíssima loura vaidosa, e a filha, Petra, que tem sérios problemas mentais. Há ainda Ivy, a ex-dona da casa, uma nobre falida que agora é empregada da familia, Duffy, um empregado. Depois chegam Grace, um amigo gordinho e desagradável de Adam, e o namorado de Petra, um rapaz frio, vazio, distante. Há ainda Rex, o cachorro, um velho labrador. Com esses elementos, mais a presença do deus grego Hermes, que narra boa parte do livro, e de Zeus, que está sempre desejando Helen, John Banville narra uma história que fala sobre morte, alma, carne, natureza e familia. O tema é pesado, mas, como um mestre, Banville nunca nos deprime. Essa a magia do autor. Ele faz com que um velho em coma narre alguns capítulos, suas sensações, seus pensamentos, e mesmo nesses momentos o que sentimos é maravilhamento, prazer. O livro dá enorme satisfação. Ele fala de chuva, de luto, de desentendimento, e é claro, solar, vivo.
  Todos os personagens são narradores em algum momento. Até o cão tem seus parágrafos. Mas Hermes e Adam são aqueles que mais falam. Vemos a vida pelo ponto de vista de um deus e de um homem em coma, na quase morte. Entramos na abstração da matemática, tomamos contato com  a natureza, com o infinito e com a dor de viver. A morte paira ao lado de cada frase. Deuses sofrem por não poder morrer, homens sofrem por morrer. Apenas os bichos e as crianças muito jovens são felizes. Ignoram que exista a morte.
  Não contarei a surpresa reservada às últimas linhas. Mas posso dizer que quando terminei o livro a minha sensação foi de espanto. A mesma sensação rara de se abrir um presente aos 7 anos no Natal. Um laço se desfez, a caixa se abriu e eu sorri. Um dos mais belos finais que li em minha vida. Uma afirmação do valor da vida. E ao mesmo tempo um tapa na cara. Lindo.
   Livros como esse recuperam nossa fé na literatura, na ficção e no homem. A criatividade, esse dom sem razão, e as palavras, ferramentas que quando bem usadas são encantamento. John Banville conseguiu escrever um romance para adultos, sem nada de fácil em seu texto, que produz o mesmo encanto de um grande livro de poemas. Parece um sonho. Parece uma epifania. Parece o Olimpo.
  E não é.

UMA PRECE TARDIA POR SUNI, O RINOCERONTE BRANCO.

Suni.
Voce morreu e sinto que Deus morreu mais um pouco junto a voce. Sinto que a vida ficou menor. Porque quando uma espécie se vai a vida se vai. Tudo fica mais sem motivo. 
Uma espécie deixa de existir e o palco deste drama diminui. A uniformidade aumenta, a diversidade encolhe. Um rinoceronte branco, personagem que aqui estava desde sempre. Que sobreviveu a romanos, gregos e nazistas. A secas, terremotos e vulcões. Mas não consegue resistir a nosso progresso. A nossa maldita cobiça. E leva com ele um testemunho. Uma presença.
O planeta perde mais uma voz, um rastro e um cheiro. Suni cai. Morto em sua terra. E sua terra cai com ele, deixa de ser terra e passa a ser vazio. O eco de sua morte roda mundo e invade meu espaço. Que seca.
Suni nada entendeu dessas mudanças. Não entendeu porque ele estava no centro delas. Porque a Terra é de Suni. E nunca nossa. Nós aqui estamos para cuidar de Suni.
E falhamos.
Mais uma espécie se vai. E para sempre vira lenda. E lenda é saudade para sempre. É ausência que não pode ser preenchida. Desconsolo.
Suni... Nunca mais.

BERLIN, LOU REED, A SEDUÇÃO DO QUE TE DÁ MEDO.

Berlin não termina nunca...Porque ele diz as coisas mais horríveis da forma mais bela possível. Suicídio, genocidio, infanticidio, Lou fala horrores com sua voz fria, sem nenhuma emoção. Lou recorda suas sessões de eletrochoque, tardes de pesadelo ordenadas por seu pai. Lou consegue fazer do pesadelo, arte e dessa arte beleza.
Alguma coisa pode ser mais bela que The Kids? Alguma coisa pode ser pior? How Do You Think It Feels? O disco é um pesadelo sedutor. É escuro é úmido e é gelado.
Luxuriante. Caroline se mata e agora não mais sentirá amor por quem a surrava. Oh Lou...Oh Jim...
O disco começa em dissonancias jazzistas e termina em orquestrações de amor nas nuvens. Bob Ezrin produziu daquele modo apocalíptico no qual ele era mestre. Jack Bruce, Steve Hunter, Dick Wagner estão aqui. E Lou canta o refrão de Frankenstein: Sad Song...
Após o sucesso de Transformer ele quis assassinar sua carreira e fez Berlin. E conseguiu. Os criticos de então o arrasaram. Os mesmos que destruíram Led II e discos de Eno. Os críticos dos anos 80 botaram tudo em seu devido lugar, para sempre. Berlin é uma obra-prima da mais pura arte moderna. E é um lixo.
Berlin nunca termina. Lou era um vampiro que está por aí sugando sangue de meninos.
Como se pode criar tanta vida falando de morte? Berlin nunca termina...O reencontro agora, trinta anos depois da última vez em que o escutara. Tinha medo dele. E o medo sai e sinto o que eu não pensava querer sentir. A sedução. Berlin.
Merda. Porque tudo que é melhor custa tanto?

MICHAEL SCHUMACHER

   E enquanto corvos esfregam as mãos escrevendo manchetes e retrospectivas sobre um defunto ainda vivo, o cara em coma respira. E sonha sonhos que serão para sempre esquecidos.
   Uma vida vale pelo que dela foi feita. Um piloto chegou ao seu máximo e parou. Mas a vontade de ousar não morre. Como um viking seu Valhala era a crença em morrer lutando. Se as pistas nada mais tinham para ele, o mundo ainda era um campo de batalha. Um nórdico feito para a luta.
   E essa morte, se vier, será morte escolhida, nobre despedida. Em luta, sempre!
   E enquanto isso pilotos sem brio e frustrados covardes esfregam as mãos com suas lamentações bem ensaiadas.
   Filho de uma cultura latina, Senna morreu como um cristão numa cruz. E Gilles se foi como um celta enlouquecido. Mas Michael, se partir, irá numa barca em chamas rumo ao mar.
   A vida vale por aquilo que fizemos. O que tiramos de mais particular para nosso espírito. O que levamos conosco para sempre.
   A pedra em meio a neve o encontrou sorrindo...



NARRAR: AMOR E MORTE

   Primeiro modo de viver o começo de um amor.
   Ela veio e me deixou de quatro.
   Segundo modo.
   Ela é linda e é meu tipo.
   Terceiro modo de viver esse nascer.
   Eu estou perdido, meu coração me dá raiva por ser tão ruim pra mim mesmo.
   Uma narração. ( Modo quarto )
   ... e naquele dia de nuvens pesadas, ficamos sózinhos mesmo em meio as ruas lotadas. E quando a noite veio não percebemos que havia tempo. Eu e ela transcendendo os lugares e o tempo e tudo em mim se encantava com a música de sua voz. Então pegamos o carro, que já era nosso, e pegamos a estrada indo ao mar esquecidos de compromissos do dia. Ainda era escuro enquanto deitados em pedras, ouvíamos o rugido do mar batendo em espuma. Eu sei que ele queria me contar novas. E ela dormia enrolada em cobertor, o céu amanhecendo frio, e as ondas querendo participar de nós. Meu amor foi sacramentado no mar. As estrelas foram as testemunhas...

   Modo de viver a morte do pai.
   Ele morreu e é triste.
   Modo de viver a morte do pai.
   Estou mal e a morte não faz sentido.
   Modo de viver a morte do pai.
   ... e eu chorava sem dor, e as pessoas pareciam mais vivas. Conversava com ele, que não era mais 'ele', era agora o pai que tive desde antes de antes. Sentado sobre a grama, eu sabia que seus ossos e carne teriam de ser deixados lá. O carro rodava pela rodovia e o céu me parecia cúmplice. Os ossos ficaram na terra, mas o mais precioso ia comigo no carro. Meu pai era mais vivo que nunca em mim. Sua mão minha, sua voz minha, seu espirito aqui. Eu pai, eu filho, eu sua vida e sua morte...

   Falar é nosso bem.

MANDA PRA DEBAIXO DO TAPETE

A ciência nos deu a cura de algumas doenças e remédios pra deprê. Carros e aviões. Mas não nos deu uma forma de lidar com casamentos, amizades, pais e enterros. E é nessa hora, a hora da verdade, que a gente percebe que fomos roubados.
Isabel era minha prima. Mesma idade, a gente cresceu brincando. Ela falava baixo, era vaidosa, boa gente, cheia de amigos. Adorava os pais.
Sexta de noite, voltando do teatro, Isabel levou um tiro no peito. Metade do corpo se esparramou pelo carro. Os assassinos, de moto, se foram... Isabel deixou dois pais. E um lugar vazio.
O corpo, recomposto e maquiado, foi enterrado. E o que é um enterro? Um monte de gente triste, sem saber o que fazer, o que sentir, o que falar. O corpo baixa à terra em meio aos coveiros, e todos ficam aturdidos como bichos que nada entendem. E eu, que em nada creio, penso, cheio de ódio, naquilo que a tal modernidade nos tirou. Roubou de nossa vida o velório em igreja, o padre consolador, o ritual do enterro. Qualquer tribo primitiva sabe como lidar com isso, nós, modernos, não. Assim como não sabemos lidar com nada que realmente importa. Tudo é varrido para debaixo do tapete, para o inconsciente. Afinal, o que nos pedem é seguir em frente, sempre. ( O melhor é continuar a trabalhar!!!! )
Onde a transcendencia? Onde o luto profundo e reparador? Onde a dor da tragédia e a catarse? Tudo o que nos oferecem são flores e trabalho, a vida que segue, um antideprê e uma terapiazinha... e todo o significado da morte e da vida passa a ser não entendido. Nos tornamos menos que bichos, somos um conjunto de células, nosso sentimento e nossa dor é quimica, nada mais que quimica. Óxidos e nitratos que pensam.
É tudo uma merda, uma imensa merda. Sabemos tudo e nada sabemos na hora em que o negócio fica sério. Os pais, desamparados, pessoas da época romântica jogados na era do trabalho, ficam lá, ao lado da cova, agradecendo a quem compareceu ( muitos ) e em desamparo completo. Onde o chefe da taba? Onde o xamã? Onde o consolo que consola? Nada, absolutamente nada. Tudo trancafiado no inconsciente, afinal, toda essa vida religiosa/simbólica apenas atrapalha a caminhada rumo ao futuro/trabalho.
Eu sinto ódio. Muito ódio. A velha Bíblia estava certa, olho por olho. Não me venham com "vejamos", "por outro lado", "a sociedade"; morte se paga com morte, os dois covardes devem pagar, ser enforcados na minha frente, assados em fogo brando. Eles devem pedir perdão de joelhos e serem executados com risos e festa. Te deixo chocado? Falo aquilo que voce não tem coragem de dizer. Aquilo que foi trancafiado no seu cérebro, lá no escuro, junto com sonhos de familia feliz, desejos de liberdade e fé na vida. Os dois foram ruins, e creia, a maldade é incurável e imperdoável. O relativismo da ciência nos roubou também essa certeza.
Uma menina senta-se ao meu lado no velório. Vestido longo, cabelo com tiara, voz fininha. Talvez 7 anos. Ela é exatamente como Isabel foi um dia. Ela precisa ser protegida. Ela precisa ter um final mais digno. Ela é o único sentido que nos resta. A continuação da história.
Minha mãe pega meu braço. O pai de Isabel não quer sair do lado da filha. O céu está azul. Um pássaro passa voando. Algumas pessoas estão no túmulo de Senna.
Se Deus não existe e nunca existiu, eu o invento. Se os anjos fugiram da Terra com desgosto, eu falarei com eles. Se a alma é apenas o sonho de alguém que pensa demais, eu pensarei muito. O vale da morte, a dor de um pai, a saudade de um amigo... apenas isso importa.

A MORTE ( DE UMA PALESTRA DE SCARLET MARTON )

Quando eu fui pagão.
Enterrava meu morto ( e ele era meu, e a morte era minha ) em casa. Ele ficava habitando meu jardim e fertilizava minha vida vegetal. Seu espírito intercederia por mim e era ele quem faria minha rosa florir. E eu sabia que iria morrer sob céu e sobre terra e saberia fazer vicejar o verde das folhas e sabia que a morte é a parte principal da vida. Pois nesse universo primitivo tudo é morte: cada estrela e cada pedra é morta, todo presságio a anuncia. Toda casa tem seu túmulo e seu altar, todo jardim guarda um espirito. A morte regendo a vida, a morte sendo presente, a morte como parte de vida.
Quando me tornei cristão. Passei a crer apenas na vida. A morte tornou-se maldita. Sagrada é a vida, dada por Deus, a morte é incompreensível. E detestável. A vida continua como ressurreição, a morte deve ser vencida. Cemitérios para depositar corpos, corpos que contém alma, corpos que se erguerão, um dia. A morte deve ser banida.
Quando me fiz moderno. Lugares para morrer, de preferencia dormindo. Não posso encarar minha morte, que ela venha em sono de ópio ou em susto de acidente. Que o luto se faça por um dia em capela distante e que o resto seja depositado entre restos. Longe de mim a morte. Que ela se torne espetáculo ficcional, que se torne explosão, malabarismo, show de cores, mas que eu me esqueça de sua realidade. Passo a acreditar que toda morte é não-natural, que morrer é sempre um acidente, um erro médico, um cigarro a mais, uma alimentação errada. Esqueço que morrer é natural, corriqueiro, banal.
Ouço então que Pascal pensava exatamente o que sempre pensei: que toda a história da cultura é uma tentativa de se distrair da morte. O homem culto, racional, tem na morte algo de insuportável. Um intelecto desenvolvido não suporta a idéia do inevitável, do além de sua compreensão. Então ele foge dessa lembrança. E cada vez mais se entrega a distração. Teatro, ritual, livros, passeios, filmes, sexo, romance, drogas, disputas, consumo, virtualidades. Nos distraimos olhando estrelas ( que são mortas ), vendo espetáculos ( de autores mortos ), filosofando ( sobre idéias mortais ). Tentamos acreditar em religiões que consolam. Mas no íntimo todos sabemos: tudo isso nada significa diante da morte. Mas....
Porque o homem é o único bicho a saber de seu fim? Porque mesmo sabendo que tudo morre persistimos? Porque pensar na morte é viver? Memento mori.
Sempre tenho em mim a heróica imagem de um homem primitivo olhando para seu filho morto e pensando aturdido : Porque? Porque? Porque?
Não é a escrita ou a descoberta do fogo que fez de nós macacos mais evoluídos. Foi a consciencia do fim que nos fez humanos. O tentar preservar a memória dos que morreram, o tentar esquecer o próprio fim, o se proteger desse fim. Ser humano é saber-se finito.
Mas existe o risco da desumanização. Que seria ignorar a morte. Não mais preservar memórias, ignorar completamente a própria finitude e principalmente, deixar de respeitar e temer a morte. Em mundo sem a presença da morte seria o homem apenas um produtor de eternos presentes, sem qualquer compromisso com futuro ou responsabilidade por um passado. Insetos.
Quando morrer eu existirei como cinza. Misturarei meu pó ao pó de onde todos vieram. E estarei na situação de todos aqueles que vieram antes de mim. Serei mais um e perderei enfim a arrogancia de ser único. Meu pó será como é e sempre foi e sempre será o universo: para sempre.
Os pagãos sabiam disso. Morrer, para eles, era retornar a Terra. Voltar ao ciclo da natureza. Tornar-se solo. Humus- Humano. Ser um homem era saber morrer. Viver era preparar-se para morrer. E saber disso era aproveitar seu tempo aqui e agora. Carpe diem.
Não quero dizendo isso advogar o luto antecipado ou a morbidez fatalista. O que penso é que precisamos nos apequenar diante do inevitável, adquirir uma noção de importância perante o inevitável, entender que todos estamos nesse caminho.
Saber que na vida só existem dois momentos de súbita e completa clareza ( e que são os momentos onde cessa o tempo ): o momento do amor verdadeiro e o momento da morte. Todo o resto é preparação para amar e morrer ( em seu melhor ) ou covarde negação dessa prova de vida ( em seu pior ). Como dizia Montaigne, filosofar é aprender a morrer.