DA ALEGRIA

O sol. As ruas pareciam sorrir mas de fato elas brilhavam às 8 da manhã. Detrás dos balcões, das lojas pequenas, material de construção, botecos, uma única farmácia, roupas, comidas, os vendedores sorriam, solícitos. Carros corriam sobre o asfalto seco. Minha pele cheirava à banho, o cabelo ainda molhado, a camiseta solta deixava respirar. Eu amava e naquele tempo amar era uma felicidade, mesmo que a menina não soubesse quem eu era. Isso porque amor me fazia sentir vivo, dono da vida. Ele abria meus olhos, meu coração dançava e tinha planos. Na escola não haveria aulas, íamos apenas para ver as notas. Eu sabia já ter sido aprovado. Meus amigos estavam lá: Carioca, Tinho, Diógenes. O riso, a atenção, a companhia. Nós quatro explodíamos de hormônios. Quando nos avistávamos dávamos pulos, ríamos, gritávamos. Não pensávamos em fazer tipo, não havia medo de parecer bobo ou de ser "amigo demais", nada de tentar ser cool, a gente simplesmente sentia. E assim, eu amava aqueles caras como amava aquela manhã e como amava a Aninha. Tudo era amor, tudo era estar estando. --------------- Surgiu Aninha, sempre com Clara ao seu lado. O cabelo preso em um rabo de cavalo, franja, o corpo magro em seus 15 anos de idade. Assim que a vi meu coração pulou. Calor no rosto, respiração difícil, pernas bambas, pensamentos de alegria, suor nas mãos. Era amor como é: o mundo parecia ser perfeito porque ela era parte dele. Eu era feliz por saber que ela existia, então tudo fazia sentido. Ela tinha uma bola de volei nas mãos e logo foi jogar. Era a melhor jogadora da escola, era a capitã do time, eu era talvez o pior, odiava volei. Carioca jogava bem. Enquanto eles jogavam andei pela escola sem rumo, ainda feliz, com Tinho e Diogenes. Os outros estavam por lá: Persio, Flaminio, Renata, Nivaldo, Jorginho, Japa, Tamanduá, Giba, Fábio, Demétrios. A cantina do Mi, a sala da direção onde estava a Patricia, o sol cada vez mais forte. Fomos, após o fim do volei, à Faria Lima, correndo pela rua por todo o caminho, quatro moleques com rostos de sol da manhã. Dávamos tapas nos postes, arrancávamos folhas das árvores, atravessávamos o sinal bem devagar, só para irritar os motoristas. O mundo era nosso, a gente sabia disso. O fliperama já estava cheio, as luzes das máquinas na escuridão da sala barulhenta. Eu adorava o Space Invaders. Compramos fichas, o dia parecia leve como brisa. Depois, no Cal Center, Carioca comprou uma camiseta e mandou estampar ela. Coisa bem do Rio, blusa branca com estampa de praia. Toda cheia de brilho. Voltamos pra escola, agora já meia vazia. Passamos ao lado da rua de Aninha, a rua mais bonita do mundo todo. Bertoldi Bianchi. Diziam que uma menina chamada Bethânia gostava de mim, queria me beijar, mas eu não sabia o que fazer, ficava perdido, ela era bonita e tinha seios grandes, mas ela não era Aninha. Carioca ficava irritado porque ela era amiga da menina que ele gostava, uma loirinha bonita, quieta, Ligia. Ele beijou a Ligia, mas para mim, beijar era algo tão misterioso como a luz de uma estrela ou o voo de uma águia. Eu evitava Bethãnia. Mesmo em um mundo alegre existe um problema confuso. -------------------- Fomos almoçar no bar de meu pai, rua Cunha Gago. Lotado de clientes, peguei coxinhas para eles e sorvetes. Carioca, sempre lembrando sua cidade de origem, mergulhou o picolé de coco num copo de Fanta laranja. Açucar em grau máximo. Nós quatro falávamos das meninas, ansiosos pelas alegrias que iriam vir no ano seguinte. Nenhum deles sabia de Aninha, eu os escutava e não falava muito de mim, na verdade eu falava besteiras, minha capacidade de falar sem nada dizer era infinita. Na calçada gente com sacolas e pacotes, não é fantasia minha não, se comprava muito presente no Natal. Era pacote até para o entregador de contas de luz. -------------------- Um passeio pela loja Yaohan. Tinho, sempre metido à malandro, todo mundo que morava em Pinheiros era, roubou um pacote de peixe seco. Só percebemos na rua, quando ele mostrou o fruto do roubo cheio de orgulho. Voltamos à loja para roubar mais. Carioca pegou um saco de balas. Eu não consegui pegar nada, não por honestidade, por medo de ser pego. Já começava a anoitecer. O céu tinha tons de roxo e azul escuro. Uma melancolia surgiu, mas até mesmo a melancolia era feliz, porque ela era parte do estar vivo, do ser jovem e pronto para o que acontecesse. Essa melancolia tomou sentido no ponto de ônibus: era hora de me despedir de Carioca. Ele iria para casa, longe, em Quitaúna, o pai era tenente do exército, e no dia seguinta iria para o Rio, Madureira, ficar todo o verão no lugar onde nascera. Houve um súbito silêncio no ponto, nenhum dos quatro falava. Carioca falou então: Tu vai ver o Flamengo perder de novo? ------------ Ele era Botafogo, eu me tornara Flamengo. Tinha raiva de ser paulista. Então imitava o modo carioca de ser e de falar. Enganava bem. Vivia usando uma camisa do Flamengo e gente na rua, às vezes, perguntava se eu era do Rio. Por causa do meu sotaque. Um jovem camaleão. ------------------ O ônibus veio e se foi, levando nosso líder. Todo grupo de meninos tem seu líder, o cara que inventa o que fazer. O Tom Sawyer da turma. Carioca acenou da janela, rindo. Então Tinho falou uma besteira e Diogenes espirrou. Ele estava sempre espirrando. Fomos correndo de volta à Yaohan. Lá comprei o mais lindo cartão de Natal. Eles queriam saber para quem era. Não disse que era para Aninha. Paguei e o segurava nas mãos como se fosse um tesouro. Nos despedimos na calçada, promessas de nos vermos amanhã, promessas não cumpridas. No ônibus, voltando para casa, eu tinha plena consciência de estar vivendo feliz. Todos ao meu redor pareciam tipos interessantes, abertos, faladores, gente que fazia parte da minha alegria. Quando entrei na sala de casa, meus pais vendo TV, a felicidade foi tanta que eu quase chorei. Deitei sobre o colo de minha mãe e adormeci. Olhos fechados ouvindo as vozes dos meus pais. O sono me levou. ------------------- Hoje, mais de 40 anos passados, eu penso, infelizmente, que tanta alegria se devia ao simples fato de possuir um corpo jovem. Meus olhos enxergavam o brilho das ruas e meus músculos eram leves como pluma. E pensar isso, pensamento de velho, entristece. Porque trai aquele dia. E então eu lembro: Era feliz porque pouco pensava e não planejava, vivia. Minha vida era impulso, era o momento em que ela existia, agora. Quase sem passado e ignorando o futuro, eu via e ouvia o hoje. E por isso amava. Pois o amor é o HOJE. O amor não é antes nem depois, é já. ------------------- 9 de dezembro outra vez e ontem, na escola onde trabalho, meninos e meninas de 15 anos jogaram volei na quadra. Esta geração é muito diferente da minha, a interconectividade joga sobre eles, coitados, a consciência de SER e ESTAR todo o tempo. O sol de uma dia lindo é obstruído por mensagens, notícias, fatos, fofocas, datas e modismos onipresentes. Eles não podem mais ser apenas um jovem corpo solto em um agora sem vínculos. São dirigidos. Mas..... vibram ao fazer um ponto, pulam e gritam e choram na despedida dos amigos. Me abraçam e agradecem por eu ter estado com eles. Me dão presentes. Se despedem. E jogam volei. ------------------ Nesta noite eu recebo a visita DELA, aqui em casa. E olhando o corpo dela eu perco a consciência de onde estou, quem sou e para onde vou. A beleza cheia de curvas daquele corpo, a volúpia tentadora, me deixam como o menino que amava Aninha sem saber o que fazer. E pouco se importando com isso. Hoje quando a toco é tocar o cartão de Natal de 1980. Ouvir sua voz é escutar a voz do Carioca. E sentir sua presença é saber que o menino está vivo, em mim. ----------------- A vida é muito mais alegre que pensamos.