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RETRATOS DE MEMÓRIA E OUTROS ENSAIOS - BERTRAND RUSSELL
Encontro um livro da Companhia Editora Nacional, publicado em 1958. Primeira surpresa, vejo que a editora tem 22 livros de Russell em catálogo. Outros tempos... ----------------- Russell nasceu em 1872 numa família de longa linhagem aristocrata. Estudou matemática e filosofia em Cambridge e ao longo de quase 100 anos, ele viveu até 1970!!!!, lúcido e produtivo, Bertrand Russell foi o intelectual central na cultura da Inglaterra. É famoso por sua obra, mas tembém por sua defesa da liberdade, da paz, da civilização. Estes textos, escitoe por ele aos 80 anos de idade, versam não só sobre fatos de sua vida, como também sobre política, educação, psicologia, filosofia e lógica. Ele fala também sobre pessoas que conheceu, seu avô que nasceu na época da queda da Bastilha e foi ministro, e gente como John Stuart Mill, Hegel, Lawrence, Shaw, Orwell, Wells. ------------- É pedagógico ler Russell porque ele escreve usando algo que atualmente não se usa: a lógica. Em estilo simples e conciso, ele nunca joga frases sem sentido, tudo tem de possuir um sentido claro e único. Quando ele fala de Liberdade, por exemplo, ele explica que liberdade é essa. ( No caso, a possibilidade de ter, fazer, falar e se mudar ). Socialista Fabiana, ou seja, não marxista, Russell faz ataques demolidores contra o comunismo. " Não posso aceitar nenhuma linha de pensamento que nasce no ódio. E tudo no comunismo é movido pelo ódio. Eles têm por objetivo a destruição e nunca apresentam nenhuma ideia sobre como construir. Não têm amor pelos pobres, mas antes um imenso desejo de destruir a riqueza". Depois dessa, nada mais há se falar sobre a coisa. -------------------- Russell não concorda com Hegel, que acha obscuro e metafísico, nem com Kant, que faz mero jogo de palavras. E talvez o melhor texto seja sobre Descartes. De uma maneira lógica ele demonstra que a frase " Penso, logo existo", não faz qualquer sentido. Russell demonstra, de modo sempre elegante, como se define o pensamento em um mundo pós quântico. -------------- Ele defende o tempo, antes da Primeira Guerra, em que se acreditava que o mundo evoluiria de modo lento, gradual e ordenado. Tempos felizes, otimistas, em que se acreditava que o destino do mundo era se tornar todo um tipo de Inglaterra, nações de parlamentos liberais. Russell diz que para ele é difícil aceitar um mundo tão diferente de sua juventude ( ele foi jovem em 1890-1910 ), um mundo, em 1958, que sofria a ameaça da Bomba, do totalitarismo, da falta de liberdade. ------------------ Várias vezes Russell fala de horrores de 1958 que são realidades ainda mais horrorosas hoje. Já na época ele percebia que " quanto mais organizada uma sociedade, mais pergio corre a liberdade, pois a vigilância aumenta, alimentada por burocratas que vivem dessa organização". Mas Russell é um otimista e diz que a vitória final é sempre do bem, isso porque o mal necessita de opressão e o homem só atinge alguma felicidade quando livre. Ele foi um grande, grande homem.
PS: Socialismo Fabianista é uma corrente econômica que almeja e distribuição do bem estar sem a destruição da classe média. É um tipo de distribuição de lucros. Os socialistas marxismos os acham ingênuos. Os fabianistas achavam os marxistas utópicos e maldosos.
GIACOMO CASANOVA ( E UM COMETÁRIO SOBRE O TRABALHO À MODA DE RUSSELL )
Vou negociar em um sebo. É uma das coisas que mais gosto de fazer. Com tempo livre hoje, vasculho o imenso sebo e acabo encontrando coisas realmente valiosas. Saibam então que conforme for lendo, logo livros interessantes serão aqui comentados. Já estou lendo as MEMÓRIAS DE CASANOVA. Comecei a lê-lo na cama e não consigo parar. Foram 70 páginas numa levada só.
Creio que infelizmente vocês não acharão essa obra com facilidade. A edição que adquiro é da editora José Olympo, de 1945. Capa dura e páginas escuras de tão velhas. Vejo ser o volume dois. Suas memórias são em cinco volumes. Mas não faz mal, as aventuras do famoso italiano podem ser lidas em qualquer ordem. Aqui tenho os anos de 1750-1760. Ele está em Paris, Dresden e Viena.
Casanova passou a posteridade como sinônimo de atleta sexual, e realmente ele vai à cama de muitas mulheres, casadas ou não, nobres e plebeias. Mas ele é muito mais que isso, ele é um curioso. Inteligente ao extremo, maravilhoso escritor, ele procura conhecer. se interessa por tudo, ele vive plenamente. O livro é acima de tudo um manual de como viver bem.
Os melhores intelectuais do século XX eram apaixonados pelo século XVIII. Não o seu final, a revolução, mas sim seus começos, a época do absolutismo e do iluminismo. Muita gente se diz iluminista sem fazer a menor ideia do que seja isso. Os mais idiotas pensam que significa ser ateu ou então vagamente anarquista. Nada mais absurdo! Voltaire acreditava em Deus mas odiava a igreja. Iluminismo é ser curioso. Esse o passo fundamental: desprezar dogmas em prol de saber mais. Casanova é assim. Ele escreve no fim do seu século, naquele estilo simples e direto de Voltaire, muitas coisas acontecem sem parar, e tudo que lhe importa é saber. Suas conquistas sexuais são simplesmente atos de curiosidade: como aquela mulher ama? Como é seu corpo?
Bertrand Russell disse que a guerra de secessão americana foi acima de tudo a luta entre puritanos do norte e aristocratas do sul. Lendo Casanova um aspecto nos choca: ninguém trabalha! Produzir alguma riqueza é ideia completamente distante. A fortuna vem às toneladas, gasta-se, e não se preocupa com isso. Com tempo livre, todo o tempo do mundo, os piores passam sua vida em fofocas e bebida, jogo e caça. Os melhores vivem adquirindo cultura. Eis Casanova. Para os puritanos ingleses, os mesmos que fizeram os EUA e venceram a guerra civil, nada é mais pecaminoso que a vagabundagem. Mesmo rico, um homem deve trabalhar. É ordem de Deus. Eis a filosofia americana. Observe que mesmo milionários de lá continuam indo ao escritório ou administrando fundações. O playboy ou o sheik árabe que vive só pelo lazer, lá são inimagináveis. Esse modo de viver, republicano, é a grande herança americana. É um país que odeia a nobreza. Não é o caso do Brasil. Nosso sonho é poder viver sem trabalhar. Bem...divago...divago como Casanova faz.
Escrevo mais sobre este delicioso livro em outro post.
Creio que infelizmente vocês não acharão essa obra com facilidade. A edição que adquiro é da editora José Olympo, de 1945. Capa dura e páginas escuras de tão velhas. Vejo ser o volume dois. Suas memórias são em cinco volumes. Mas não faz mal, as aventuras do famoso italiano podem ser lidas em qualquer ordem. Aqui tenho os anos de 1750-1760. Ele está em Paris, Dresden e Viena.
Casanova passou a posteridade como sinônimo de atleta sexual, e realmente ele vai à cama de muitas mulheres, casadas ou não, nobres e plebeias. Mas ele é muito mais que isso, ele é um curioso. Inteligente ao extremo, maravilhoso escritor, ele procura conhecer. se interessa por tudo, ele vive plenamente. O livro é acima de tudo um manual de como viver bem.
Os melhores intelectuais do século XX eram apaixonados pelo século XVIII. Não o seu final, a revolução, mas sim seus começos, a época do absolutismo e do iluminismo. Muita gente se diz iluminista sem fazer a menor ideia do que seja isso. Os mais idiotas pensam que significa ser ateu ou então vagamente anarquista. Nada mais absurdo! Voltaire acreditava em Deus mas odiava a igreja. Iluminismo é ser curioso. Esse o passo fundamental: desprezar dogmas em prol de saber mais. Casanova é assim. Ele escreve no fim do seu século, naquele estilo simples e direto de Voltaire, muitas coisas acontecem sem parar, e tudo que lhe importa é saber. Suas conquistas sexuais são simplesmente atos de curiosidade: como aquela mulher ama? Como é seu corpo?
Bertrand Russell disse que a guerra de secessão americana foi acima de tudo a luta entre puritanos do norte e aristocratas do sul. Lendo Casanova um aspecto nos choca: ninguém trabalha! Produzir alguma riqueza é ideia completamente distante. A fortuna vem às toneladas, gasta-se, e não se preocupa com isso. Com tempo livre, todo o tempo do mundo, os piores passam sua vida em fofocas e bebida, jogo e caça. Os melhores vivem adquirindo cultura. Eis Casanova. Para os puritanos ingleses, os mesmos que fizeram os EUA e venceram a guerra civil, nada é mais pecaminoso que a vagabundagem. Mesmo rico, um homem deve trabalhar. É ordem de Deus. Eis a filosofia americana. Observe que mesmo milionários de lá continuam indo ao escritório ou administrando fundações. O playboy ou o sheik árabe que vive só pelo lazer, lá são inimagináveis. Esse modo de viver, republicano, é a grande herança americana. É um país que odeia a nobreza. Não é o caso do Brasil. Nosso sonho é poder viver sem trabalhar. Bem...divago...divago como Casanova faz.
Escrevo mais sobre este delicioso livro em outro post.
ENSAIOS CÉTICOS - BERTRAND RUSSELL
Leio este volume de vários ensaios de Russell. Editado em 1928, é um apanhado não especificamente da filosofia desse homem admirável, mas sim o modo como ele via a política, a história e a crença dos homens. Russell não é do meu time, digamos assim. Ele era inimigo de Chesterton, de Tolkien e de Lewis. Mas lê-lo faz bem a todos que amam a inteligência. Russell foi uma das figuras centrais da cultura inglesa no século XX. Em sua longa existência, 1872- 1968, ele sempre foi atuante, um homem de ação. Aos quase cem anos de idade, ainda frequentava passeatas em Londres em pró do pacifismo. Tornou-se famoso no fim do século XIX, como lógico e matemático, e depois, já no século seguinte, como socialista light e pacifista hard. Foi professor de Wittgeinstein em Cambridge ( é Russell quem diz que Witt era "um gênio ou um completo idiota" ). Seu modo de pensar é científico. Ou seja, tudo aquilo que não pode ser provado deve ser visto com absoluto ceticismo. Seja política, psicologia, história ou costumes, só é verdade o que pode ser 100% conferido. Russell nos convida a duvidar de tudo. Mas sem pessimismo, de modo positivo.
Esse modo de pensar é de absoluta urgência neste 2020. Russell teria muito o que dizer contra a persistência de nossas superstições. Seja ela crer em um pedaço de pano na boca como garantia de saúde, seja crer num mapa astrológico como indicador de talentos. O ceticismo não deve poupar nada. O paninho não garante cientificamente nada, o mapa astral idem. Não há distinção. 60% ou 1% de possiblidade, tanto faz. Ciência é verdade absoluta, ou apenas hipótese. Para Russell é a crença o maior inimigo do homem. Cremos que nossos inimigos são ruins, para assim termos o prazer de nos sentirmos bons. Não há evidência alguma em que nosso lado é o certo, mas, desejosos de bondade, de absolvição, desejosos de crença, nos convencemos que eles são o mal, nós somos o bem. Conclusão? Ódio. Guerra. Dissolução. Apesar de socialista, Russell percebia na teoria de Marx um tipo de igreja do ódio. Ela prometia o céu futuro, e para isso unia seus fieis no ódio à classe média. Marxismo sem ódio é inconcebível. Bolcheviques, crentes em sua boa intenção, comungam no rancor mortal ao inimigo. Sem esse combustível a coisa se desfaz. O Capital é um manual de guerra. Frase de Russell.
No capitalismo ele sentia a mesma fé cega. Mas, invés de voltado ao ódio ao inimigo, voltado ao individualismo competitivo. Eu creio que irei vencer. E quem concorre comigo irá perder. Nesses seus escritos, era 1928, vinte anos antes da guerra fria, Russell já previa o choque entre os gigantes. URSS e USA tendiam a dividir o mundo em dois. Um lado oprimido por um partido e uma burocracia infinita, o outro lado oprimido por meia dúzia de empresas e uma sede infindável por progresso. Ele previa que o único modo dos USA perderem seria se o nível financeiro médio de seu operário ficasse abaixo do soviético. Já a URSS cairia se o estado perdesse sua auto confiança e seu poder de esmagar vozes dissidentes.
Falemos agora de filosofia pura. Na verdade, a melhor parte do volume.
Russell, como eu já sabia, considera Bergson um mero "poeta" e nunca um filósofo. Diz ele que Bergson faz apenas propaganda, não tenta provar nada. Que na verdade tudo que o francês fala é aquilo que seu leitor quer crer que seja verdade. Como exemplo ele cita a memória.
Bergson diz que a memória jamais morre. Que aquilo que vivemos permanece vivo em nossa vida. Para Bergson não é apenas uma questão de recordar, é muito mais que isso, o que vivemos, 100% do que vivemos, permanece tão vivo e forte como no momento em que foi vivido pela primeira vez. Russell discorda radicalmente. Para ele, lembrar uma viagem à China é apenas rever uma série de imagens embaçadas. Por mais que algumas dessas fotos nos emocionem, essa emoção é saudade, nostalgia. No tempo que decorreu entre o fato acontecido e a lembrança tudo mudou. Nossas memórias são objetos desgastados pela nossa vivência.
Concordando ou não, é fascinante o modo como Russell enfrenta a tese. Sua abordagem é sempre a da ciência. E ele vive a repetir que, como inglês, vê tudo de um ponto de vista apaziguador. Sem paixão.
Sobre as máquinas, tem Russell uma opinião límpida: sem o trabalho braçal ficamos à mercê de qualquer líder que canalize nossa energia frustrada. Uma pessoa que não se cansa fisicamente é uma pessoa com superávit de energia. Se não houver uma educação para o esporte ou para o uso dessa força, a represa arrebenta. A anarquia e a destruição são as válvulas de escape de jovens que não precisam mais se destruir no trabalho ( o que é ótimo ), mas não sabem o que fazer com o misto de ansiedade, energia não gasta e tempo livre ao seu dispor. Russell teria muito o que dizer sobre nosso mundo. Não é mais o da máquina. É o da virtualidade. Não vemos mais, como ele aponta em 1928, a vida como mecanismo. Vemos a vida como programa, sistema, rede.
Ao final da obra Russell se arrisca a fazer algum futurismo. Acerta ao prever que no futuro as pessoas irão ler cada vez menos, receberão informação de canais os mais diversos e serão facilmente formadas pela propaganda. A ditadura de meia dúzia de veículos tende a cair por terra, mas por outro lado, slogans e frases de efeito terão poder como jamais visto.
Russell defende bastante Freud, William James e Einstein. Diz que a psicanálise tem potencial para mudar todo o mundo ( ela mudou ), e que Einstein revolucionou nossa maneira de pensar. Quanto à James, ele criou o pragmatismo radical, aquele que fala que a verdade é o que funciona, credo de todo o mundo desenvolvido. O ser deseja crer e assim ele crê naquilo que dá certo. O que dá certo será então a verdade. Eis aí, em William James, toda a filosofia que construiu os EUA. Eu quero crer, escolho crer na democracia. A democracia é os EUA. Os EUA vencem todas as guerras. Os EUA vencem a Europa no comércio e na indústria. Logo, a democracia é a verdade. ( Observe como bastou uma única derrota, Vietnã em 1972, para essa crença começar a ruir ).
Eu não penso como Russell, mas eu gosto de ler Russell.
Eis um ato democrático, tão fora de moda hoje.
Se eu fosse dar um nome à nossa cultura atual a chamaria de cultura do self, do espelho, do palanque. Narcisismo levado ao paradoxo. Somos autores, atores e público de nós mesmos. Fechamos nosso teatro àqueles que não são de nossa tribo. E ao mesmo tempo sofremos da nostalgia de algo que se perdeu e não tem nome. Russell chamaria de saudade da razão. E é essa a delícia de o ler. Relembrar o que significa razão.
Esse modo de pensar é de absoluta urgência neste 2020. Russell teria muito o que dizer contra a persistência de nossas superstições. Seja ela crer em um pedaço de pano na boca como garantia de saúde, seja crer num mapa astrológico como indicador de talentos. O ceticismo não deve poupar nada. O paninho não garante cientificamente nada, o mapa astral idem. Não há distinção. 60% ou 1% de possiblidade, tanto faz. Ciência é verdade absoluta, ou apenas hipótese. Para Russell é a crença o maior inimigo do homem. Cremos que nossos inimigos são ruins, para assim termos o prazer de nos sentirmos bons. Não há evidência alguma em que nosso lado é o certo, mas, desejosos de bondade, de absolvição, desejosos de crença, nos convencemos que eles são o mal, nós somos o bem. Conclusão? Ódio. Guerra. Dissolução. Apesar de socialista, Russell percebia na teoria de Marx um tipo de igreja do ódio. Ela prometia o céu futuro, e para isso unia seus fieis no ódio à classe média. Marxismo sem ódio é inconcebível. Bolcheviques, crentes em sua boa intenção, comungam no rancor mortal ao inimigo. Sem esse combustível a coisa se desfaz. O Capital é um manual de guerra. Frase de Russell.
No capitalismo ele sentia a mesma fé cega. Mas, invés de voltado ao ódio ao inimigo, voltado ao individualismo competitivo. Eu creio que irei vencer. E quem concorre comigo irá perder. Nesses seus escritos, era 1928, vinte anos antes da guerra fria, Russell já previa o choque entre os gigantes. URSS e USA tendiam a dividir o mundo em dois. Um lado oprimido por um partido e uma burocracia infinita, o outro lado oprimido por meia dúzia de empresas e uma sede infindável por progresso. Ele previa que o único modo dos USA perderem seria se o nível financeiro médio de seu operário ficasse abaixo do soviético. Já a URSS cairia se o estado perdesse sua auto confiança e seu poder de esmagar vozes dissidentes.
Falemos agora de filosofia pura. Na verdade, a melhor parte do volume.
Russell, como eu já sabia, considera Bergson um mero "poeta" e nunca um filósofo. Diz ele que Bergson faz apenas propaganda, não tenta provar nada. Que na verdade tudo que o francês fala é aquilo que seu leitor quer crer que seja verdade. Como exemplo ele cita a memória.
Bergson diz que a memória jamais morre. Que aquilo que vivemos permanece vivo em nossa vida. Para Bergson não é apenas uma questão de recordar, é muito mais que isso, o que vivemos, 100% do que vivemos, permanece tão vivo e forte como no momento em que foi vivido pela primeira vez. Russell discorda radicalmente. Para ele, lembrar uma viagem à China é apenas rever uma série de imagens embaçadas. Por mais que algumas dessas fotos nos emocionem, essa emoção é saudade, nostalgia. No tempo que decorreu entre o fato acontecido e a lembrança tudo mudou. Nossas memórias são objetos desgastados pela nossa vivência.
Concordando ou não, é fascinante o modo como Russell enfrenta a tese. Sua abordagem é sempre a da ciência. E ele vive a repetir que, como inglês, vê tudo de um ponto de vista apaziguador. Sem paixão.
Sobre as máquinas, tem Russell uma opinião límpida: sem o trabalho braçal ficamos à mercê de qualquer líder que canalize nossa energia frustrada. Uma pessoa que não se cansa fisicamente é uma pessoa com superávit de energia. Se não houver uma educação para o esporte ou para o uso dessa força, a represa arrebenta. A anarquia e a destruição são as válvulas de escape de jovens que não precisam mais se destruir no trabalho ( o que é ótimo ), mas não sabem o que fazer com o misto de ansiedade, energia não gasta e tempo livre ao seu dispor. Russell teria muito o que dizer sobre nosso mundo. Não é mais o da máquina. É o da virtualidade. Não vemos mais, como ele aponta em 1928, a vida como mecanismo. Vemos a vida como programa, sistema, rede.
Ao final da obra Russell se arrisca a fazer algum futurismo. Acerta ao prever que no futuro as pessoas irão ler cada vez menos, receberão informação de canais os mais diversos e serão facilmente formadas pela propaganda. A ditadura de meia dúzia de veículos tende a cair por terra, mas por outro lado, slogans e frases de efeito terão poder como jamais visto.
Russell defende bastante Freud, William James e Einstein. Diz que a psicanálise tem potencial para mudar todo o mundo ( ela mudou ), e que Einstein revolucionou nossa maneira de pensar. Quanto à James, ele criou o pragmatismo radical, aquele que fala que a verdade é o que funciona, credo de todo o mundo desenvolvido. O ser deseja crer e assim ele crê naquilo que dá certo. O que dá certo será então a verdade. Eis aí, em William James, toda a filosofia que construiu os EUA. Eu quero crer, escolho crer na democracia. A democracia é os EUA. Os EUA vencem todas as guerras. Os EUA vencem a Europa no comércio e na indústria. Logo, a democracia é a verdade. ( Observe como bastou uma única derrota, Vietnã em 1972, para essa crença começar a ruir ).
Eu não penso como Russell, mas eu gosto de ler Russell.
Eis um ato democrático, tão fora de moda hoje.
Se eu fosse dar um nome à nossa cultura atual a chamaria de cultura do self, do espelho, do palanque. Narcisismo levado ao paradoxo. Somos autores, atores e público de nós mesmos. Fechamos nosso teatro àqueles que não são de nossa tribo. E ao mesmo tempo sofremos da nostalgia de algo que se perdeu e não tem nome. Russell chamaria de saudade da razão. E é essa a delícia de o ler. Relembrar o que significa razão.
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