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JANACEK E STRAVINSKY, MÚSICA RELIGIOSA
Bach é considerado, com justiça, o maior mestre da música cristã. Mas, fato observável, sua música é profundamente luterana e portanto, racional. Quando ouço Bach posso sentir a presença de Deus, e isso é maravilhoso, mas não sinto o mistério inescrutável de sua existência. Talvez isso fique mais claro ao falar desses dois compositores, ambos compuseram música religiosa no século XX, ambos tocaram o abstrato. -------------- Janacek é o maior compositor da antiga Tchekoslováquia, e isso não é pouco, o país produziu vários mestres. Sua Missa Glagolítica é assombrosa. Usando coro e orquestra, Janacek penetra onde vive a imagem, ou melhor, a ideia de Deus. Não estou especulando se Ele existe ou não, o que afirmo é que Sua centralidade em nossa mente é indiscutível. Nega-Lo é também O aceitar. Não se nega aquilo que nunca existiu, e a ideia é a pedra que edifica nossa civilização. Tudo isso está na música de Janacek. Ele faz a melodia, a harmonia da Pedra, da base primordial. É primitiva, ancestral, e incrivelmente moderna. Se voce tem problemas em acessar sua mente porfunda, isto poderá lhe causar medo, mas caso contrário, o mistério que há aqui é muito sedutor. É a obra de uma alma vasta, cheia de raízes eslavas. ------------------- Stravinsky, o mais famoso compositor moderno, causou espanto quando resolveu na parte final de sua carreira fazer música religiosa. A Sinfonia dos Salmos se inspira em Bach e o reexecuta como modernidade. Percebemos o esqueleto de Bach, mas é Stravinsky 100% aqui. E é soberbo! Vemos a religião, cristã, das catacumbas. É o osso da fé. O russo retira toda a história e toda a pompa e o que fica é o rito nativo, o começo da saga. É a religião corpo, sangue, espírito, é a música mistério. -------------- Que fique bem claro: ambas as obras causam prazer. Vamos esquecer essa tolice jeca de que música erudita é uma obrigação, ou um sacrifício. É prazer, prazer todo o tempo, ou é nada. Se voce não sente prazer, esqueça. Ouvir estas duas obras é usufruir de encanto. ---------------- Janacek é regido por Rafael Kubelik, um maestro perfeito, um rei da concantração. Stravinsky é corretamente regido pelo super star Karajan. ------------- Sensacional.
IGOR STRAVINSKI - A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA
Como pode esse russo ter criado isto? Essa foi a grande questão colocada na época de sua estreia, alguns anos antes da primeira guerra mundial. Stravinski surgia do nada e dava este tapa na cara do público culto de então. Era uma música barulhenta, selvagem, vazia de bons sentimentos. Houve vaias, houve aplausos, houve uma revolução. Escutada agora, mais de um século depois, como soa coisa na época tão moderna? -------------- Timbres. Eis o que mais ressalta hoje. Stravinski cria uma profusão sem fim de timbres insuspeitos. Nem o mais moderno synth tem tanta riqueza de timbres. Como eu poderia descrever? Há zurros, chiados, zumbidos, lixamentos, raios, ganidos, uivos, apitos, sirenes, buzinas, roncos, relinchos, grunhidos e mais, muito mais. Acordes irrompem e somem, voltam e revoltam. Chuvas de fogo, explosões de vazios, barulhentos silencios. Rajadas de percussão, muita percussão. Tensão que nunca alivia: é música tensa, nervosa, ansiosa, incômoda. Neurótica? Não, nada neurótica, antes natural. ----------------- Em Fantasia, os animadores da Disney imaginaram para esta música o nascimento da Terra. Sabemos que Stravinski se inspirou nos ritos pagãos da Russia. Penso, que como em toda obra prima, e ela é, cada um terá sua sensação íntima, muitas das quais incomunicáveis. Para mim ela assombra como uma música do mal, da maldade, do horror. E penso então que ela evoca algo de muito profundo e temido dentro de nós. Por mais que esse tipo de música tenha perdido sua força original em todas estas décadas, ela ainda tem a violência do que é reprimido. Sim, ela brota do inconsciente, o que faz nascer uma contradição, pois Stravinski era extremamente racional. ---------- Talvez por possuir tanta racionalidade seu inconscinete irrompeu como fogo e selvageria. Talvez por eu ser pessoa tão controlada ela me recorde nosso pânico primordial. --------- Não se engane. Assim como são os herbívoros hoje, no passado mais remoto nós vivíamos em constante tensão. Cercados de carnívoros, sem armas, nós éramos a presa. Cansávamos de ver, todo dia, nossos companheiros serem devorados em nossa frente. Nossa vida era uma fuga, o horror da noite, os olhos sempre arregalados. Seja por genes, seja por espírito, carregamos essa lembrança inconsciente. A música aqui contida remete à isso, daí seu primitivismo. De um modo hiper sofisticado, Stravinski criou música que recorda a vida primitiva sem soar jamais "primtivo", muito pelo contrário. --------- É um milagre de técnica para uma orquestra conseguir tocar coisa tão complicada, barulhenta, perigosa. Um amigo músico me diz o quanto é dificil tocar alto, como em volume alto tudo pode dar errado e se tornar mero ruído. A Sinfônica de Londres jamais exita e Claudio Abbado domina tudo na ponta dos dedos. É maravilhoso. E ainda bastante perturbador.
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