Quando assistí este filme ( que sepultou a carreira do ambicioso Boorman ) no cinema, aos 18 anos de idade, achei-o apenas um muito metido e muito escuro filme de aventuras medievais. Revi-o anos depois, na TV, convalescendo de uma apendicite, e pensei ser então um dos filmes de visual mais belo já feito ( percebi nele muito de Kurosawa e um pai do Senhor dos Anéis ). Guardei o filme em dvd para mais tarde e passados mais dez anos e vários filmes depois, eis que o reassisto. Deslumbrante.
Como já diz o título, trata-se da saga de Arthur e da Távola Redonda. Mas hoje eu sei que Boorman e Rosco Pallemberg ( roteiristas ) dão, propositalmente, uma aula sobre Jung no filme. John Boorman, diretor sempre eficaz, mergulha nesse universo de simbolo e de mito, e nos dá uma visão muito próxima daquilo que vive em nosso inconsciente. Atenção: toda frase do filme, todo diálogo, é uma chave para nosso mundo onírico.
A maior diferença entre Freud e Jung reside no modo de abordar o sonho. Para Freud, aquilo que sonho é meu e fala de mim para mim-mesmo. Para Jung, nós sonhamos juntos. Não sou eu quem sonha, é o mundo que sonha em mim. Meu inconsciente não é meu, é nosso. Nosso inconsciente está enlaçado, amarrado em bilhões de visões unidas em símbolos comuns.
Para Jung. minha psicose é a psicose do mundo, minha neurose é uma neurose comum. Eu, enquanto ser inconsciente, sou uma fração de um todo. E perceba: esse todo do qual sou parte não é o todo de agora, é o todo de sempre. Nosso mundo inconsciente é o mundo que o filme mostra.
O que vemos na rua, prédios, celulares, telas, rostos e vozes, é tão somente uma tênue fumaça, um mundo mutável, e por ser mutável, sem grande valor.
Vamos aos personagens do filme ( e já aviso que é impossível sintetizar o que acontece, o filme pode ter centenas de interpretações ).
Merlin é a mais fascinante. Ele possui o segredo da magia por ser hermafrodita. Ele opera os extremos: ele é homem e é sua ânima. Tem humor e tem o olhar do drama. Racional e sem razão. Merlin une a natureza e o humano. Quando ele sai de cena começa a decadência de Camelot. É dita então uma frase crucial : " O homem era parte. Agora ele está fora." Merlin é o homem como parte da vida e não como ser estrangeiro. Todo sofrimento humano vem da inadaptação do homem à vida.
Outra frase de Merlin : "Saio da vida e passo a viver no sonho."
Morgana é a prostituição da genuína magia de Merlin. Se nele o dom é nato, ela aprende a ser feiticeira. Ela usa objetos, poções e receitas. Morgana visa à um fim, o poder. Ela é uma espécie de charlatã. No incesto dela com seu irmão ( ela é irmã de Arthur ) nasce Mordred, o filho que irá afrontar o pai ( e será morto ao matá-lo ).
Nada de edipiano aqui. O que move o filho não é o desejo pela mãe. Mordred é o desejo da mãe. Ele é o novo mundo que mata o velho mundo. O mundo humano assassinando o mundo natural e sendo morto com ele.
Arthur é filho de Uther, o rei. Mas Uther é um rei ativo, violento, lascívio, que perde tudo pelo desejo. Merlin obtém Arthur de Uther e o cria. Arthur tirará Excalibur da rocha e será rei.
Arthur é um tipo de pai. E como pai, ele se torna um tipo de deus. Tudo nele é desejo de justiça, tudo nele é coragem, e ele quer crer no bem. O único homem digno de Excalibur arranca da Terra um objeto que é paz e morte, engenho e magia, força e bondade.
Mas Arthur é traído por Guinevere, sua esposa. Traído por Lancelot, o mais puro dos puros. Temos aqui ( pena que tão rapidamente ) o nascimento do amor cortês. Lancelot ama como quem ama a Deus. Seu amor é feliz enquanto projeto de desejo, ao ser realizado vem a morte. Todo nosso amor pelo trágico está nascido aqui. Eles traem o bondoso Arthur e nós ficamos tristes com essa sina. Continuam nobres a nosso olhar: o amor é mais forte que eles. Lancelot tentará a morte e se tornará um ermitão cristão; Guinevere será freira. Um Arthur ancião, também ele, confessará seu amor por ela ( e lhe pedirá perdão ).
O mundo desaba.
Merlin se retira e Camelot se torna caos. Nasce nosso mundo.
Perceval parte para buscar o Santo Graal, símbolo que poderá reabilitar Camelot. As cenas em que Perceval ( o mais religioso dos cavaleiros ) viaja atrás do Graal, são as mais belas e as mais terríveis do filme. O Graal, símbolo de muito difícil decifração, é para mim exatamente isso: um símbolo. Quando Perceval consegue o objeto sagrado ( num sonho ), e o dá a Arthur, fazendo com que o rei renasça em fé, Perceval dá vida aos símbolos, força que reanima a existência de Arthur.
Mas nada pode ser como foi. A morte vence. Merlin vive apenas nos sonhos agora e Arthur é morto pelo filho incestuoso que é morto.
Perceval devolve Excalibur a Senhora do Lago e repito, nasce este mundo onde vivemos.
Há muito mais para ser dito. Existem infinitos momentos de simbologia. E quem já tentou, como eu, penetrar nesse mundo atemporal, sabe que interpretar um símbolo é ler o infinito.
Enquanto eles viverem em nossos sonhos a vida ainda valerá.
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