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LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, VOLUME 1 RAMO SÍRIO ( e a cultura da honra )

Tradução direta do árabe por Mamede Mustafa Jarouche. Eu li faz uns 10 anos a versão POP, aquela traduzida do francês por Malba Tahan. Essa versão, a que rodou o mundo e se tornou parte da cultura universal, é o melhor conjunto de narrativas que se possa achar. Por isso a fascinação de Borges. Nada explica melhor o amor do homem por ouvir histórias que esta obra. A princesa conta toda noite uma história para o Sultão, evitando desse modo que ele a mate pela manhã. Ou seja, a narrativa adia e vence a morte. Sem histórias nós morremos. Imaginar um mundo onde um pai não conta suas histórias para os filhos, onde não haja livros ou mesmo canções e RAP, é imaginar um mundo sem vida humana. O que define o ser humano é a capacidade de fabular e a necessidade de ouvir esse contar. Cinema, teatro ou epopéias, sem isso morremos. A qualidade de vida de um momento histórico é definido pela qualidade das histórias que são contadas. ------------------ A versão, esta, adulta, tem palavrões e mais sexo. O amor à criatividade é o mesmo. Não pense que a versão popular-antiga é infantil, ela não tem idade como não tem lugar. Esta é mais dura, aquela mais solta. Ambas são o que são, mágicas. Gênios, demos, poções, tudo vale, tudo pode acontecer. Mas é preciso falar, a maior parte das histórias tem a mesma motivação: um homem é chifrado por uma mulher. Não vamos negar o que se lê, a cultura árabe é toda centrada na honra do homem, e nada suja mais essa honra que um corno na cabeça. Descendentes dessa cultura, latinos carregam esse costume em seu gene. Espanha, Portugal, sul da França e da Itália sofreram imensa colonização árabe, ficaram os chifres. Na cultura celta as mulheres eram divididas pela tribo, o valor delas era ainda mais baixo, e por isso não havia o pavor da traição, de ser feito piada. Entre os árabes, a mulher pura tem valor sem preço, mas a traição coloca o homem como desonrado e a mulher que trai se torna digna de execução. Digamos que entre os celtas elas eram objetos de uso, e entre os árabes era princesas ou uma praga do demonio, sem meio termo. Por isso entre ingleses ou alemães, o tema da honra masculina não tem tanto valor. Já na minha cultura, tenho sangue árabe, basta olhar meu rosto para perceber, a honra está acima de tudo, e a honra maior é familiar: pai, irmãos, mãe e a mulher. Não se pode quebrar essa tradição. Nestes contos há ladróes e mentirosos que são até perdoados, o corno não tem como ser esquecido. É desonra para sempre. ---------------- Em 2023, neste nosso mundo, que na verdade é meio mundo, o Ocidental ou aquele que segue a cultura greco-latina, tudo está em crise. Vivemos a maior crise existencial desde o ano 1000, momento da idade média em que se definiu o que seriam os próximos mil anos. Nada está seguro agora, religião, arte, família, psique, tudo parece e está sendo dissolvido. O que virá em seguida? Dizem os astrólogos sérios que serão séculos de escravidão inconsciente. A nova etapa da história lembrará o antigo Egito, populações inteiras servindo a um grande senhor ( ou grande empresa ) em troca de sentido de vida, pão e circo. Um véu cairá sobre as pessoas e elas abrirão mão de sua particularidade. ------------- No mundo árabe nada disso faz sentido pois faz séculos que eles vivem basicamente do mesmo modo. Por detrás da Ferrari ou do brilho da cidade, o que existe é o tapete carregado para a reza, a mulher escondida, a ausência de alcool e de carne de porco, a certeza absoluta de se estar sempre certo. AS MIL E UMA NOITES não têm dúvidas, exitações, tudo é ação, tudo é de Deus, tudo é plano Divino. E por mais ateu que voce seja, tudo isso está dentro de nossos genes. My dear.

FICÇÕES, JORGE LUIS BORGES

TLON, UQBAR, ORBIS TERTIUS. Descobre-se um sinal de uma civilização insuspeita. Onde tudo é, apesar de sua aparente absurdez, organizado, reto, objetivo. Então, e eis aí o que desejo destacar do conto, as notícias da descoberta dessa civilização são divulgadas. E o povo passa a absorver e a aceitar esse mundo absurdo como um novo mundo melhor. O MUNDO PASSA A SE DESINTEGRAR. Língua nova, nova história, nova geografia, novo modo de viver. -------------------- Todo esse final social eu não dera muita impostância ao ler o conto em 2005. Mas relendo-o hoje, no momento em que se trava uma guerra planetária entre o real e o imaginário, o caos e a ordem ilusória, o humano e o "novo" humano, assombra-me o modo lógico como Borges intuiu uma situação fantasiosa porém possível e até mesmo provável. PESSOAS ABRINDO MÃO DE SI MESMAS EM TROCA DE ORDEM E PROTEÇÃO. ------------ Mas há um conto ainda mais impressionante. A BIBLIOTECA DE BABEL é uma construção sem fim, onde repousam todas as combinações de letras possíveis. Veja a lógica: se houver um local onde TODAS AS LETRAS POSSAM SE COMBINAR AO INFINITO, formando assim desde sequencias como wwwyxxs até algo com "Eis uma verdade", então TODOS os livros do mundo, os antigos e os futuros, estarão lá contidos. Inclusive haverá um livro que conte toda minha vida. Por simples combinação de letras, TUDO será escrito. Nada mais poderá ser original, pois nela tudo já terá sido antecipado. Internet? Um super computador? Sim. Exatamente isso, inclusive no modo como as pessoas lidam com seus corredores e balcões escuros. -------------- Se no meu post abaixo digo que como estilista Borges é simples demais, como fantasista lógico ele é genial.

O ALEPH, JORGE LUIS BORGES

Assim como todo novo amor modifica todo amor vivido no passado, o que passou jamais é estático, ele é vivo como o presente, cada livro lido modifica o valor de tudo aquilo que antes foi lido. O EU que leu O Aleph em 2006 é completamente outro do EU que o lê agora. Nesse meio tempo, 15 anos, eu estudei teoria literária e além disso devo ter lido mais uns 500 livros. Filmes, passeios, pessoas, atos, tudo isso faz com que minha percepção tenha mudado. O EU de 2006 ficou assombrado com a criatividade de Borges, o de 2021, menos, bem menos. --------------- O fato é que nesses 15 anos eu li aquilo que Borges amava e então a cada frase do argentino eu vejo a fonte em que ele bebia. Em 2006 eu nada sabia de Hesíodo ou Edmund Spenser e dava valor muito baixo a Poe, Conrad, Stevenson, Wells, Chesterton e às MIL E UMA NOITES. Borges não foi um gênio como eu pensei um dia, mas sem dúvida, foi um escritor maravilhoso. --------------- Disse uma vez que existem dois tipos de autores, aquele que narra histórias criativas e aquele que cria personagens vivos. Raramente alguém conseguiu fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Cervantes é um. Borges conta histórias criativas, o personagem que narra é quase sempre ele mesmo e seu interesse não reside na vida interior dos tipos, mas sim na ação e nas sensações que nascem. O que mais admiro em um autor é o poder de penetrar na mente de uma personagem viva. Borges não é assim. ------------------- Labirintos, mundos dentro de mundos, tempo que contém todo o tempo, universo que é o Kosmos e ao mesmo tempo partícula que reflete todo o Kosmos....tudo isso se tornou cultura POP neste século. E nesse sentido, Borges teve azar. Ler o Aleph agora traz à lembrança algo muito próximo de filme da Marvel. ----------- Borges sempre será um grande escritor, óbvio, mas sua maravilhosa criatividade hoje parece bem menos maravilhosa e muito menos criativa.

UM POST RICO: WELLS, DVORAK, BEETHOVEN, BORGES E O FUTURO

Jorge Luis Borges amava escritores que sabiam contar histórias. Daí seu amor por Stevenson e Conrad. E por Wells. Quando voce lê Julio Verne, por exemplo, a decepção é flagrante. Verne não é bom narrador. Seu sucesso se deve ao tema. Ele criou um tipo de sci fi plausível. Excetuando VIAGEM AO CENTRO DA TERRA, nada que ele escreveu é muito criativo. Como já disseram, Verne é mais um professor que um fabulista. Wells não. O inglês tem fantasia. E escreve claro sem ser didático. O que ele inventa é invenção pura. Mas com alguma possível plausibilidade. Borges queria que suas histórias fossem mais poéticas, mais sonhadoras. Caro Borges....se assim o fossem ele não seria Wells. ---------------- A MÁQUINA DO TEMPO foi relido por mim agora. É uma história, uma narrativa, um conto. Como ocorre em Borges, a psicologia do personagem não importa e aquilo que acontece fora da consciência do heroi também é ignorado. Wells pega seu tema com os dentes e o leva avante. Nada fora desse tema importa. O filme feito em 1960 por George Pal é uma das 3 melhores adaptações literárias já feitas ( OS INOCENTES e O SOL POR TESTEMUNHA são os outros ). Isso porque nada que há no conto ficou de fora do filme. Ver o filme é como ler o livro, e isso é um elogio aos dois. --------------- Citam muito Huxley, Kafka e Orwell como os caras que acertaram várias previsões sobre o futuro. Huxley acertou na ditadura do prazer e na química como lei da vida. Kafka previu a burocracia do mundo moderno e suas leis sem sentido ( quem pensou nas máscaras? ). Já Orwell previu a uniformização da vida, a abolição do individualismo. Pois Wells deveria ser citado como o autor que previu, aqui, o fim da virilidade. Por não haver mais necessidade de força física e de coragem, o homem, como espécie, se torna um ELOI. Um ser bonzinho, fraco e infantil. Gado para ser comido pelos MORLOCKS, os humanos que foram rejeitados do mundo de prazer onde antes os ELOIS mandavam. A mensagem de Wells é que aqueles que abriram mão da virilidade se tornam passivos cordeirinhos, prontos para obedecer negando a realidade da vida; já os Morlocks são o lado feio e perverso da vida, mas por trabalharem duro e não temerem a vida como ela é, fazem dos Elois seu meio de alimentação. Espertamente Wells coloca o livro mais de quinhentos mil anos no futuro, o que dá chance a toda uma evolução biológica. Os Elois não têm mais uma cultura, apenas fazem amor, brincam e comem. Os Warlocks mantêm as máquinas em funcionamento e devoram Elois a noite. É a vida das aranhas e das borboletas. A vida nua. ------------------- Música? Sim, vou unir os dois temas. Beethoven e sua OITAVA SINFONIA. Esqueça a Nona e a Quinta. As melhores são a SÉTIMA e a OITAVA. Ela ataca. São quatro movimentos breves, fortes e impetuosos. Dizem que se nascido em 1950 Beethoven seria um mestre do heavy metal. Concordo plenamente. Ele é feroz e barulhento, ama o kaos para poder o vencer e controlar. É viril, maravilhosamente viril. Cada movimento aqui é escrito com os culhões. Metais que explodem violinos que respondem. Beethoven foi um homem. Um homem anti ELOI. ---------------- Agora Bruno Walter rege a Nona de Dvorak. É talvez minha sinfonia favorita entre todas. Uma profusão feliz de melodias. Todas as trilhas de cinema estão aqui. Os compositores plagiam temas desta obra até hoje. Escrita no ano da invenção do cinema: inconsciente coletivo? Pensaram que o tcheco Dvorak havia sido influenciado pela música negra e indígena dos EUA de 1895. Mas não, Isto é eslavo até o osso. Uma obra prima da força. Mais uma obra de arte anti ELOI. ---------------- John Huston teve pneumonia, e dado como inválido, pulou a janela e foi nadar em rio gelado. Ele pensou: ou me curo ou morro. Curou. E passou toda a vida pulando janelas e se atirando em rios gelados. O que ele pensaria da minha máscara? Tolstoi evitava a tuberculose, mal que atingia 30% das pessoas de então, nadando no inverno, nu, todo dia, cedo. ---------------- É ótimo ler este livro agora, em meio a maior onda de medo da história do Globo. Nunca estivemos tão perto do mundo dos ELOIS.

O OLHAR DE BORGES, UMA BIOGRAFIA SENTIMENTAL. SOLANGE FERNÁNDEZ ORDONEZ.

Bem...um problema sério neste livro: a autora, psicóloga de crianças, é amiga e fã de Borges. Desse modo, chega a irritar a quantidade de elogios.
Mesmo assim tem muita coisa boa. Começa com uma cena linda: Borges criança jogando xadrez com o pai na biblioteca. Ele foi tão feliz nessa época que bibliotecas se tornaram para sempre seu mundo. Borges foi apegado e amigo do pai, da mãe e da irmã. Seu problema era na rua, onde parecia fraco, mimado e muito snob. Nunca foi, se sentia um estrangeiro. Amava os livros, a realidade era aquela, sua curiosidade o fazia ler tudo.
Foram para a Suíça, e lá ele sentiu saudades da Argentina. Voltou já adulto. Aos 40 anos fica famoso em seu país, dez anos depois é uma figura mundial. Morre aos 87 anos como um mito. Caminhava, de bengala, altivo, pelas ruas de Buenos Aires e todos o apontavam, lá vai Borges!
Nunca se casou, viveu com a mãe até a morte dela, aos 90 anos. Ela escrevia o que ele ditava e lia para ele: Stevenson, DeQuincey, Hume, Henry James, textos do inglês medieval, Cervantes. Borges amava a literatura inglesa, Keats, e pesquisava misticismo, religiões. Se considerava um judeu porquê o judaísmo é todo baseado em escrituras, no texto, na palavra. Achava o catolicismo infantil.
Felzmente a autoraautora evita psicologismos. Ela diz que um grande artista tem seu mundo, não pode ser reduzido.
Borges buscava mostrar que a realidade é mais irreal que o sonho. Seus contos confundem, desorientam. Místico verdadeiro, ele aceitava a incerteza. Abominava dogmas. Não gostava da literatura psicológica, jornalistica. Sabia que a verdade está na fantasia.

O LIVRO DE AREIA, JORGE LUIS BORGES

Não se irrite, continuo vendo Borges como um dos dez gigantes de seu século. Mas...este livro, escrito quando ele contava 75 anos, tem problemas. Treze contos curtos, treze narrativas com tempos e lugares dos mais insólitos. Treze contos que me deram prazer, mas...
Duas coisas aqui incomodam, primeiro a concisão genial das Ficções, aqui parece simples preguiça, pressa. Segundo e pior, os contos tem cara de imitação. O genial argentino parece um imitador de si mesmo. O horror tem tintas pouco sutis, a filosofia parece pedante, o estilo pobre.
Penso que este é um bom livro para um primeiro leitor de Borges, mas para quem conhece seu melhor, o dom mágico que ele tem de nos confundir e de fazer sonhar, este magro volume terá um insosso sabor de prato mal feito.

SOMOS TODOS ROMANOS

   Estou na USP, esse mundo mágico onde todos somos crianças em busca do sentido das coisas, fazendo um novo curso, Italo Calvino. 
   Fico sabendo que a familia inteira de Calvino era formada por cientistas, e que ele foi a ovelha desgarrada. Logo após a segunda guerra, aos 20 anos, ele lança seu primeiro livro, neo realista, e alcança o sucesso. Não, não vou falar sobre esse livro, vou falar sobre a Itália, esse país que equivale a um universo ( ou equivalia ), rico, complexo, desconcertante, e que foi sufocado nos últimos 40 anos. 
   Calvino conta que o pós guerra foi uma explosão de vida. Na rua, nos cafés, nos ônibus, todo mundo narrava histórias da guerra. Inventadas ou não, era uma multidão sem fim de rostos e vozes, cada um deles individualizado, contando dores e humores da guerra. O italiano não é alegre, ele é vivo, essa a verdade. Ao contrário da Alemanha ou do Japão, que morreram e ficaram em luto por décadas após a derrota, a Itália passou a narrar, falar, seja em filmes, canções, discursos, livros, piadas, anedotas, lendas, mitos. Rapidamente a dor foi superada e o apogeu italiano veio. Não vou descrever esse apogeu. Quem assistiu A Doce Vida sabe do que falo. Luxo, miséria, começo da decadência e conforto como nunca antes....está tudo lá, vivo e falastrão, ópera e dor. 
  Somos todos romanos, nós, latinos. Com nossa volúpia e nossa vaidade vã, discursos sem fim, leis e mais leis, corrupção e vida, destruição, recomeços, mulheres e risos. O amor pela comida, pela bebida, pela cama, pelo banheiro, pela praia, pela caminhada à toa, pelo dolce far niente. Commendattore, vossa sinhoria, minha bella, cantare!! Estou criticando? Não! Ë um elogio!
  Em outra aula, outro curso, sobre os começos do Brasil, um autor americano, escreve o elogio da latinidade, especificamente ibérica. A questão é simples: Valeu à pena? Valeu a pena os americanos reprimirem toda sua vida espiritual em troca do desenvolvimento material? ( Ele é ateu. Espírito é criatividade, festa, arte, ritual, vida na rua, familia....). Valeu a pena os ingleses matarem seu espírito celta em troca do inglês eficiente, pontual, quieto? 
  Os negros americanos mantiveram a alma livre e são aqueles que ainda dão vida à América. E os brancos saxões? O que eles têm vivido? 
  Ele fala da brilhante ( isso mesmo ) maneira como os portugueses colonizaram o Brasil. Tentando catequizar os índios, misturar-se à terra, casando-se inter raças, tentando se fundir ao ambiente. Falhas houve muitas. Mas os americanos do norte lutaram para homogeneizar o todo, aparar diferenças, fazer do todo um uno. Valeu a pena? Richard Morse conta ainda que o sistema está esgotado e que talvez venha do mundo latino um novo modo de viver. Ou não. 
  Romanos gostam de dizer que na verdade o Império Romano ainda está de pé. Que todo o modo de pensar e fazer, viver e conhecer do ocidente é romano. O desenvolvimento dos últimos 2000 anos segue um padrão criado em Roma, coliseus, pão e circo, leis, juizes, senadores, guerra, colonias, ateísmo, crenças particulares, sexo, sangue e ambição materialista. A nossa filosofia seria romana, assim como a arte, os esportes, o modo de vida.  Será?
  Calvino crê, como Borges, que a realidade é inacapturável. Podemos crer em certas coisas, experimentar outras, mas a totalidade nos é inalcançável. Cada vez mais, ele era amigo de Borges e os dois trocavam cartas, Calvino foi se tornando esotérico e ao mesmo tempo simplificando a escrita.  Os dois amavam livros de aventuras, raiz da criatividade. Stevenson, Conrad, London e Doyle.
  Material vasto para pensar e fazer. Essas aulas, no reino dos meninos que pensam em pensar, prometem.

FIM DO ROMANCE?

   A revolução industrial nasce e com ela nasce o romance como o conhecemos. Não a toa ele nasce na Inglaterra. Sim, voce pode dizer que Dom Quixote ou Gargântua já seriam romances, mas não. São prosa romanesca, não tratam de lugares e de gente pretensamente reais. Porque o romance tenta, mesmo quando alegórico, falar do mundo do aqui e do agora. E dá aos personagens uma identidade, os faz ser Moll Flanders ou Tom Jones, e não Pantagruel ou Quixote. Mas porque?
   O fim de uma civilização agrária, de um estilo de vida de mais de 2000 anos fez com que fosse preciso fixar de alguma forma a vida que se fazia volátil. O homem passou a tentar entender aquilo que não mais era reconhecível, a vida e si-mesmo. Antes do romance o tema era religioso ou politico, agora, com o romance, é existencial. Se olha para dentro de cada individuo. Isso era inédito. Shakespeare havia antecipado isso já em 1600, mas era teatro e era um semi-deus.
   Pois bem. A VEJA em sua edição histórica, fala de uma capa que a TIME deu para Johnathan Frazen. Que isso causou estranheza, não por Frazen, que é ótimo, não merecer uma capa, mas sim por ele ser um escritor. Porque escritores, hoje, são irrelevantes. Se em 1982, uma capa da TIME para John Updike era óbvia e bem comemorada, hoje uma capa para Frazen nada diz. Porque?
   A revista dá uma explicação que nada explica. Fala da internet mas e daí??
   O fato é que hoje ninguém mais, ou quase ninguém, está interessado em análise. Vivemos a nova época, tempo de diversão. De certo modo nos acostumamos, a duras penas, ao mundo da velocidade e da efemeridade, e o que tentamos é não pensar, exatamente o oposto do que todo romance propõe.
   Lembro que em 1985, por exemplo, Drummond, Garcia Marquez ou Borges eram semi-deuses. Oráculos da verdade e guias de pensamento. Mais que isso, em outros campos o mesmo ocorria. Kurosawa ou Lennon, Bowie ou Bergman, todos eram capa de Times eternas. Mais ainda, todo mundo ia a gurús ou psicólogos não para ser feliz ou para perder o medo de elevador, mas para se encontrar, para se conhecer. Quantos clientes de terapeutas hoje os procuram para entender quem eles são?
   As pessoas não querem mais entrar dentro de si e ver o que acontece, o movimento hoje é oposto, ir para fora e se conectar a tudo que acontece agora, neste exato instante. Onde o romance se encaixa nisso?
   Que fique claro, quando falo de gente em 1985 que se guiava por Borges, não falo de estudantes de letras ou de filósofos, falo do leitor médio. E quando falo de gente querendo se achar, não falo de gente com grilos na cuca, falo de adultos com poder aquisitivo para isso. Gente dita normal.
   Romances dão trabalho. Nossa cultura é do não-esforço. Da diversão simples, da sensação. Nossa sede de narrativa, de histórias é genética. Ela sempre viverá. Precisamos de contos, de sagas. Era assim em Creta, em Bizâncio ou na China de 3000 a/c. Mas o romance não. O livro ao estilo Flaubert, ou Joyce, ou Heminguay, London, Hammett, De Lillo, esse tem apenas 250 anos mais ou menos. É fruto de uma sociedade em transição, assustada e perdida. Do tempo do trabalho duro. Da busca de sentido. Da ansiedade.
   Nosso tempo varia entre depressão e hiper-atividade. Livros precisam ser úteis e divertidos. Ter um porque, um sentido. Onde o romance?

SOBRE OS SONHOS E OUTROS DIÁLOGOS, CONVERSAS ENTRE BORGES E OSVALDO FERRARI

   Em 1985, um ano antes de sua morte, Jorge Luis Borges teve veiculadas por rádio, uma série de conversas com o jornalista e escritor Osvaldo Ferrari. O gênio argentino fala sobre sonhos, religião, filosofia, tempo, Europa, liberdade... e sobre seus autores favoritos, Melville, Conrad, Henry James, Cervantes, Stevenson, Kafka, e sobretudo Dante. Borges se mostra bem-humorado, modesto, prolixo e sempre interessante. O que eu posso destacar dessas duzentas e poucas páginas tão prazerosas?
   Um fato que salta a nossa mente: a América como terra de europeus exilados. Seríamos mais europeus que os europeus, pois estando longe da Europa, podemos ser toda a Europa e ver sua verdade inteira. Um alemão na Alemanha é um alemão. Um francês é um francês, mas um americano pode ser alemão e francês, grego, italiano e romeno. Mais ainda, a América pode ser Europa e Oriente, temos aqui a chance de unir toda a história, Homero e Velho Testamento.
   O livro é todo feito desses pensamentos. Outro? Quando sonhamos criamos. Somos autor e ator, cenógrafo e diretor, e público também. Sonhando todo homem é um artista.
   Mais sobre o sonho: Yeats dizia que quando sonhamos rememoramos todo nosso passado. E nosso passado é o passado de nossos pais. E de nossos avôs. E dos bisavôs. Sonhando estamos revendo toda a história de nosso mundo. O poeta é o homem que cava esse passado.
    Mas o passado é livre. Nós criamos um passado. Podemos aumentar, encolher, esticar, embelezar, esquecer. Assim como o futuro, o passado pode ser moldado por nós. O presente existe? Se existe ele nos escapa.
    Fato notório: Todo povo primitivo fala em forma de poesia. E toda literatura nasce como poema. A prosa é mais dificil, mais sofisticada. Existem civilizações que nada produziram em prosa. Nosso passado fala em forma poética. Nossos sonhos são poemas. Nosso espirito é uma fala de um poeta.
    Clássico é todo livro que não necessita mais de materialidade para existir. Se todos os livros de Dom Quixote fossem queimados, mesmo assim os homens continuariam a falar em Quixote e Sancho e criariam um novo livro de memória. O mesmo com Hamlet, Dante ou Homero. Eles já existem no mundo, não vivem apenas nas páginas.  Se tornaram habitantes da história.
   Duas palavras se perderam no mundo moderno: amor e beleza. Escrever por amor? Quem ainda? O amor foi esmigalhado, vulgarizado, estudado, vilipendiado. O mesmo com a beleza. A pergunta estúpida: Para que serve a poesia? O que é o amor? Qual a função da beleza? A resposta de Borges: Para que serve uma montanha? O que é a vida? Qual a função de uma galáxia? A mania moderna dos porques e paraques remete a perguntas de crianças que acabaram de aprender a falar.
   Criar é lembrar. O artista recorda.
   A felicidade é um fim em si-mesma. Ela nada cria. É a tristeza que cria beleza. Ela é um caminho, uma incompletude. Deus criou a infelicidade para nos dar o que narrar.
   ....aí estão amostras do que o livro/conversa diz. O papo vai fluindo, em gotas, em xícaras. E voce vai sorvendo com prazer, com gosto.
   Borges é um autor que conheci tarde, com mais de 35 anos. O Aleph foi o primeiro. E que alegria!!! A criatividade nos dá uma felicidade imensa, a alegria de testemunhar uma vitória, a conquista da vida sobre a dor, da luz sobre o tédio, do espirito sobre o nada. A criação é o dom soberano. Borges é um de seus apóstolos.

ENO, PONDÉ, LEMOS, JORNAL, ÁFRICA E RIO

   Fotos antigas nas paredes. De Paris, de São Paulo nos anos 30, de NY. Uma pintura pós-moderna. Dois sofás: um deles desconstruído e o outro um tipo de coisa chique em estilo vitoriano. Livros. Belas edições de luxo. Poemas de Goethe, um estudo sobre o cinema japonês e uma imensa bio de Lacan. O morador, sem tempo ( ou vontade? ou interesse? ) jamais leu nenhum dos livros. Mas diz gostar deles. O quadro nem é muito olhado e as fotos espelham um passado que nunca lhe interessou.
   As almofadas estão sempre impecáveis.
   Pondé escreveu ontem sobre esse tipo de ser. O cara que mora em casas que têm montes de coisas que não servem para nada. O senhor da sala de visitas. Sala que nunca é usada. E livros que jamais são lidos. O cara tem uma cafeteira italiana, aparelhos de academia, máquina de sorvete, cursos de vinhos e queijos, e nada disso é usufruido. Porque tudo isso é trabalho inutil pra ele. E ele simplesmente nunca trabalha "á toa".  Nunca estuda. Nunca observa. Tudo o que ele faz é "pela carreira". Só estuda, trabalha e vê o que é "pela carreira". Brega. Sua casa faz parte da "carreira".
   Essas casas traem seu dono. São mortas. Tudo nelas é mais que morto, na verdade são não-nascidos. Os objetos não respiram, não envelhecem, não se sujam. Nessas casas não existe história.
   Pensei que só eu sentisse o tédio que essas casas dão. Eu as chamo de casas de "luzinhas amarelinhas". Ambientes assim abundam em filmes e séries de tv inteligentinhas. Completamente bregas. Tudo é sempre novo, limpinho e sem cheiro. A casa não é lugar pra se viver e trabalhar, é um tipo de vitrine, um tipo de cartão de acesso ao mundinho brega-novo rico. Laboratório onde se cria o tédio.
   No mesmo jornal Ronaldo Lemos fala sobre Eno no Rio.
   Brian Eno lançou um desafio ao Rio. Que ele assuma seu papel de Nova África. O que seria isso?
   Desde sempre Eno fala que o problema dos computadores é o de que eles têm pouca África. Nerds têm um componente africano muito baixo ( substitua africano por dionisíaco que talvez voce entenda ). Daí que o mundo da informática tem uma ausência de africanês. É frio, impessoal, previsível e sem calor. Cabe ao Brasil trazer esse componente africano ao mundo. Brasileiros criando uma nova Microsoft ou Apple.
   Ele fala mais. Por 50 anos a música foi central por ser uma forma de se receber a África.
   Vamos desenvolver essa frase. Por 50 anos. Não era antes? Não. Antes de 1950 a música ficava muito atrás da literatura, do teatro, do ballet, do cinema, e até da pintura. A transformação da música em coisa sempre presente se dá a partir da explosão do rock e da hiper-venda de discos, fitas, cds e agora i pods etc. O que Eno fala é que o mundo sentiu-se fascinado com a africanização. O mundo começou a rebolar, a se soltar, a improvisar, a colorir, a batucar, a gingar. ( Dionisio? ). Isso fez do século XX um século negro, radicalmente diferente de qualquer outro.
   Mas esse processo se esgota. E a música perde sua força. É preciso que o mundo receba algo de radicalmente novo. Que invada computadores, telas, a vida. Isso poderia ser o Brasil. Uma brasilização do mundo. A miscigenação radical. O improviso como dom e não como falha. O acaso. A hiper-africanização brasileira.
   Eno deu aparelhos para os cariocas onde eles criaram discos de Eno ao vivo.
   Lembro então que Eno e Bryan Ferry foram alunos de Richard Hamilton, o criador da POP ART. Todo o discurso de Eno é consequência da POP ART. O olhar sempre adiante, a busca pelo mais colorido, mais vivo, mais excitante. A celebração. Ferry uniu a isso o olhar romântico do cinema anos 40, a publicidade e a escultura. Eno caminhou para a tecnologia e o futurismo. O Roxy foi essa usina caleidoscópica que falava de Bogart, Jerry Hall e Calvin Klein, Greta Garbo, Elvis e TV, Tango, carros e Funk, tudo numa canção.
    Ando lendo Borges.
    Diz que a maior invenção grega foi a conversa. A conversa como arte e como prazer maior.
    Concordo. Mas digo também: a divisão de nossas forças entre Dionisio e Apolo foi genial. Casas apolineas ( sem o gênio de Apolo, um tipo de Apolo fake ), computadores sem Dionisio ( e o que são os hackers? Uma tentativa de dionisiar a máquina? ) Temos mais um momento decisivo, ou o mundo continua a reprimir o dionisiiismo ou tenta equilibrar a coisa....
     

EXILIO

"Tudo já foi dito, tudo já foi escrito, tudo já foi feito"- Foi o que Deus ouviu. E ainda não tinha criado o mundo, nem existia coisa alguma. "Também isso eu ouvi", Ele respondeu, do separado velho Nada. E pôs-se a obra.
Uma romena certa vez me cantou uma melodia popular que mais tarde reconheci incontáveis vezes, em várias obras de vários autores dos últimos quatrocentos anos. As coisas não começam, ninguém contesta isso. Ou pelo menos não começam no momento em que foram inventadas. O mundo foi inventado velho desde o começo.
Jorge Luis Borges.

Um mundo feito por um deus que não era deus. Um mundo onde estamos exilados. Essa é a crença profunda de todo artista. O exílio. O deus que cria Adão não é Deus. A criação do homem e deste universo já é uma queda, uma catástrofe. E todas as igrejas são ilusões. Perpetuação do erro. Jesus não ressuscitou. E os anjos existem apenas para nos confundir.
Se eu escrevesse isto em 1600 seria morto. Hoje, parece uma banal verdade. Um simples pessimismo. Mas para colocar as coisas em seus devidos lugares, devo completar o que escrevi.
Exilados na saudade do Deus que foi afastado de nós. Nostálgicos da união. Jesus era um viajante. Ressuscitou "antes" de morrer. São Paulo não nos fala de Jesus, fala de Paulo. A sensação que temos de termos sido enganados. A certeza de que já fomos melhores, maiores, livres. As tentativas de se estabelecer contato com a verdade. Somos eternos mas a morte existe. Renascer antes de morrer. Ninguém renasce após a morte, a coisa se decide agora. Encontrar a voce-mesmo e salvar Deus de seu exilio. Whitman, Rimbaud, Emerson, Huxley, Rilke, Melville, Shelley, Yeats, Lawrence, Borges. Os grandes "buscadores".
Eu não me impressionaria tanto com essas ideias se não as pensasse desde sempre. E sei que muito pensam e não falam. Ou não conseguem as expressar em pensamento coerente. Então fica mais fácil dizer: Bláh!!!
A ideia de Deus exilado é a mais dolorosa que se pode ter. Mas deve-se saber que uma fagulha da criação primeira ( antes da queda-criação ) ficou em nós. E é essa fagulha que nos faz procurar, indagar, estudar, viajar, penetrar na vida. Procuramos até percebermos que aquilo que procuramos sempre foi nosso. Mas não é dado ver a todos.
É por isso que amo os trovadores. E vi em cada amor a chance de transformação. É por isso que sofro da nostalgia dos homens grandes e do mundo grande. É por isso que sempre senti a urgência de salvar alguma coisa em mim e fora de mim.
Nascemos antes.
E se voce não sabe não cabe a mim dizê-lo.