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COISAS FRÁGEIS - NEIL GAIMAN

O inglês é um povo interessante. Aliás, dizem que todo povo ilhéu é esquisito. Australianos e japoneses não nos deixam enganar, isso é verdade. O inglês pagava clubes para poder beber só cercado de homens que pagavam para beber sós. O inglês torce pela seleção para poder se decepcionar e sente gosto em falar mal de seu próprio time nacional. Até recentemente não havia futebol aos domingos porque era o sagrado dia do crickett. E sua religião é protestante, mas tem santos, imagens e altares enfeitados. Mas de tudo isso, nada é mais estranho que o fato de que a história de natal mais querida pelos ingleses é um conto de terror e que eles se divertem com pequenas histórias cheias de sangue e de maldição. Nada é mais inglês que uma casa com fantasmas e nada mais prazeroso que ser deixado só em um quarto maldito. Alguém disse que a França é nada mais que uma cozinha, a Alemanha um depósito de bebidas e a Italia um imenso museu. A Inglaterra? É um empoeirado antiquário. Mesmo em 2024, tempo em que a Inglaterra quase não é mais inglesa, isso sobrevive na soturnice que há em certas canções da ilha. -------------- Falo tudo isso pra dizer que o livro de Neil Gaiman mistura Dickens com Lewis Carrol, Conan Doyle com os americanos Poe e Bradbury e ainda doses de Lovecraft e Shelley. São vários contos curtos e alguns poemas malucos. Nada faz muito sentido e tudo pode acontecer, Sim, são hostórias de tempo de chuva. Dá pro gasto.

AS COMÉDIAS DA EALING

Não há nada mais inglês que as comédias da produtora Ealing. Feitas entre 1949-1955, elas têm aspecto vitoriano, sombras e lugares meio sujos, personagens excêntricos, conclusões cheias de ironia. Me sinto em casa as assistindo e sim, elas são consideradas alguns dos momentos mais brilhantes da história da arte da tela grande. Michael Balcon reuniu, como produtor, um time que trabalhava junto, diretores, roteiristas, fotógrafos que davam palpite, ideias, sugestões. Não era o humor feito para gargalhar, nada há de pastelão, mas sim aquele que mostra o absurdo da vida, a esquisitice das coisas, a hipocrisia das relações, e nos dá a alegria de saber que a vida não é tão séria assim. AS OITO VÍTIMAS ( KIND HEARTS AND CORONETS ) tem um roteiro genial de John Dighton e tem Dennis Price interpretando um jovem revoltado. Sua mãe, herdeira de um ducado, foi deserdada por ter se casado com um italiano. Ela morre em amargura, e o filho arma a morte de todos os nobres que levam seu nome, para assim ele próprio herdar ducado e castelo. O filme começa com ele na prisão, escrevendo suas memórias às vésperas de sua execução, ou seja, sabemos que o plano não deu certo. São oito vítimas, todas inescrupulosas, aristocráticas, malucas, todas feitas por Alec Guiness, e Alec, gênio, consegue fazer com que esqueçamos que todos são ele mesmo. Dennis Price, ator que foi marcado pelo azar, era alcoolatra e gay, dá um show como o assassino. Torcemos por ele. Há ainda uma Joan Greenwood que faz uma esnobe fútil e interesseira que é sua ruína. Robert Hamer dirige com gosto, tato, sabedoria. ------------------- O MISTÉRIO DA TORRE ( THE LAVENDER HILL MOB ) fala de um emrpegado do Banco da Inglaterra, Alec Guiness, que se une a um pintor modesto, Stanley Holloway, para juntos a mais dois gatunos, roubarem o ouro do banco. O plano é simples e crível e os personagens deliciosos. Como curiosidade, a primeira cena se passa no Brasil, país para onde Alec Guiness fugiu e tem Audrey Hepburn, em seu primeiro papel, tendo uma fala como Chiquita, uma menina de bar. O roteiro, de William Rose ganhou um justo Oscar e o diretor é Charles Crichton, que se tornaria professor de cinema e dirigiria no fim da vida UM PEIXE CHAMADO WANDA. É uma joia do cinema. ----------------- O QUINTETO DA MORTE ( THE LADYKILLERS ) foi refilmado pelos irmãos Coen e deu muito errado. Isso porque não há como recapturar o clima tétrico e dark de uma comédia que se parece com um filme de horror. Cinco ladrões alugam um quarto na casa de uma velhinha onde irão planejar um assalto. Para a velhinha fingem ser um quinteto de cordas. Críticos dizem que a senhora, Katie Johnson, mágica em seu único filme como estrela, representa a velha Inglaterra, calma, correta, sábia, aquela que deu certo, e os cinco ladrões são a Inglaterra que surgia em 1955, perdedora. Alec Guiness é o chefe do bando e sua atuação é uma das maiores da história do cinema. Maníaco, perigoso, asqueroso, infame, ele tem a seu lado o jovem Peter Sellers, que com topete e maneirismos faz um mod. Herbert Lom, que seria o comissário Dreyfuss na série da Pantera Cor de Rosa, é um estrangeiro mafioso de terno preto. Alexander Mackendrick, um grande diretor em todo gênero, dirigiu dando ao filme um clima soturno e tomando extremo cuidado com enquadramentos e cor. É um filme estranho, desagradável e ao mesmo tempo um prazer em rever. -------------------- Tenho ainda mais 3 filmes Ealing para ver, dentre eles dois que espero poder ver pela primeira vez a mais de 40 anos. Parabéns a Versátil por ainda nos dar esse presente.

SAINDO DE LONDRES

Minha amiga sai de Londres e uma cena revela o que significa um lugar que, apesar de tudo, ainda mantém algo do estilo. ------------ Na estação de trens há um piano de cauda, um Steinway. Em meio a multidão, um rapaz senta-se ao piano e executa um Liszt perfeito. ( Eu sei pois ela me mandou o video ). Uma menina surge e pede para tocar com o rapaz, SEM ENSAIO. Os dois tocam Brahms, um duo de violino-piano. Esplêndido, eu ouvi e o nível é alto. Não pedem dinheiro. Mas dezenas de pessoas param e aplaudem. Minha amiga se arrepia. ----------------- No dia anterior, um domingo, ela foi a um dos muitos museus de Londres. Entre aviões da RAF, locomotivas de 1830 e trajes espaciais, ela viu um enorme grupo de meninos anotando e pesquisando dados de tudo lá exposto. Eles não passeavam pelo museu, eles estudavam o que viam, em pleno domingo. --------------- Não há segredo em país desenvolvido: é trabalho, muito trabalho, muito estudo e um profundo respeito por sua história e o lugar de onde voce veio. Ela chama Londres de lugar mágico, um lugar digno daquilo que imaginamos que ela seja. --------------------- Hoje ela cruzou o canal e comeu peito de pato grelhado em Paris. E já percebeu que a França é outro mundo completamente diferente da Inglaterra. A casa onde ela se hospeda é muito mais clara, bem decorada, cheia de livros, garrafas, quadros, e principalmente espelhos. Ela percebeu: ingleses não gostam de se ver. Franceses estão sempre se olhando. -------------- Um casal de idosos sexy come ao seu lado no restaurante. Barulho. Franceses falam alto. Os idosos, elegantes, mal humorados, pedem o mesmo que ela, o pato, Le Canard. Ela está amando cada minuto da vida.

IN LONDON TOWN

As almas são enviadas ao Brasil, quando reencarnam, para cumprir pena. Viver, ter nascido no Brasil é desperdiçar uma vida. E posso provar isso com uma pergunta simples: O que o Brasil deu à voce até hoje? E o que ele lhe tirou? -------------------- Ela chegou em Londres e sua primeira impressão foi: Pessoas gentis. Andando nas ruas ela notou que ninguém parecia ligar muito para ela, e que ao mesmo tempo, no café e no Hotel, ao perceberem que ela era "de fora" se prontificavam a ajudar. Seu primeiro contato, já interessante, foi o atendente: um russo que fala português pois morou em Portugal. Ele ri muito, fala alto, é simpático. Ser bonita a ajuda? Claro que sim, mas no seu país sua sensação é sempre de perigo. ---------------- Na escola em que trabalho há três portas trancadas. Voce deve passar pelas 3 até entrar na escola. Na minha casa TODAS as janelas têm grades e eu não falo ao celular na rua após as 5 horas. Nos acostumamos a ter medo, pior, nos acostumamos a ser formatados pelo roubo e pela malandragem. Isto aqui é uma colônia penal onde os honestos pagam a pena. --------------- Em Londres ela ficou, sozinha, na rua até as 22 horas. No Hotel uma inglesa velhinha veio falar com ela. No dia seguinte, duas coreanas, usando tênis Balenciaga, deslumbradas, vieram fotografar com ela. São amigas agora. --------------- Há um mito brasileiro de que aqui somos simpáticos. Não. Nós não sabemos receber turistas, pois somos caipiras. E os que sabem SEMPRE querem algo em troca. Eu falei turismo? Que turismo? Culturalmente temos nada a mostrar. Um cidadão brasileiro culto, se não viajar, vai morrer sem ter visto uma só obra digna de figurar em um mapa do melhor do mundo. Sim, temos nossa natureza. Mas pense, ela está aqui desde que o primeiro europeu aqui pisou. O que temos de melhor a oferecer ninguém o fez, foi dado. --------------------- Ela fica surpresa: se vestem bem. Fotógrafa, ela tem olhos acostumados a ver. Poucas pessoas são realmente feias e nenhuma parece perigosa. Sim, há coisas que ela não gosta: parecem nervosos, do tipo ansiosos, tímidos. E não olham seu rosto. Mas se percebem que voce se perdeu ou está indecisa, lhe acodem. Os atendentes, seja em bar, restaurante, são delicados. Eis o fato: a estupidez, coisa a que estamos tão sujeitos aqui, está ausente por lá. ------------------ Tivemos um presidente, um desses poucos que acharam que poderiam mudar o Brasil, Jânio Quadros, que dizia que a cada ano ele precisava passar dois meses em Londres. Para recuperar sua civilidade. Claro que o povo desta taba sempre o taxou de louco. --------------------- Ela agora vai ao museu ver aquilo que a esquerda diz que os ingleses pilharam, mas que na verdade eles preservaram para o Mundo. E nesse poucos dias, ela, esperta como é, já me diz: Estou no mundo ao contrário. Frase dela: Parece que eu sempre vivi no mundo errado. -------------- O Brasil? Isto não existe.

A INGLATERRA É ENGRAÇADA

Para entender qualquer coisa inglesa, pelo menos aquilo que se chamava de inglês até mais ou menos 1990, voce precisa entender que a ilha é engraçada. Sem a consciência de que o inglês é marcado pelo humor, e não necessariamente pela alegria, voce nunca fruirá totalmente da arte ou da vida inglesa. --------------- Quem já cruzou o país sabe, a Inglaterra, a GB, é pequena, fria, úmida, escura, estranhamente pobre. Os bosques são monótonos, as ruínas são decepcionantes, os lagos escuros e as praias medíocres. Ao contrário da França, que sempre parece rica, bem feita, risonha, a Grá Bretanha sempre tem um aspecto de mofo, de neblina, de fim de tarde. Vivendo nessa ilha, isolados da Europa, acossados por vikings e depois franceses, dinamarqueses, espanhois, franceses, nazistas, russos, o britânico desenvolveu o humor. Ou voce bebe até cair ou voce percebe que nada daquilo faz muito sentido, que a terra é hostil e a vida dificil e então começa a rir da piada. ------------- Eu falo não apenas do óbvio, os melhores humoristas são de lá, de Chaplin e Stan Laurel à Monty Python e Steve Coogan, Rick Gervais e Jason Statham ( sim, ele é um humorista 100% do tempo ), mas cito Lewis Carroll, Dickens, Joyce, Woodehouse, Swift, e até mesmo Shakespeare. Voce jamais entenderá a arte da Inglaterra e Irlanda se não tiver em mente que Beckett escreve do pub, sempre do pub, um bando de homens rindo e falando blasfêmias. Beatles é sempre irônico, assim como Mick e Keith são, desde 1962, uma piada. Não leve totalmente a sério Oasis, Smiths, Bowie, os saltos de Townshend, Blur ou Primal Scream. Tudo aquilo é folia, é gozação, é brincadeira de moleques no pub. Mesmo aqueles que se percebem como muito sérios, penso em D.H.Lawrence, Wells ou Bertrand Russell, têm seu lado de " Ora eu não falava tão a sério". Ao lado de uma frase trágica de Keats ou Shelley vive sempre a ironia do bebedor de cerveja preta. Robert Burns e Oscar Wilde são a alma das ilhas. -------------- E no entanto eles são tristes... Pois esse tipo de humor nasce sempre da tristeza, é uma fuga, e nisso se parece muito com o humor judeu. Italianos e americanos, outras duas nações do humor, riem de verdade, eles realmente se descontraem, mas o britânico, repare, ele ri sem perder o pudor. Daí sua genialidade. O absurdo levado como fato real. Quando Chesterton nos faz rir, e ele faz, sabemos que a vida pede por sentido, que a vida é limitada, que somos ilhas a procura de um continente. Já quando Steve Martin nos faz rir, sentimos que somos garotos de high school rindo de alegria pura. O americano ri porque sente-se vivo, o inglês ri para sentir-se vivo. ---------- Não estou falando de humor inteligente. Nada há de inteligente no humor do Monty Python e quem fala de humor inteligente nada sabe de humor e muito menos de inteligência. Humor é ser engraçado, só isso, e fazer rir é sempre um ato inteligente, seja Rodney Dangerfield seja Buster Keaton. O humor inglês ou judaico não é mais inteligente que o humor italiano ou americano, é apenas mais absurdo. E, ao contrário dos USA, na GB o humor faz parte do caráter nacional. ------------------ Posto alguns momentos de Peter Sellers. Ele revela o segredo. Aproveite.

George Best • The World's Greatest • The Movie || HD

NO TEMPO EM QUE CADA NAÇÃO ERA UM MUNDO ÚNICO

Globalização? Bela porcaria! Cada vez mais as pessoas irão perceber que não haverá a menor chance de fuga. Isso porque cada país, cada cidade será exatamente a mesma. Voce viajará para o oposto de onde vive e lá achará tudo exatamente igual. Vou falar apenas de um país, um país europeu, há quem não o ache europeu, e bastante conhecido: Inglaterra. Vamos até lá no ano em que nasci, 1962, e se estou vivo, não faz assim tanto tempo. No café da manhã voce comeria rins fritos, linguiça, feijão enlatado, ovos e torradas. E uma xícara de chá. Com leite. O jornal estaria à disposição na rua, voce jogaria uma moeda numa bacia e pegaria um. Homens vestidos de preto, chapéu coco e guarda chuva na mão. O inglês falado teria dezenas de sotaques, um para cada bairro de Londres. Aos domingos nenhum esporte poderia ser jogado, era o sagrado dia do cricket. E é aqui que uso o futebol como exemplo de globalismo. Na primeira divisão, nas finais da copas, nos jogos da seleção, jamais podia se jogar aos domingos. Domingo era cricket e cricket era a própria nação. A rodada do campeonato, de todas as divisões, era sexta e sábado, e um jogo na segunda. --------------- O futebol era maravilhoso. Eu sei porque eu vi. O Tottenham era o atual campeão. No ano anterior dera Ipswich Town. Os estádios ingleses eram inconfundíveis. Vou os descrever. ------------- O SOM. Era uma profusão de "oooooh" e de "aaaaaaaah". Durante todo o jogo havia um ruído de xingamentos pesados, refrões sujos, provocações ardilosas. A TORCIDA. Isso era lindo e das coisas mais únicas da ilha. Eram 80 mil pessoas onde caberiam 40. Todos no quase escuro, uma massa de rostos apertados, faces que surgiam das sombras. Todos de preto, bonés de lã. Muita molecada nas primeiras filas. Sem alambrado. Quase dentro do campo de jogo. Clima feroz. A ARQUITETURA. Eram estádios maravilhosos. Eram feitos para pareceram o lar do time. Daí os telhados. O bar no canto. A madeira aparente. O GRAMADO. Quanto mais lama melhor. Fog era bem vindo. O grande jogador era aquele que deslizava na lama. Que sangrava. Que tinha um dente a menos. Todo time tinha um craque habilidoso. George Best no Manchester United é um dos caras mais dribladores que já vi. Mas o ídolo era o centroavante limitado porém forte, duro mas raçudo, o ídolo era aquele CARA QUE ERA COMO NÓS.----------------------- Esse tipo de jogo só havia na Inglaterra. Na Alemanha o jogo era muito mais organizado e treinado. Na Itália se dava valor a defesa intransponível. Na França se dava vez ao toque, ao passe. Na Espanha era o jogo cigano, uma confusão de jogadores estrangeiros. Já a Inglaterra era o jogo da lama, do tempo sempre ruim, do passe alto, da velocidade e principalmente da raça. Assistir, aqui, no Brasil, em 1980, um jogo do campeonato inglês, era ver um dos muitos outros modos de jogar futebol. Em meio a Zico, Falcão, Cerezzo e Rivelino, ver Ian Rush, Dalglish, Keegan, era ver outro esporte. Era único. Era divertido. Era diferente. ------------------- Esse esporte começou a morrer nos anos 90 com a globalização. Hoje se joga o mesmo jogo no mundo todo. O que muda é a quantidade de dinheiro gasto. Os estádios têm o mesmo estilo, as torcidas devem se comportar do mesmo modo, o jogo almeja ser Barcelona ou Real Madrid. Todos querem jogar nos mesmos 8 times. ---------------- Posto três jogos raiz. Divirta-se.

BALTHAZAR - LAWRENCE DURRELL

Em 1912 Lawrence Durrell nasceu na India. Era o fim do Império Britânico, aquele projeto nascido na marinha real durante a vitória sobre Napoleão e que durou até o começo da Primeira Guerra mundial. Não por acaso, foi o apogeu da literatura e da ciência inglesa. Eu amo essa literatura em seu todo, e sinto saudades do inglês viajante. Autores como Conrad ( que era polonês mas era inglês ), Kipling, o tardio Maugham, Forster, e Durrell, que morreu em 1990, muito depois do fim do império. ------------- Durrell casou quatro vezes, viveu no Egito, França, Argentina, Grécia, Sérvia. Foi muito famoso a partir dos anos de 1960, quando Justine, primeiro livro do Quarteto de Alexandria foi lançado. Este livro, Balthazar é o segundo volume, Justine eu li a alguns anos atrás. Durrell foi best seller em um tempo em que autores difíceis ainda vendiam bem ( Saramago foi o último e o lusitano é bem ruim aliás ). Hoje Durrell anda meio esquecido, o que é uma pena. Nada nele ofenderia as frágeis consciências dos leitores atuais. Ele não é viril demais, nunca parece racista e não tem cenas violentas. A única coisa que faria um leitor-criança eterna fugir dele é sua complexidade. Durrell não barateia nada. Sua prosa é quente, sensual, musical, incrivelmente saborosa. Os personagens, apaixonantes. Durrell foi dos últimos a criar gente que parece real. Eles cheiram e fedem. ------------------- Apesar dessas pessoas, o livro, todos os quatro, são sobre Alexandria, a cidade do Egito que na época do romance, anos 30, era muçulmana, católica, europeia, oriental, suja, linda, absurda, indiferente, assassina. Centro de prostitutas, gays, lésbicas, viciados, esnobes, miseráveis. Muitos europeus iam à Alexandria, como a Argel e Tunis, para assumir sua homossexualidade. Era um mundo onde tudo podia. Durrell foi amigo de Henry Miller. Imaginamos o que ele aprontou por lá. Mas, ao contrário de Miller, Durrell era rico, sua escrita é muito mais refinada. Durrell não tem a raiva de Miller, raiva que estraga o americano. Durrell é muito mais metafísico, poeta, jamais pornográfico, bastante barroco. ------------------ Mulheres perdidas e sexualmente livres, milionários egípcios, ingleses sem rumo, escritores cínicos, sofredores maníacos, e a cidade. Ler este livro é andar por Alexandria, suas ruas, sombras,odores, bares, palácios. Dois capítulos sobressaem: aquele que descreve a travessia do deserto e o fantástico capítulo sobre os dias de carnaval. Este, sobre a festa de 3 dias, é uma joia. ---------------- Mais ainda, temos algumas das melhores descrições sobre a paixão sexual. Oh sim! Ia esquecendo! O livro é a história de Justine, tema do livro primeiro, contada aqui sob outro ponto de vista. O alvo de Durrell não era simples, contar a realidade em sua totalidade. E para isso era preciso criar um QUANTA de texto, uma história onde tudo parecesse acontecer ao mesmo tempo e num agora eterno. Sim, a física quântica aplicada na vida. Durrell já sabia e nos avisa que não daria certo. Mas ele tentou. O livro é um belo erro.

A BELEZA DENTRO DA REALIDADE: A NEW WAVE INGLESA NO CINEMA.

Aqui no Brasil a cultura francesa sempre mandou. Hoje, 2020, a americana tem seu poder, mas em lugares como a USP quem manda é ainda a França. Quando voce pega a lista de artigos a serem lidos no semestre, 70% são de autores franceses. O resto é dividio por russos e americanos. Ingleses quase não há. Por isso herdamos o desprezo, aqui absoluto, ao bom senso e a praticidade. Amamos complicar. Amamos leis. Amamos o selo de aprovação. -------------------------------------- Se em 1959 a Nouvelle Vague teve início, em 1958 começou a New Wave inglesa. Críticos como Godard e Truffaut nunca cansaram de criticar o cinema inglês. Pegamos essa opinião de carona. Nossos críticos da época, e nossos novos diretores, nada viam de novo no cinema britânico de então. Preferiam seguir Godard e às vezes o neo realismo italiano. Pena. Os filmes ingleses seriam perfeitos se usados como influência sobre o cinema paulista, por exemplo. Walter Hugo Khoury imitava Bergman e Antonioni em 1963. Seria muito bom se alguém imitasse John Schlesinger ou Tony Richardson. Mas não rolou. -------------------------------------------------- O cinema inglês sempre foi brilhante. Mas, diziam alguns, era um cinema que só tinha olhos para a classe média e para as cidades do sul. Ainda hoje percebemos isso. Quando se fala em cinema inglês se pensa em mais um filme baseado em Jane Austen ou Henry James. Mais um Shakespeare. Mais uma biografia de alguma rainha. Ou mais um Churchill na tela. Históricos, sempre filmes históricos. Quando não, são classe média. Filmes sobre um jovem publicitário ou uma jovem estilista, um morador do Soho ou de Chelsea. E mesmo quando fazem algo sobre crime ou drogas, veja bem, é algo sobre crime e drogas e não sobre a vida comum de gente nada especial. Não se faz nada sobre o povo real. Os 80% que trabalham nos pubs, fábricas e taxis. Somente Ken Loach e Mike Leigh têm obras sobre esse povo. Nas séries de TV nada é muito diferente. Downtown Abbey é cinema inglês dos anos 50. ---------------------------------------------------------- No Brasil não é diferente. Voce verá muito filme sobre gente pobre. Mas apenas sobre traficantes, travestis ou a favelada cômica, a Dona Jura do pedaço. Preconceito terrível: o pobre só importa quando se pode rir dele. Ou quando ele é marginal. Fora isso, os 90% restantes são irrelevantes. Não existem para os bacanas que fazem cinema. ---------------------------------------- Na Inglaterra era assim em 1957. Pobres só quando cômicos. ------------------------------------------------ Carol Reed. Michael Powell. Os filmes da Ealing Studios. Na Inglaterra dos anos 40 e 50 foram feitos alguns dos melhores filmes da história. David Lean. Hitchcock. Mas, é fato, são filmes hsitóricos ou policiais, filmes de fantasia ou sobre as dores dos muito ricos. Todos têm sotaque da BBC. Todos são very, very english. --------------------------------------------------------- Então surge a new wave. E ontem termino de ver 4 filmes do movimento. LOOK BACK IN ANGER. É a peça de Joe Osborne. O texto sobre um jovem em revolta contra tudo. Richard Burton passa o filme todo exalando ódio. O teatro dos angry young man. TUDO COMEÇOU NUM SÁBADO. De Karel Reisz. Albert Finney como o operário que não admite ser menos que um líder e um sedutor. Ele não ri. Ele tem desejo e só desejo. A KIND OF LOVING, o melhor dos quatro filmes, Alan Bates como o educado e muito jovem trabalhador de futuro, que vê sua vida mudar por causa de uma gravidez. THE ENTERTAINER, de Tony Richardson. Laurence Olivier como um ator passado, ridículo, sem talento, que insiste em não mudar. ----------------------------------------------------------------- A tábua de passar roupa. Quando a peça de Joe Osborne estreou foi um choque. No palco, no centro, apenas uma tábua de passar roupa e uma cadeira. O espetáculo consistia em um casal se agredindo. --------------------------------------------------------------------------------- Que Inglaterra era essa? Mal se entende o que Albert Finney fala!!! TUDO COMEÇOU NUM SÁBADO se passa em Nottingham. E a fala de Finney é a de lá. KIND OF LOVING é feito em Bolton. E a vida no norte, e no país norte é tudo que fica acima de Londres, é outra. -------------------------------------------------------- Nos extras um crítico diz que só se pode entender bandas como Smiths ou Joy Division, se olhar-se esses filmes. Morrissey fez todo o primeiro album de sua banda baseado em apenas um filme, A TASTE OF HONEY, e todas as capas e clips remetem ao norte do país. Segundo esse crítico, a cultura do norte, de Manchester, Liverpool, Newcastle, Bristol, Hull, deu origem à toda raiva e ansiedade da onda pop dos anos 60-70 e 80. A Inglaterra que se vê nesses filmes, cheia de fuligem, suja, pobre, repleta de crianças, perdurou até os anos 90. Quem tem 50 anos ou mais viveu essa cultura new wave. A onda do trabalhador que quer se divertir, que briga na rua, que exige respeito, que deseja coisas e não para de arrumar encrenca. E se deprime por não conseguir. A poesia desses filmes. O crítico fala da beleza que irrompe insuspetia dessas imagens. E termino falando disso. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Eu cresci anglófilo. Não sei o motivo. Quando brincava de soldado, aos 6, 7 anos, eu era sempre um soldado inglês, nunca americano e nunca um cowboy. Talvez tenha sido a beleza da bandeira. Ou os filmes de piratas. Não sei. O rock não foi, pois eu amava os Monkees e sabia que eram americanos. Talvez tenha sido o Joe 90? Não sei. ---------------------------------- Quando comecei a ver filmes de adultos, foi natural me apaixonar pelos filmes ingleses. E o que eu mais gostava é que achava a paisagem dos filmes parecida com aquela onde eu vivia. Não eram as calçadas largas de Los Angeles nem os prédios de New York, não era a classe média rica da Feiticeira ou de Jeannie. Nos filmes ingleses a paisagem era a dos bandos de crianças com nariz sujo. As cozinhas entupidas de caixas, e roupas e panelas sem lavar. As ruas cinzentas, estreitas, acanhadas e os imensos terrenos vazios ocupados por tijolos, mato, ratos, latas e muita lama. As camas parecem molhadas e os lençois usados demais. Banheiro não há. Se lavam na pia da cozinha. TV, quando existe, está no canto, na sala que serve como cozinha e lavanderia. Todos falam alto. Todos gritam. Voce sente o cheiro: suor. Meias sujas. Peixe frito. Muito cigarro. Nos pubs, apertados, eles bebem cerveja preta e gritam muito. Se ofendem. Apostam. Sonham. O sexo nunca é bom como foi pensado. As mulheres são feias. Frias. Sofridas. E mesmo assim, há beleza e vitalidade em tudo. As paisagens são de terrificante beleza. Wordsworth revivido. --------------------------------------------------------- Escrevi várias vezes que não há arte sem pobreza. É a fome o combustível da criação. Após os anos 90, quando finalmente toda ruína da segunda guerra foi reparada e a lembrança da fome morreu, a Inglaterra se tornou esse país meio frouxo que é hoje. Somente o imigrante tem ainda alguma vitalidade. Porque ele lembra da pobreza de seu país de origem. Ver esses filmes é ver um mundo que não existe mais.

O GATO INDISCRETO BY SAKI. O QUE É HUMOR INGLÊS?

Releio Saki e gosto mais hoje que oito anos atrás, quando o li pela primeira vez. Para quem não sabe, ele é inglês e foi muito famoso a exatos cem anos. Sua vida foi bastante misteriosa, claro que Saki é pseudônimo. Este livro tem uma porção de contos, sempre curtos. Saki é um desses autores meio esquecidos, biscoitos finos para meia dúzia de entendidos. Seu estilo é o humor inglês. A maioria das pessoas acha que humor inglês é "humor inteligente". Desconfie sempre de quem usa esse termo. Humor inteligente costuma ser humor sem graça. A pessoa diz humor inteligente como que se colocando acima do mero humor. Quem usa esse rótulo na verdade odeia humor. E humor inglês não é humor inteligente. E creia, também não é nonsense apenas. Lewis Carroll e o Monty Python são profundamente ingleses, mas o humor, tipico e unicamente inglês, não se encontra apenas na falta de sentido ou no jogo gramatical. Grosso modo, humor inglês é humor muito, muito cruel. Saki, como Hitchcock e Dickens, é mestre nesse humor. O que seria humor cruel? Um assassino servir o cachorrinho de sua vítima, em forma de torta, para a viúva do assassinado. Um gato ser morto por aprender a falar e começar a fazer fofocas. O humor e a anedota revelam a raiz popular de uma nação. E no humor inglês, sempre tétrico, se nota seu passado rude, escuro em invernos pavorosos, a força do sangue celta, a violência das guerras tribais. Diz-se que até o reinado de Elizabeth, a primeira, era a Inglaterra o país menos civilizado da Europa. Nação de gente briguenta, suja, bêbada e sempre pregando trotes violentos em ruas onde se apostava em rinhas de ursos e bois. O país enriqueceu e se forçou a ser "frio", dandy, fleumático. No humor esse mundo respira. Saki psicografa. Seus contos são tão refinados como Wilde, mas o que acontece é digno de Chaucer. Sangue na sala de chá. Vikings no Parlamento. E a gente ri.