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UMA PÁGINA DE MEU DIÁRIO ( COMEÇO DE ABRIL DE 2014 )

O soco explodiu na minha mandíbula. Socos sempre aparecem como cometas, explodem e a gente não sabe de onde veio. Mas não caí, eu nunca desabo. Avancei sobre o cara e rindo disse que seu soco parecia um soco de menina. Ele ficou ainda mais louco e me deu um pontapé. Como disse, eu não caio. Disparei um desafio e me voltei de costas. Andei, devagar, para a sala da direção. Aturdidos, todos olhavam boquiabertos.
Depois que a policia chegou percebi um homem sentado ao canto. Sabia que o conhecia, de onde? Me aproximei a falei com ele. Era pai de um aluno. Viera ver a escola em fevereiro, e por acaso passara por lá essa noite. 
Uma professora me diz o que eu não sabia ( depois que esse homem se vai ), ela diz que o cara, um cara de 25 anos, quando eu me voltara de costas, pegar um skate e fora para cima de mim, transtornado. Ele ia me acertar a nuca com a quina do skate. Mas o pai do aluno, que surgira dentro da escola ninguém sabe de onde, agarrara o cara e salvara minha cabeça. Talvez ele tenha salvo minha vida.
Se eu fosse um niilista eu diria: Merda.
Se eu fosse um existencialista: Destino que pedi.
Se eu fosse um freudiano: Desejo de punição.
Se eu fosse um jungiano: Arquétipo de cowboy.
Se eu fosse um poeta: Jogo de dados com a sorte.
Se eu fosse crente: Poder de Deus.
Mas eu sou eu: Foi um anjo que soprou os ouvidos daquele homem...

PARAÍSO PERDIDO- CEES NOOTEBOOM

Uma moça dos Jardins, em São Paulo, filha de alemães, em momento de tristeza, sai de noite com seu carro sem rumo. Acaba em favela onde é estuprada. No choque de sua dor, sem nada mais a perder, resolve fazer a viagem sempre adiada: ir à Austrália. Lá ela se embrenha no deserto e conhece um pintor aborígene. Tem uma experiência de sexo, de silêncio e de êxtase. E volta sabendo o que é a vida. A vida é (---------------------------... ).
Ao mesmo tempo ( ou tempos depois? ) ocorre uma feira literária em Perth. Um crítico em crise encontra uma moça/anjo. É a garota que foi ao deserto e voltou. Um contato. Ele fica obcecado. Ela se vai. Breve. Silêncio...
Neste curto e muito preciso livro Cees atinge seu alvo. O mundo como vazio oco, anjos como seres com quem nada temos em comum, o cinismo destruindo toda possibilidade de sentido, e a Austrália ( pois do Brasil ele apenas fala de São Paulo, e SP é uma favela com os tais Jardins no centro. E os Jardins são um lugar onde todos sonham em viajar para fora ).
Austrália...India, Nepal. Cambodja, Terra Santa, Mongólia... existem lugares onde se busca um sentido, uma experiência, mas a Austrália é o mais forte, porque lá existem as terras sagradas, e lá viveram os aborígenes. O que eles tinham de tão diferente? Não conheciam o tempo. Viveram 40.000 anos exatamente no mesmo lugar, sem avançar um passo ao futuro, sem construir nada, tendo apenas meia dúzia de palavras em seu vocabulário, nada possuindo. São a mais radical oposição a nosso mundo. Quietos, calados, se guiando em terra onde nada cresce, nada existe, nada ocorre. Imutáveis, lentos, andando sem andar e profundamente ligados as estrelas, aos sons do silêncio, aos bichos, ao pó e ao vento. Povo de pedra, de areia, de sol. Perdedores em nossa corrida; mas qual é nosso prêmio mesmo?
Anjos que são os seres terríveis que anunciam nosso nada. Jogados por nós ao limbo da indiferença. Nooteboom consegue embaralhar tudo. E consegue ser misterioso e claro. Inicia o livro com citação de Benjamim sobre pintura de Klee e encerra com John Milton falando de Adão e Eva expulsos do paraíso. Nossa nostalgia desse paraíso perdido, nossa aversão a esse paraíso perdido. E os anjos que nos cercam, sempre lá e aqui, pagam quietos e calados por nossa aversão.
Os melhores estão calados.
O livro é muito bom.
PS: Os melhores livros de nossa época são os que lutam contra nossa atitude de ver em tudo que escape do banal, o brega, o kitsch. Nosso tempo cínico e covarde, vê em tudo que procure ser relevante, ridiculo. Nooteboom nunca é ridículo. E nunca é cínico ou blasé. Por isso ele é relevante. Seus personagens fazem a transposição, penetram no oculto e nada dizem sobre o que lá encontraram. Essa é a única função da literatura hoje. Todo o resto é farmácia.

DE ANJOS E DE VERDADES

Vejo um belo filme : UM ANJO CAIU DO CÉU. Filme de natal, doce, bem feito, simples. Fala de um anjo ( Cary Grant ) que vem a terra ajudar um pastor ( David Niven ) que sofre. Esse anjo, sempre feliz, sempre calmo e sedutor, se indispõe com o tal pastor, que é incapaz de ver onde ele pode lhe ajudar. Pois o anjo, aparentemente, rouba o amor de sua esposa ( Loretta Young ) e de sua filha. ( Assim como de todos que lhe cercam ). O que ele faz para os seduzir é simplesmente os escutar. O anjo escuta o coração dos outros, faz com que eles falem o que lhes aflige, faz com que avistem seu caminho. Na verdade o anjo nada lhes dá que eles já não possuíssem. Mas o pastor, cego em ambição, não percebe nada e vê nele um simples sedutor.
O filme é apenas isso, mas há algo de profundamente comovedor nele. Principalmente no momento, terrível, em que ele vai embora. O anjo se vai, e sentimos que alguma coisa de muito especial se parte naquelas vidas. O preto e branco do filme fica mais cinzento e sua trilha sonora parece vazia. Alguma coisa de muito profunda ( sem querer ? ) é tocada.
Nos vemos naquele momento. Assumimos nossa condição de orfãos, de ignorantes, de vaidosos cegos simplórios, de egoístas. Sentimos um vazio quando ele parte, que na verdade é o vazio onde sempre estamos, feito mais forte. E para piorar as coisas, esse anjo tem a cara de Cary Grant....
Não importa se anjos existem ou não. Eu particularmente creio que jamais existiram. Mas o que interessa é sua criação, o porque de os termos criado e o motivo de os termos dispensado. ( Que é o que ocorre no filme, o pastor que o convocou o despede depois ). Me parece que existiu um momento ( existe ainda em cada um de nós ) em que devemos escolher entre o anjo e a ambição. Se tornar "adulto" e portanto jogar fora anjos, fadas, brinquedos e ingenuidades, ou abrir mão da vontade de poder, e deixar-se guiar como ovelhinha dócil continuando docemente obediente a anjos, destinos e mandamentos. Tudo bobagem !!!!
O mundo tentou se tornar livre, adulto, dono de sí mesmo. Dispensou anjos, reis, heróis e poetas. E se tornou mais adulto por ter feito isso ? Claro que não. Continua apegado a brinquedos, fadas e ingenuidades ( na forma de produtos fúteis, gurus new age e ismos vários ). Transformamos o mundo num playground sem magia, bosque artificial sem encanto.
Dissecamos todo o mistério. O que colocamos no lugar ? Nada que dure ou permaneça.
Volto a dizer, se anjos existiram e foram depois expulsos por nossa ciência, ou se jamais existiram, não é a questão. O que me toca é a idéia de não conseguirmos aceitar sua ajuda, seu exemplo, sua alegria.
Fazem alguns milhares de anos que temos em nossa mente, bem lá no fundo, um pequeno poema que citarei a seguir. Por mais que filósofos, artistas e gurus tenham tentado esquecer suas palavras elas continuam a ecoar entre o dia em que nascemos e o dia em que morremos. Pois foi o pensamento que guiou o pai do pai do pai do pai de nosso avô. Ainda é, além de toda vaidade, de todo orgulho, a imagem do conforto e da doce alegria plena :

"Deus é meu pastor e nada me faltará
Leva-me a descansar em pastagens verdes e me conduz a águas refrescantes;
Conforta minha alma, guia-me pelas sendas direitas,
Para que eu honre seu nome.
Ainda que eu caminhe pelos vales da morte
Nada temerei, porque Ele está comigo.
Vosso cajado e vossa voz são meu conforto. "

Várias centenas de anos, milhares na verdade, de anos depois, este texto, creditado ao rei David, ainda é, quando você sente dor ou medo, o mais belo consolo já escrito. Esta é a tal voz angelical, este é o caminho indicado e não imposto ( caminho de submissão ? de auto-negação ? Alguém pode me indicar alguma crença que não tenha alguma submissão ? ). Ter um pai que nos guia e conforta. Aqui se exemplifica o mais profundo desejo humano. Seja esse pai um Deus, um psicólogo, um imperador ou um filósofo. Ou, nesta era do desejo sem fim, o vendedor de drogas ou de carros importados da esquina.
Mostre-me a senda verdejante. Acalme minha dúvida. Venda-me um apartamento no condominio The Eden.....
O filme merecia ser refilmado para ser visto nos shoppings ( vocês já estão chamando os shoppings de Mall ? ). Mas provavelmente o anjo seria mais histérico, se apaixonaria pela esposa e sucumbiria aos prazeres do consumo de luxo.
A pureza só se perde uma vez, não pode ser readquirida. Eu perdí meu anjo muito cedo ( aos 9 anos ). Hoje me consolo crendo em artistas e filósofos e sendo o Senhor de meu cachorro. È... pode rir, mas estou falando sério. Pois eu o levo a vales verdejantes e nada deixo lhe faltar. E sei que comigo ele é feliz.
Pense nisso.