E A DESPEDIDA DE OZZY TONY GEEZER BILL É A DESPEDIDA DE UM MUNDO

Quem poderia dizer que a mais bela despedida da história do rock fosse a do Black Sabbath. E quem diria que este homem que aqui escreve, este homem cheio de Bartok, Monk, Sinatra, Lou Reed e Roxy Music, diria que foi absolutamente merecido? ----------------- Isso porque eles são inatacàveis. Tony Iommi é um gentleman, querido por todos. Geezer, além de ser um grande baixista, é uma figura icônica. Todo contra baixista imita seu gestual desde....1970!!!!! E Bill é o cara. Ter tocado sem camisa, ao contrário de Iggy Pop, que aos 75 não faz mais sentido, para Bill fez muito sentido. Ele tinha de estar sem camisa. -------------- Ozzy cantou sentado no trono que lhe é de direito. Ele lá estava para receber homenagem e a melancolia se misturou à alegria: acabou gente. Acabou. ---------------- Quando comecei a comprar discos, em 1974, com 12 anos, Black Sabbath era a coisa mais pesada que havia. A guitarra era a mais saturada, e o som era soturno. Mais que gótico, era maldito. Eles pareciam maus. Meu primeiro Sabbath foi Bloody Sabbath e eu me apaixonei pelo album. Da primeira à última faixa, eu pulava cantando cada verso. Mas a coisa desandou logo depois. Comecei a ler "os críticos" e joguei esse disco no lixo. Um cara com pretensões a intelctualidade não poderia gostar de Tony e Ozzy. Parti para Bowie e Zappa. Neil e Lou. --------------------- O tempo passou e então percebi que eu podia ouvir o que eu queria. ( não pense que só eu fui domesticado desse modo...muita gente foi e é sem perceber ). Rock é música de adolescente, graças a Deus, e o que lhe dá valor é o quanto ele emociona, traz alegria, fogo, rebeldia, prazer carnal com 3 acordes e duas frases simples mas diretas. Não se procura no rock emoção complexa, profunda, difícil, exotérica. Sua nobreza é a do animal, ele é puro e instintivo. -------------- E então voltei a ouvir o Sabbath como se fosse novidade. E para mim era, pois não o escutava desde os 14 anos! E senti nas veias o fogo da vontade livre. O cavalo corria e saltava ainda! -------------- O fim do Sabbath marca o fim do rock como forma de arte central. Sim, o rock ainda existe e sempre irá estar por aí. Mas ele nunca mais será aquilo que ditava moda, comportamento e mais que tudo, influenciava todas as artes, do cinema às artes plásticas. Era o rock a coisa central, os olhos do mundo voltados para ele. Nunca mais isso acontecerá. Desde os anos 90 isso se encerrou. Adeus.

CAMINHO

RAINER MARIA RILKE - RODIN

A escrita de Rilke é sedutora porque ela vive na borda, na fronteira entre o pesadelo e a beleza. Ele faz do estado doentio, sim, ele era um doente, uma condição de privilégio. Simbolistas e decadentes do fim do século XIX e do começo do XX, traziam ao estado doentio sedução. A febre, a vertigem, a mania, tudo isso dava ao artista a possibilidade de ir além. Ler Rilke, como acontece com Proust, é habitar o mundo da mais perfeita beleza, mas é também ser testemunha da mais cava neurose. E, assim como todo neurótico sente conforto na sua dor, nós somos seduzidos pela doença que é beleza. Por isso eu adoro Rilke como adoro Proust. Em prosa, o poeta alemão nascido em Praga, é poeta como sempre o é. Neste volume ele tece loas à Rodin, o escultor que por volta de 1900 era o artista mais famoso do planeta. Na nossa herança cultural, obras como O Pensador ou O Beijo são tão icônicas e populares que pensamos que elas sempre existiram, como se fossem uma montanha ou um rio. Imagine o efeito sobre uma sensibilidade como a de Rilke, testemunhando a gênese de todas essas obras. Ele nos explica o porque da genialidade de Rodin, o movimento que habita suas esculturas, a força de cada gesto, a brutalidade que alça voo. O volume deveria ser uma biografia do artista francês, mas ele se faz uma obra de impressões. O poeta vasculha, sente, observa, vê. ----------------- Ler prosa tão poética é um prazer sem fim.

EDMUND WILSON - 11 ENSAIOS. O IMENSO PRAZER DA COMPANHIA DE UMA INTELIGÊNCIA

Encontro num sebo este livro de 1991 editado pela então ótima Companhia das Letras. Paulo Francis selecionou os textos de Edmund Wilson, onze belos ensaios sobre política e literatura. Francis escreve a introdução também, naquele seu saudoso estilo. Uma bem humorada, provocativa, maluca mistura de cultura e fofoca, de conhecimento e diatribes. Francis é insubstituível. Não temos ninguém hoje que chegue a unha de seu pé. ----------------- Voce não conhece Edmund Wilson? Que pena! Nos anos 80 e 90 ele era conhecidoa até neste fim de mundo chamado Brasil. Wilson foi o mais respeitado intelectual dos EUA em todo o século XX. Seus textos, sempre profundos sem serem eruditos demais, eram democráticos. Ele amava aquilo que fazia e nos fazia amar seu tema. Não era aquele tipo de crítico, tão em moda desde os anos 80, que desconstroi o autor e nos faz achar que ele era gente como o vizinho da esquina. Wilson dá ao autor seu tamanho justo, o de um gigante, de um original, ele percebe que todo talento é interessante. ------------------- Neste volume ele fala sobre Joyce, Heminguay, Lincoln, a guerra civil americana, Dickens, Flaubert... Mas eu destaco três que são maravilhosamente prazerosos. Wilson fala sobre Proust, sobre o homem Proust e sobre a obra escrita do francês. E não há como voce sair ileso do ensaio de Edmund Wilson. Escrevendo sobre Proust antes dele se tornar o que é hoje, Wilson faz com que sintamos um desejo imenso por ler o francês. Asmático, gentil e arredio, hipocondríaco, apaixonado por mulheres que não o quiseram, isolado em seu quarto, rico, Proust surge inteiro, um gênio da língua, um homem que conseguiu fazer da literatura música. O desvendador do inconsciente. Não há função mais nobre da crítica que nos fazer querer conhecer aquilo que ele ama. Wilson faz, Mas não pense que o texto é mera propaganda. O americano discorre sobre os erros de Proust, seus momentos enfadonhos, suas manias. Esses defeitos fazem do autor humano, e nos aproximam da obra. Mas a condição de ser genial de Proust não se apaga. É necessário o ler. ---------------- O mesmo ocorre com Turgueniev, autor russo da época de Gogol, Dostoievski e Tolstoi, autor que li e adoro. Turgueniev, famoso desde sempre, exilado na França que ele odiava, tinha problemas em seu país, achavam que ele era ocidental demais, mas na Europa era muito lido e muito amado. Generoso, ele ajudava autores em apuros, amigos perdidos, chegando da dar dinheiro até a Dostoievski. Wilson coloca o russo no lugar que lhe é de direito, um autor imenso, muito mais complexo que seu texto, elegante, aparenta ser. Eu tenho imenso prazer em o ler e tive um gosto gigantesco lendo o texto final deste livro, O AUTOR AOS SESSENTA, como diz o título, uma divagação em que Edmund Wilson começa falando de sua condição de sessentão, em 1955, e acaba por falar da vida de seu pai, um advogado muito bem sucedido de New York que sofria de uma neurose que quase o enlouqueceu. Somos transportados para um mundo que não mais existe, o final do século XIX nos EUA, o estilo de vida da classe mais poderosa e o cotidiano da família do autor, uma família original. Wilson tem o dom de fazer com que nos sintamos como que vendo um velho album de fotografias ao lado de um membro daquele grupo. É uma leitura confortável. --------------- Nunca mais teremos um Edmund Wilson.

VOU FALAR SOBRE UM PAÍS BEM AMARRADO

Desde a redemocratização, já se vai quase meio século, há no Brasil apenas uma ideologia, a da mentira. Mantendo o povo mal educado e mal informado, joga-se nele, via televisão e música popular, a ideia de que ser brasileiro é um privilégio, de que somos os mais felizes, malandros do bem e que ser pobre vale à pena, porque pobre transa melhor, vive mais feliz, é livre. Observe que o governo nunca fala que o pobre deixará de ser pobre, mas sim que ele irá comer carne e andar de avião. MESMO SENDO POBRE. Há um desejo no poder para perpetuar a condição do Brasil para sempre, o nordeste deve ser o mundo de Jorge Amado forever, o Rio o paraíso de bicheiros e sambistas que gingam, a favela uma democracia de gente amiga e a praia uma alegria onde todos são iguais. --------------------- Não há a menor vontade de enriquecer o povo, inclusive se jogando às massas a ideia, ótima para quem já é rico, de que ser rico é um crime. Tudo leva a imobilização. Mas pode ser ainda pior, criou-se a esmola como direito de todos e o brasileiro, quase a metade deles, vive da esmola estatal, sendo assim um povo sem esperança que sobrevive de migalhas e é treinado a não ambicionar nada mais que uma cerveja e algo pra comer. O clube fechado que governa o país, banqueiros, meia dúzia de industriais, a Rede Globo, Folha e agora o tráfico de drogas, tem como testa de ferro políticos profissionais, que vão de Sarney à FHC, de Collor à Lula, de Serra à Neves. Um grupo que finge se opor mas que desejam o mesmo e agem do mesmo modo: o estado deve ser rico, o povo pobre. Para isso apadrinham artistas prostitutas que divulgam a alegria de ser o que se é: um bicho amestrado. Colocam aos pretos o direito de ser favorecido em concursos e vestibulares, mas não lhes dão nada para os fazer sair da favela, da periferia, das garras dos traficantes. O pobre cursa uma faculdade ruim e descobre que seu destino é dirigir um Uber. ------------------ O brasileiro não pode, nunca pode, ter a iniciativa de um americano, a educação esmerada de um japonês ou as chances culturais de um alemão. Não porque somos menos que eles, mas porque DEVEMOS NÃO SER COMO ELES. O poder entendeu que um povo fragilizado é facilmente dominado. Para sempre. E para o fragilizar é preciso o acostumar a pedir esmolas ao estado, sentir-se em casa na miséria, e fazer com que ele tema toda e qualquer mudança. Pois o mais trágico é que o brasileiro SE ACOSTUMOU tanto a ser miserável que não deseja mais crescer, tudo que ele quer é poder ficar onde está. Na cloaca. ------------------ Não há mais saída. Não há onde se enganar. Esperem mais um ano e verão onde vamos estar.

Poesía lírica griega cantada: poema amoroso fragmentario de Anacreonte

Art Pepper - Jazz Me Blues (Official Visualizer)

O MUNDO DE HOMERO - PIERRE VIDAL-NAQUET

Não fazemos a menor ideia de como os gregos eram e muito menos Homero. E isso é frustrante porque Ilíada e Odisséia são não apenas as obra fundadoras da nossa literatura como estão presentes, como paradigma, em toda grande obra. Na Ilíada há desde o drama familiar até a guerra como condição de vida. E na Odisséia vemos a aventura, a viagem, a alucinação e a vingança. Vidal acredita que o autor de uma das obras não é o mesmo da outra, mas não há como provar isso. Homero é um nome símbolo que pode ser usado de toda maneira. Voce pode dizer que era um gênio, pode dizer que eram duas pessoas, pode dizer que era um grupo jogral que criou a obra. Única unaminidade é que as duas obras nasceram como arte vocal e não escrita. Elas eram cantadas. ---------------- Eu tomei contato com a Ilíada aos 15 anos e não consegui passar dos primeiros 50 versos. Não entendi nada. Eu esperava a história da guerra contra Troia e o cavelo de pau. O que eu via era uma coonfusão de deuses e de herois, a ira como motor da ação. Foi só aos 50 anos que tentei ler outra vez e o texto fluiu como....música! A Ilíada deve ser lida como fosse um rap ou um coro de ópera. Os versos devem voar dentro de nossa mente. Na Odisseia eu já percebo um texto mais próximo do romance, da escrita no papel, mas a Ilíada não, é musical. ----------------- A Odisseia possui mais humanidade e por isso parece mais próxima de nós. Ela tem momentos de humor mais o que a caracteriza é a melancolia da volta ao lar. Já a Ilíada, que é superior, nos exibe um mundo remoto onde as emoções e os sentimentos possuem uma violência pura. É o poema da vingança, da crueldade, do sangue, da honra e da virilidade. Não há pausa, é um festival de mortes e de capturas. Os deuses, cheios de ira, brincam com as vidas dos homens. O Hades está sempre presente. ------------------- Ler a Ilíada é um prazer e é uma transformação. É uma espécie de Bíblia grega, de marco do nascimento da literatura ocidental. Para ser plenamente aproveitada é preciso que voce esteja com a cabeça limpa, tempo disponível e concentração. Se voce entrar no texto, pronto!, a música se faz e os versos voam diante de sua mente. Tente.

ART PEPPER

As pessoas falam muito dos junkies do rock e do jazz. Charlie Parker, Chet Baker, Stan Getz, Bud Powell e muitos outros. Art Pepper dá de lavada em todos esses. Saxofonista dos saxofonistas, ele faz parte da turma dos músicos de jazz que são conhecidos por gente que conhece a coisa. Seu toque é inconfundível e ele gravou alguns dos maiores discos do gênero. Ele conseguia ser cool como Paul Desmond, mas ao mesmo tempo hot como Hank Mobley. Por mais refinado que fosse, seu som estava sempre tomado por fogo e sangue. E por mais que prometesse êxtase, ele nunca deixava de ser leve. Mas por que eu falei em junkie? -------------------- Basta dizer que Art Pepper ficou mais de 10 anos sem gravar. Porque cumpria pena em San Quentin. Nenhum dos outros malucos do jazz passou por isso. Toda a década de 60 ele esteve preso. Só volta aos palcos no meio dos anos 70. E consegue refazer sua carreira nos anos 80. Seu estouro foi em 1957, com a obra prima Art Pepper and The Rythm Section, album gravado com o trio de Miles Davis: Red Garland no piano, Paul Chambers no baixo e Philly Joe Jones na batera. É um disco onde nenhum dos instrumentos domina os outros, e isso é raro! Piano, baixo, batera e sax têm a mesma importância, o mesmo volume, o tempo todo. E eu não conheço músicos melhores que esses. Garland dedilha o piano sempre com fluidez hipnótica, Chambers tem um ritmo poderoso, viril, e Jones, o maior dos bateras. ------------------ Dizem que quando gravou o disco, Art não pegava em um sax fazia 8 meses. Nos anos 50 ele foi preso duas vezes e estava saindo de uma detenção de 8 meses. Ele se dizia enferrujado, Abençoada ferrugem!

Art Pepper - Waltz Me Blues (Official Visualizer)

AS MINAS DO REI SALOMÃO - H. RIDER HAGGARD . O CINEMA MATOU ESSE TIPO DE AVENTURA

Uma das características do mundo pré cinema, da qual não temos consciência, é que até por volta de 1910, 1920, mesmo uma pessoa culta e rica, poderia jamais ter visto uma imagem dos Polos, da África ou do Tibet. Imagems de povos como aborígenes da Australia, mongois ou zulus só se tornaram conhecidas com o cinema. Quando o Tarzan dos anos 30 era exibido no Rio ou em Berlin, para muita gente era a primeira vez que viam uma zebra ou um rinoceronte. Desse mundo, a mente de uma pessoa, mesmo as cultas, tinha um espaço imenso para a imaginação. Quando voce lia um livro como este, um best seller de mais de 100 anos atrás, ele lhe dava algo precioso: o poder de estar em um lugar jamais visto por seus olhos. O apelo dos livros de aventura de então, seja Jack London, Verne, Burroughs ou Sabatini, é o de levar o leitor à um mundo distante. ------------------- Para mim é fascinente lembrar que meu pai, amante de filmes de western, viu seu primeiro faroeste apenas aos 25 anos de idade. Até então sua imagem de California, Arizona, Cowboys e Apaches era nula. Quando ele, numa sala escura, vê diante de si uma paisagem de Utah com neve, é a primeira vez que ele enxerga os USA. Adulto. Numa sala da Avenida Ipiranga. ---------------- Ainda há livros de aventura, mas 90% deles são especificamente para quem tem menos de 15 anos de idade. Para quem ainda tem algo a descobrir em termos de paisagem ou universos, seja um planeta distante ou outra dimensão. Não há mais, no mundo real, um mundo a ser descoberto, e isso fez com que a trama de aventura, em livro, se tornasse ficção científica. Ou mundo de magos. A imagem, do cinema e depois da TV, banalisou a paisagem e formou uma espécie de cansaço visual. Creia-me, para um brasileiro do sul, em 1960 ainda havia alguma magia em se imaginar ir de carro até Cuiabá ou ao centro do Pará. Não havia imagens de lá, nem em filmes e nem na TV. ------------- As Minas de Salomão não existem. Nunca existiram. Então o que nos resta é ver uma expedição à estrela ZX22W.

O CONSERVADOR

Não nos tornamos conservadores com um sorriso. Nos tornamos quando choramos ao ver a realidade. Caímos das nuvens do idealismo infantil para poder lidar e caminhar com e na vida. E entendemos então, infelizmente, que nada é fácil e que o conservadorismo tem a chave para se sobreviver, bem e inteiro, no mundo. É preciso lutar para que as coisas que funcionam sejam preservadas. É preciso manter acesas as certezas e não deixar que elas sejam relativizadas. É preciso manter a fibra e não negociar com o mal. E acima de tudo, é preciso abrir mão do consolo infantil. Não há dinheiro fácil. Tudo tem um valor e esse valor precisa ser pago. E se paga com trabalho. Seja o trabalho da alma, seja o do corpo. --------------- Somos indivíduos, cada um de nós tem um sonho e um medo. E esse sonho e esse medo precisam ser enfrentados pelo indivíduo que os traz em si mesmo. Damos a todos a segurança de que amanhã os valores morais e espirituais serão os mesmos de hoje, mas não damos ao outro o direito de invadir o meu sonho e o meu medo. O que é meu será meu. -------------------- Disse que um conservador se torna conservador pela tristeza. Porque entendemos, um dia, que o mal não é relativo, ele é real. E que precisamos lutar contra ele. Entendemos que pensar não é poder, querer não é realizar e que o amanhã pode ser pior que hoje. Então nos acabrunhamos e nosso discurso não é sedutor pois ele tem um desencanto de despertar. Se tornar esquerdista é a alegria de achar que tudo é possível e que o futuro é seu. Se tornar um conservador é admitir que a realidade existe. ----------------- Temos limites. E aquilo que as gerações passadas construíram, o que era bom, precisa ser mantido porque construir é difícil. E eis a recompensa: se o mal existe, o BEM e o BOM também existem. Se nada é relativo, então a justiça é clara. E se o real é uma luta então é porque a vitória é possível. Se o conservadorismo nos leva ao peso e ao rigor, ele nos leva também à construção de algo que dura e permanece. Pois enquanto eles derrubam prédios e apagam a história, nós construímos templos e escrevemos a tradição.

lendo um livro vivo

leia e escreva já!

MEU MAIOR AMOR

Eu tinha 6 anos e começava a aprender a escrever. Meu amigo se chamava Wagner e morava numa casa com um jardim aberto à rua. Correr pela casa e pelo jardim é o que eu e ele fazíamos todo o tempo. O pai dele tinha uma máquina de escrever, ele ficava horas batucando naquela máquina barulhenta. Às vezes eu parava ao seu lado e esperava. O pai de Wagner deixava eu teclar a letra do canto. Ele me chamava sempre que era hora de teclar o X. Contente, eu apertava com força enquanto Wagner me chamava para voltar a correr. O pai de meu amigo, sentado à máquina, ele era advogado, se tornou a imagem de homem que eu queria ser. Por que? ----------------- Wagner era loiro e tinha como mãe uma mulher de 26 anos chamada Meire. Eu ficava encantado com a beleza da mãe do meu amigo e se seu pai tinha Meire, eu queria ser seu pai. Parece inacreditável uma criança pensar assim? Parece forçada essa transferência de complexo de Édipo? É o que lembro. Desde sempre. Posso visualizar a cena. Sentir. E minha mãe confirma essas imagens. Elas foram reais. --------------------------- O amor da minha vida não foi uma mulher, foram os livros. E essa imagem erótica, do pai que escreve ao lado de uma mulher belíssima, foi fixada em minha alma. Nesse mesmo ano eu ganhei meu primeiro livro, Renard, Velha Raposa, e nas páginas cheias das letras que o pai de Wagner manejava, eu via um desejo imenso. Eu queria fazer parte daquele mundo, o mundo do papel cheio de sinais que formavam mensagens. Eu tinha de estar dentro daquilo. Eu precisava escrever. ------------------ A imagem do homem que escreve, por culpa do pai de meu amigo, passou a ser a imagem mais sexy em minha visão infantil. Mais que o soldado destemido, o motoqueiro ou o astronauta, o homem que tem uma mesa e uma máquina de escrever era meu modelo alfa. Sendo esse homem eu teria a mulher. --------------- Então eu me contradigo. O alvo era, afinal, a mulher! Sim, era. Hoje eu sei, mas por anos eu havia esquecido essa cena, essa vivência. E quando a lembrava não entendia seu significado. ------------ Depois veio meu segundo livro, Tom Sawyer, e me lembro do prazer em tirar o plástico que envolvia o volume e o perfume das páginas impressas. Se voce pensou no ato de desnudar uma mulher, talvez voce tenha sido freudiano demais, mas quem sabe? A vida é essa teia de significados que na maior parte do tempo não entendemos. O fato é que caço livros como quem flerta e vivi cercado por autores fantasmas como fossem amores perdidos. Mal sabia o pai do meu amigo o que simbolizava o apertar daquele X. Mal sabia a mãe de Wagner o significado das saias curtas que ela usava então.