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EDGARD ALLAN POE

Quando li a lista, longa, imensa, dos livros mais importantes da história, estranhei muito não haver uma só referência à Edgard Allan Poe. Percebi mais tarde, que toda crítica inglesa ou americana o ignora completamente. Os poetas também não o citam. Poe só aparece como referência entre letristas do rock pedantes. Por que? ------------------ A explicação que todos dão, é que Poe ao ser traduzido para o francês se tornou melhor. O tradutor era tão bom que deu outra vida, outro ritmo, outra ressonância ao autor. Releio, ou tento reler Poe mais uma vez, e mais uma vez não gosto do que leio. ------------------ Poe antecipou uma porção de gente. Escreveu contos policiais indutivos antes de Conan Doyle e muito antes de Agatha Christie. Falou de ciência e de futurologia antes de Wells e de Verne. Seus contos góticos não antecipam nada, a literatura de horror existia desde fins do século XVIII, e na verdade Hoffmann é bem maior que Poe. -------------- Mas aquilo que ele escreve... é tão chato! ----------------- Vejo nele o típico autor que tem uma ambição maior que seu talento, ou pior, ele vê imagens maravilhosas mas não consegue as transmitir no papel. Tudo em Poe parece uma vitrine bem executada, o que vemos de primeira olhada promete ser ótimo, mas o produto nunca atinge a expectativa. Bloom fala que Poe escreve mal, e mesmo em tradução isso é um fato. As descrições, muito longas, são enfadonhas, os personagens sempre são os mesmos tipos, os diálogos engessados em convenções e pior que tudo, ele vulgariza o romantismo da segunda onda, o romantismo gótico. Ao ler certos trechos de Shelley ou de Novalis, ainda percebemos o espírito demoníaco palpitando neles, em Poe o que percebemos é um autor exaltado tentando parecer um gênio. ------------------------ Poe é um adolescente, o tempo todo, e mesmo O Corvo, um bom poema, é obra de adolescente, parece muito a adoração masturbatória do próprio sofrimento, modo adolescente de sentir uma dor. Edgard Allan Poe continua popular porque hoje é uma grife. O jovem gótico compra seu livro, em versão chique ilustrada, porque já ouviu falar dele. Mas não o lê. Eu sei porque eu vejo isso todo dia. ---------------- Então fecho o volume e o guardo na estante. Fique aí Poe. Ganhe pó. E continue sendo o autor que todos conhecem mas que quase ninguém lê. Como Dickens. Como Balzac.------------------------- PS: antes que achem besteira, Jane Austen, Oscar Wilde, Tolstoi, Dostoievski, Whitman, só para citar alguns, continuam a ser lidos. Não é um problema com a literatura do tempo de Poe, é um problema de certos autores que perderam sua capacidade de falar ao leitor deste tempo. Dickens, um autor maravilhoso, parece piegas hoje, Balzac, um estilo genial, parece enfadonho, e Poe, bem, ele é muito detalhista para nosso leitor teen e muito teen para um leitor sério. Fica viva a grife. E uma grife de "autor maldito" que bebia muito e sofria demais sempre ajuda.

O PARAÍSO PERDIDO - JOHN MILTON

Para a cultura de língua inglesa, Milton é tão central como Dante ou Cervantes. Para nós, latinos, não. Talvez isso se deva ao fato dele ser um puritano, inimigo dos católicos. Talvez seja a velha rivalidade cultural entre França e Inglaterra. De todo modo, após alguns anos de busca, eu encontrei um volume digno da obra. Uma edição dos anos 60, gigantesca e ilustrada. -------------- Milton imaginou a obra como modo de glorificar Deus e a revolução inglesa. E sem querer nos deu a primeira obra a dar ao MAL uma cara humana. Satã é o heroi da obra prima de Milton. -------------- Satã é um anjo, um dos favoritos de Deus. Ele cai por ousar ambicionar o poder divino. Satã diz nesta obra a frase mestra do mundo moderno: "PREFIRO SER UM DEUS NO INFERNO QUE UM SERVO NO PARAÍSO". Há nesta frase o germe de Baudelaire, Maiakovski, Rimbaud, Wilde, Wagner e de toda a arte moderna. Até o drogadozinho da esquina advoga essa filosofia. John Milton a criou. E seu intento era exatamente o contrário. --------------- Harol Bloom diz que Milton se apaixonou por Satã durante a escrita do poema. É bem crível. 80% da obra tem Satã como centro. É esta também uma das primeiras vezes em que o mal parece muito mais INTERESSANTE que o bem. Shakespeare fez isso antes. Dante fez do Inferno algo bem mais forte que o Paraíso. Mas foi Milton quem deu ao mal o tipo de caráter que vemos até hoje na arte mais popular. O Coringa, o Duende Verde e Loki são herdeiros desse Satã. ------------------- Mas o que faz desse anjo algo mais interessante que o próprio Criador? Sua humanidade. Deus é Tudo e nós somos incapazes de imaginar o que seja isso. Satã pode voar, é imortal, e tem poderes assombrosos, mas ele tem VÍCIOS humanos. Ele tem ódio. Ele tem crueldade. Ele é obssessivo. Ele tenta se consolar no centro do Inferno. Em graus diversos, todos nós sabemos o que significa tudo isso. -------------- A crítica marxista gosta de dizer que John Milton deu ao mundo o poema do capitalismo. Que Satã é o grande capitalista transformando o mundo me inferno. Um heroi do mal. Marxistas erram muito e este foi um de seus mais lamentáveis erros. Satã diz textualemte que: " Prefiro ser Rei entre os condenados que um anjo entre os anjos". É uma frase perfeita para Lenine ou Staline. Na verdade Satã advoga a tática de toda revolução ( ele é o molde de todo revolucionário ), pois ele diz: " Entrarei sorrateiramente na mente dos homens e farei deles meus comparsas ". -------------- Se Milton viesse à Terra agora ele pensaria estar no mundo de Satã. Tudo o que o anjo caído desejava é costume neste nosso velho mundo. Quem ler esta obra em 2021 terá o gosto amargo de perceber que ele venceu. ------------- Não, não estou sendo carola ou puritano. Nosso mundo é o da dualidade. Somos o anjo caído e o anjo que luta por não cair. Mas veja bem: anjo caído. Quem caiu está perdido lá embaixo. Milton sabia onde vivíamos. O mundo da matéria é um mundo que se decompõe. Que fede. A inveja, o medo e o ódio nos dominam muito mais que a generosidade, a coragem e o amor desinteressado. ------------------ Ninguém mais lê este livro.

PETRONIO - SATYRICON ... eles eram como nós?

Aos 15 anos, nos anos 70, eu li a obra de Petronio, escrita no tempo de Nero, começo da grande crise do imperio de Roma. Na época fiquei confuso. Me pareceu uma mistura estranha de pornografia e texto fragmentário. Relendo agora o que mais me espanta é constatar a profunda mudança que aconteceu nesse bicho chamado Homem. ----------------- O livro fala das aventuras de um jovem. Ele e seus amigos. Basicamente o que eles fazem todo o tempo é tentar comer sem ser comido. Nos dois sentidos da coisa. Há várias cenas chocantes e talvez a mais nojenta seja a que envolve uma menina de 7 anos. Sim, 7 anos. Meninos de 10 são os petiscos ( estou citando o que Petronio escreve ), jovens de 16 os "amiguinhos". Mulheres são percebidas como objetos para o casamento e seres perigosos. Petronio não diz, mas percebemos que o sexo entre homem e mulher é bem mais complicado. Não há muito mais a se falar. Um banquete absurdo, onde se vomita para se poder comer mais, vários estupros masculinos, casas que não possuem portas, vida privada não há. Mas não sobre sexo que desejo falar. É sobre alma. ------------------ Se voce, como eu, demorou para ler os clássicos da antiguidade, teve a mesma sensação estranha que eu ao os encontrar. Lendo Homero, ou Sêneca, Platão, Cícero, Hesíodo, voce pode admirar a beleza da linguagem, a altivez do propósito, o pensamento lógico, mas voce se incomoda com algo....O que seria? Em Satyricon percebemos o que é: Eles não se olham. ------------------------------ Temos vários séculos, hoje, de autores que passam páginas e páginas se analisando. Ser autor é praticamente ser um espelho voltado a si mesmo. Em Petronio, como em todos os outros antigos, inexiste a vida interior. Eles agem. E param para pensar em como agir. Sua moral é a do estado e só do estado. Os deuses também são ação. Eles intervém. Fazem coisas. Viver era obedecer à lei e agir para sobreviver. A vida das ideias ou do espírito era como se fosse ao lado, e não dentro. O homem não olhava para dentro de si. Ele olhava ao redor. ---------- Na USP aprendi que Santo Agostinho, por volta de 500 dc, começa nosso longo processo de interiorização. A presença do divino não se encontra mais numa árvore ou no sol, mas sim dentro de nós. Para encontrar a verdade é necessário penetrar dentro de sua alma. E ela mora no coração. Nunca iremos entender a diferença imensa que isso fez. Mas temos textos comos os de Petronio. Eles nos mostram a imensa diferença entre nós e eles. ---------------------- Pois mesmo que hoje exista um Sade ou um Hitler, bandos de estupradores pedófilos ou de masoquistas escravos, sabemos que eles fazem seus crimes sabendo serem tais atos crimes. Fazem a ofensa, e PENSAM nisso. Mesmo que não sintam a culpa, racionalizam o ato infame. Não é, e nunca mais será natural. E por mais que tentem crer que o mundo pagão era "melhor", terão sempre de lutar para manter sua crença, pois suas mentes e suas almas são do pós cristianismo. Não se apagam 15 séculos. ---------- Harold Bloom gostava de falar que foi Shakespeare quem criou nosso hábito de se analisar. Mas sabemos que foi o filósofo africano, Agostinho. Tentando achar Deus dentro de si, Agostinho sem querer nos inventou. Ah.....o livro de Petronio não é bom. Sobrevive apenas por ser antigo.

O GATO PRETO e TOBY DAMMIT, EDGARD ALLAN POE

Primeiro uma observação: o livro que li tem uma bio de Poe. Sua vida só se tornou trágica nos últimos dois anos. Me parece que ele é mais um caso de escritor que teve seu sofrimento bastante aumentado. Poe publicou por toda a vida, mudou de cidade várias vezes, casou, se apaixonou na viuvez. Mas vamos aos dois contos. ------------------------- Como escrevi no texto abaixo, a América do Norte nasce tendo em vista satisfazer seu povo, isso de dando através de um ideal de liberdade e de oportunidades nunca vistos antes neste planeta. Poe escrevia não para os literatos ou para se tornar eterno, ele escrevia para ganhar dinheiro e esse dinheiro viria não de algum mecenas ou do estado, ele viria do leitor. Ele logo percebeu que o horror vendia. O Gato Preto é um apelativo conto de crueldade temperado com medo e danação. É bom? Ele atinge seu objetivo. Já Toby é bem melhor. Tem ironia e tem gore em seu final. Poe solta a imaginação. Entretém. ------------------- Harold Bloom cometeu muitos erros e um dos maiores foi desprezar Poe. Para ele, Allan Poe era ruim, um escritor pobre que devia sua fama à propaganda dos franceses ( um Jerry Lewis do século XIX ). Erraste Bloom. Poe é e foi um visionário. Ele percebeu, por intuição, que o conto policial e o de horror seriam o estilo que alimentaria não só editoras mas também o cinema que décadas depois surgiria. --------------- Não é pouca coisa.

HAROLD BLOOM E WOODY ALLEN, A MORTE MORRIDA E A MORTE EM VIDA.

   Na antiguidade grega quem ia contra o senso comum era condenado ao ostracismo. Tipo de morte em vida, o cidadão grego era expulso da cidade e seu nome era esquecido. Nada mudou. Apenas o senso comum flui em ondas de acordo com a maré da década. Oscar Wilde foi perseguido por deixar ser exposto seu caso com Bosie, Ezra Pound por defender Mussolini. Hoje, divididos que somos em pequenas tribos virtuais, somos perseguidos pela tribo X enquanto a tribo Y nos adora. No mundo da arte, digamos que seja a tribo W, há um libertarismo limitado. Voce pode ser gay. Voce pode ser comunista. Voce pode ter uma religião oriental. Mas por favor, não venha defender a civilização ocidental branca hetero do século XX. Voce será exorcizado.
 Woody Allen, como todo homem criativo, é uma alma complicada. Não tenho certeza de nada do que ele faz entre 4 paredes, mas sei que tipo de arte ele fez. E sei qual o alvo de seu humor. Ele sempre defendeu a mulher liberal, democrata, pós feminismo. Sempre amou o intelectual da universidade, o cara culto e neurótico. Em seus filmes não há o menor traço de ranço racista, de machismo ou de violência. O que ele nos dá é um mundo civilizado. Talvez, para os tempos de hoje, civilizado demais.
 Se ele seduziu sua enteada, pouco me importa. Me importaria se houvesse qualquer sinal de estupro ou de dor. Não é o caso. Eles se casaram e parece que viveram bem por vários anos. O que não é o caso da ex, Mia Farrow. Mas também não posso falar de Mia. Tudo que sei é que ela nada produz em arte e só foi grande ao lado de Woody Allen.
 As pessoas não se contentam mais em absorver arte e fruir cultura. Elas querem saber tudo. E acham, como diria Paulo Francis, "de forma Jeca", que a vida pessoal do outro é podre e a delas mesmas é "democrática". Meryl Streep se tornou uma ditadora "do bem", e o Oscar é hoje um ridículo "clube dos diversos que são todos iguais". Woody Allen é perseguido por ter sido simplificado. Ele é visto por esses míopes coloridos, como apenas um "macho abusivo". Então posso dizer que Oscar Wilde era somente uma bicha engraçada, Henry James um frustrado esnobe e Paul Gauguin um pedófilo colonialista.
  Não há personalidade grande sem grandes "pecados". O artista do bem é um banana. Todos têm alguma tara, todos são egoístas, todos são esquisitos. Inclusive os artistas negros, mulheres, do terceiro mundo.
  Em 1920 Fatty Arbuckle era o comediante mais famoso do mundo. Mais que Chaplin ou Keaton, ele era o cara. Aqui no Brasil ele era conhecido como Chico Boia. Acusado de estupro, por uma menor, ele foi a tribunal, condenado, e morreu pobre e esquecido. No auge dos dvds, seus filmes nunca foram reavaliados. Nesse caso concordo. Ele foi um criminoso julgado e condenado. Fez um ato de violência real. Repugnante. Não foi condenado por não fazer parte do senso comum ou por falar algo que foi contra o esperado óbvio. O caso é diferente. É penal.
  O futuro esquecerá o homem Woody Allen e apreciará o liberalismo humanista de filmes como Manhattan e Annie Hall. Acontecerá com ele o que ocorre com TS Eliot ou Nabokov: a arte deles é tão boa, que por mais que os juízes do bem gritem, eles não podem ser esquecidos.
  Harold Bloom foi um dos primeiros a alertar o mundo sobre a ditadura do politicamente correto. Ele já em 1989, dizia que se dava mais valor a uma pintora mexicana tetraplégica por ela ser mulher e doente, e não por pintar melhor. Que Sylvia Plath era um mito por ser esposa de um suposto machista egoísta, Ted Hughes, e não por ser melhor poeta que o marido ( Ted Hughes é bem melhor ). Havia e há até o delírio de se achar que a força criativa era Zelda Scott e não Scott Fitzgerald ( qualquer bobo sabe que Zelda prejudicou a escrita de Scott ). Bloom teve a coragem de dizer o óbvio: que se julgue a obra pelo que ela é concretamente e não pela alma inocente ou não de quem a construiu. Nelson Rodrigues estaria esquecido se fosse americano. E aqui? Já está?
  Dante está sendo esquecido por ser apenas um macho europeu, além do que católico, e há idiotas dizendo seriamente que Shakespeare era mestiço, gay e fumava maconha. ( Juro que li isso ). Será que Cervantes era um asteca perdido na Espanha?
  Recentemente uma revista inglesa publicou os 50 poetas mais importantes da língua inglesa. Esqueceram William Blake. John Donne. E injustificadamente, John Keats ( ??? ) e John Milton ( !!!!! )...em compensação havia uma enorme quantidade de mulheres negras "oprimidas"...Elas são boas poetas? Não posso julgar pois não as li. São mais relevantes que os quatro homens citados? Deixo que voce pense sobre isso. A boa nova é que choveram cartas defendendo John Keats.
  Bloom morreu velho e fora de moda. Woody Allen está vivo e fora de questão. E eu não ligo pra isso. A arte é bem mais forte que o tempo. Ela vencerá.

LONGINO

   Ninguém sabe se Longino realmente existiu. O que se sabe é que o autor desses textos viveu no século I. E que seus escritos são incrivelmente modernos. Longino comenta autores do passado e explica o que seria o belo e o sublime. Schiller, por exemplo, falou das mesmas coisas 16 séculos mais tarde. E Schiller parece hoje muito mais velho.
  Não falarei aqui sobre suas opiniões a cerca de Hesíodo ou de Homero. Destaco esta sua ideia:
  Para ele, o que Não importa na vida " é tudo aquilo que ao abrirmos mão recebemos elogios ou o despeito dos mais fracos"; por exemplo, se um homem rico abre mão de sua fortuna em prol de uma vida simples, será esse homem chamado de nobre, de alma livre, de desapegado. O mesmo se um homem desprezar a fama, a liderança, o sexo ou o vinho. Mas JAMAIS será elogiado um homem que desprezar a justiça, o amor, a amizade sincera ou a honra. É esse tipo de valor, que não pode ser perdido, jogado fora ou desvalorizado por pessoas de valor, que dão sentido à vida.
  Em outro assunto, bem diferente desse, Longino fala que a beleza é um valor do corpo. Que o belo, valor importante, é um assunto do corpo, dos sentidos, da pele, do gosto, e que é ao corpo que ele fala. Mas o sublime, bem mais forte, é um valor da alma, porque o sublime não é belo ou útil, não é agradável ou confiável, antes, ele nos aterroriza, nos seduz e nos faz "deixar este mundo, perder o eu e ascender ao cosmos".
  A beleza reafirma e nos deixa em conforto neste mundo. O sublime nos arranca do aqui e agora e nos conduz a um outro universo. O homem, um ser com uma mente infinita, é ele mesmo, ele pleno, quando em contato com o sublime.
  Por fim, quero dizer que Longino antecipa a crítica moderna em 2000 anos, ao dizer que um autor não olha a vida e se inspira. Diz que todo autor tem em vista outro autor. Que um escritor conhece a vida pela lente de outro escritor. E que escrever é escrever para esse autor-rival-guia.
  Grandes autores escrevem para grandes autores. Pensam todo o tempo naquilo que Platão ou Ésquilo pensariam sobre sua obra. Isso é Harold Bloom no ano 80 DC. Incrível.

UM APETITE PELA POESIA- FRANK KERMODE

   Numa aula uspiana a professora ataca aquilo que ela chama de ""cânone criado pela burguesia"". É a teoria criada nos anos 80 pelos americanos liberais. Ou seja, Cervantes, Dante ou Goethe não são clássicos por serem os melhores, antes por serem escritores de nações ricas. Eles são meros europeus, machos e brancos e o que eles escreveram só pode ser relevante para quem é branco, homem e europeu rico. Pode? Eu conheço essa teoria desde minhas leituras de Harold Bloom, que as combatia, em 1993. Destruir o cânone, diz neste livro Frank Kermode, é sempre obra de críticos que não gostam de ler, que têm preguiça e são insensíveis a arte da escrita. E noto que minha professora passa duas horas falando de sociologia, marxismo, psicologia e nada fala sobre um só autor. 
   Isso começou, segundo Kermode, quando as humanas passaram a perder relevância perante as biológicas e matemáticas. O impulso foi então o de transformar poesia e prosa em ciência e para isso se aproximou o estudo da literatura de ciências humanistas consideradas mais ""científicas"". Ou seja, sociologia, história, psicologia. Uma grande ilusão. Essas disciplinas nada possuem de científicas pelo simples fato de não poderem ser conferidas em medidas ou em eficiência perante a repetição. Perdeu-se o dom de analisar a literatura de dentro, com arte e filosofia, e jamais se conseguiu transformar o estudo de uma obra em ciência. Um fato é que um bando de pessoas que nada têm de cientistas, e menos ainda de literatos, se apropriou da crítica e da sala de aula na esperança de ter uma carreira respeitável, científica. Ovidio, Chaucer ou Racine passaram a ser analisados naquilo que possuem de mensurável, ou seja, no fato de serem homens, brancos e europeus. Aff...
   Wallace Stevens, Eliot e Empson merecem belos textos desse eminente professor e crítico americano. Um belo livro que me livrou do ranço de uma aula desastrosa.
   E perguntei para a professora: Ok. Que se jogue Shakespeare no lixo. E que se coloque no lugar uma multidão de autores indianos, árabes, africanos, ciganos e judeus. O que muda? Se perde o parâmetro, tudo se torna relativo, cada um na sua, cada um criando seu cânone. Eu gosto disso, mas esse mundo, que já é dominante a uns 30 anos, faz da literatura algo de mais futil e fácil, transforma o ato da leitura em simples diversão ou passatempo. 
  

A ILUSTRE CASA DE RAMIRES- EÇA DE QUEIRÓS. O ACHAMENTO DA RAIZ.

   Portugal é uma tribo. Se voce quer entender o país deve ter isso em mente. O modo de pensar é o do clã e da tribo. Tudo é baseado em sentimento, naquilo que se vê e não no que se deveria ver. Portugal até tenta ser moderno. Crescer, pensar em termos de futuro, crer na produção sem fim, ser mais agressivo, competir. Mas não consegue e não quer. Os valores da tribo ainda são fortes. Ele crê no insubstancial. Preserva o costume. Sente. 
   Hans Magnus Enzensberger diz que num mundo mais humano Portugal seria protagonista. A nação se guia pelo coração e nunca pelo cérebro. Este livro de Eça, mais uma obra-prima desse gênio imenso, mostra isso com uma facilidade e uma fluidez que só o talento pode. Gonçalo, o nobre fidalgo do livro, membro de uma familia de mais de 1000 anos, não consegue ser altivo, orgulhoso, intocável como seu sangue pediria. Ele exita sempre. Lhe falta decisão, sangue frio, cérebro. Desce do cavalo para ajudar pobres, deixa-se dominar pelos empregados, chora com crianças doentes. E ama com paixão seus nobres antepassados, os cavaleiros em suas guerras medievais. Sonha com esse mundo de nobreza. Sofre com a vida moderna. Não tem lugar.
   Northop Frye dizia que existiam romances e estórias romanescas. O romance se veria preso a veracidade. O autor é dominado pelos personagens. Já o romanesco dá curso a criatividade do autor. Os personagens são tipos arquetipicos, símbolos. O que pauta o livro é a potência criadora. Eça consegue unir os dois mundos aqui. Os personagens, muitos, são símbolos e são "de carne e osso"; são reais e possuem a leveza do romanesco. Harold Bloom diz que Eça une Balzac a Stevenson. Bingo!
   Não pense ser este um drama! Há humor em cada linha. Eça, já em sua fase madura, encontrava a alegria. Casado, fazia as pazes com sua raiz. Começava a aceitar Portugal em si. Deixava a França de lado. O livro, passado entre os fidalgos, tem a todo momento a súbita presença de gente simples, pobre, comum. São os Manueis, os Josés, as Marias, povo aparentemente duro, forte, bravo, mas que se desmancha em lágrimas a qualquer momento. 
   Críticos marxistas tendem a não querer perceber que um autor é muito melhor explicado por sua vida intima, por aquilo que ele amou e por aquilo que ele leu, que pelas convulsões sociais. Óbvio que uma guerra muda toda uma vida, mas muito do que um escritor faz se deve àquilo que ele leu. Sua luta contra as suas influências. Eça amava Balzac. Mas ele jamais poderia escrever como o francês. Pois em sua lista entrava também Stevenson, Stendhal e Flaubert. Essa mistura ajuntada a sua biografia individual, filho rejeitado não-natural de familia rica, fez dele o que seus livros mostram. Um homem que caminhou do ceticismo amargo do Primo Basilio à paz serena de A Cidade e as Serras. Ele reencontrou Portugal. Sua raiz.
   Este livro, saga de um fidalgo tradicional, suas trapalhadas, sua falta de racionalidade, é um monumento.

para ler após o texto daí de baixo !

Sim, sim, sim, sim ! Iris Murdoch está certa ! Nossa vida cotidiana não é real pois não é inteira. Quando meu pai se foi eu me sentí verdadeiro como raras vezes me sentí. Eu estava triste, perdido, aturdido, mas estava inteiro. Agora entendo : eu vivia um momento de Shakespeare, de Shelley, de Bronte.
Naqueles dias, sem nada planejar, sem nada antecipar, longe do trabalho e dos amigos, longe das máscaras, eu me atirei à literatura simbolista. Yeats, meu papa Yeats me consolou, e Proust, Wilde, Keats me fizeram companhia. Os símbolos foram invocados.
Iris Murdoch acertou. Pois em todos os meus momentos de alegria, alegria inesperada, súbita, irrefreável, eu fui um personagem de Cervantes, de Chaucer ou Rabelais. Então eu entendo que os gênios nos mostram aquilo que somos sem perceber, ou melhor, aquilo que tememos saber ser.
Não seria a neurose um conformismo ao irreal ? A vitória do medo ? A negação do daimon interior ?
Yeats estava e está certo. Há um diabozinho que nos espeta internamente. Que estraga tudo quando achamos estar em paz. Que espeta nossa bunda e nos faz andar. E esse monstrengo é aquilo que negamos, que não olhamos, que tememos. Todos o tem, mas o gênio tem mais. Alguns tem tanto que fogem e negam a luta. Desabam. Qual seria a força desse demonio em Da Vinci, em Beethoven, em Goethe ? Yeats diz que o amor faz parte desse demonio ( duende ). Que todo amor é um desafio que nos destrói. Que aquela/e que amamos é sempre um rival, um enigma, uma armadilha. Mas que ao aceitar a luta, crescemos, criamos, nos igualamos ao demonio.
Portanto jamais tema a dor. Quanto maior ela lhe aparecer, maior é sua força para a vencer.
Jamais chore o que se foi. O Nada é o que lhe cabe e, portanto, tudo lhe pertence. O que voce viveu e sentiu permanece para sempre em voce. E voltará. Outra e outra vez.
Basta viver.

se voce quer saber um pouco sobre livros, harold bloom é o cara

São mais de 800 páginas. Mas vale a pena. Gênio de Harold Bloom analisa os 100 autores de toda a história que ele considera mais influentes. Não darei a lista para voces. Mas posso dizer que algumas surpresas estão presentes. E outras lógicas e esperadas : Shakespeare é o maior e os únicos que se aproximam do autor inglês são Cervantes, Dante e Tolstoi. Com Joyce e Proust por perto.
O que vou fazer é citar alguns trechos que considero magistrais.
Freud não foi um grande cientista. Ele foi o maior cronista do século. O Montaigne de nosso tempo. Para a cultura alemã, ele é o continuador de Goethe, um tipo de gênio que tudo sabe, com poderes ilimitados. Um sábio.
Como foi Thomas Mann, o mais sábio dos autores do século.
Proust nos ensina que toda perda traz um ganho. É o mais artista dos escritores. Nos ensina a transcendencia do eu. Nenhum autor tem tantos momentos de epifania ( que eu, Tony, chamo de duende ) como Proust. Seu texto traz iluminação.
Samuel Beckett é um dos muito raros santos da literatura. ( Eu explico : lendo a biografia de Beckett vemos que ele fez tudo aquilo que chamamos de santidade. Ajudou colegas desafortunados, deu dicas valiosas, lutou em duas guerras sendo considerado um herói, e jamais se vangloriou. Enquanto Heminguay falava de sua participação- mentindo muito- Beckett nunca escreveu ou falou nada sobre seu heroísmo. Para ele, a guerra é algo cruel demais para ser divulgada ). Bloom conta que a literatura cessa de evoluir em Beckett. Após seu modernismo, o romance recua e volta a ser escrito como o era no século dezenove.
Emily Bronte, com O Morro Dos Ventos Uivantes atinge o auge do encantatório em livro.
Maravilhoso é o texto sobre Walter Pater. Pater foi um crítico inglês que formou gerações. Oscar Wilde deve muito à Pater. No texto de Bloom ficamos sabendo que além do esteticismo, Pater criou a " visão psicodélica do mundo " e então Bloom transcreve um texto de Walter Pater, de 1887 que antecipa uma viagem de lsd em décadas. Uma bela viagem de lsd. Pater dizia que nossa individualidade é uma ficção, que fazemos força para nos agarrar a esse centro individual; pois não fosse isso, iríamos nos dissolver em sensações. O artista deve " arder em chama preciosa ", ir até o fim de tudo. Pater cria portanto a religião dos ateus- a religião da arte, que tanto inflenciará além de Wilde, Yeats, Virginia Wolff, Joyce e Proust.
Para nossa alegria, Harold Bloom coloca Camões nas alturas. Para ele, Os Lusíadas são tão grandes como A Eneida e dignos de Homero ou Dante.
Ninguém escreveu tão bem sobre a paixão como Stendhal, e ninguém nos diverte tanto ao mostrar a dor de amar. Stendhal tem humor, tem fantasia, tem fogo. Ele é, com Tolstoi, o maior filósofo do amor e da luta entre os sexos.
Mark Twain cria, com Whitman e Henry James, a América, terra da ficção. Se Whitman é o maior poeta americano e James o melhor escritor, Twain é o maior humorista e o mais terrível satirista.
Faulkner é de longe o maior escritor da América depois de Henry James.
Fernando Pessoa foi mais que um gênio. Ao criar suas personas ( e como Whitman, ele apenas parece sincero. Todo grande poeta não é sincero ) Pessoa se torna 3 gênios. Pessoa descende diretamente de Shelley, é um poeta da alta imaginação, do alto romantismo. Álvaro de Campos é o mais genial dos heterônimos, exuberante. Sublime. Somente um país como Portugal poderia ter gerado um poeta como Pessoa. Pois Portugal é um heterônimo em sí. Uma relíquia de um império. Daí, Harold Bloom cita uma frase de Fernando Pessoa que eu não conhecia : " Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em literatura ? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito ? "
Ao falar de Iris Murdoch, Bloom cita outro texto, de Murdoch, que considero magistral/ belo e estranhamente assustador : " Shakespeare, Tolstoi, Homero, Dickens, James- mostram-nos o mundo verdadeiro, o nosso mundo, que, normalmente não enxergaríamos. Eles nos indicam aspectos da realidade que não seríamos capazes de ver sem sua ajuda. " Ou seja, o universo das peças de Shakespeare está dentro de nós. Todos temos a intensidade de Hamlet, o horror de Macbeth, a dor de Lear e o romantismo de Romeu. Mas somos incapazes de o perceber.
Há imensos elogios para Eça de Queirós e para Machado de Assis. Bloom chama Machado de gênio e diz ser ele o maior seguidor de Laurence Sterne e Swift- mas sendo sempre original em seu terrível humor. Eça é um fino artista, também cheio de humor, um dos grandes do século dezenove.
No texto sobre Yeats há outro dado que considero fantástico. ( E que mesmo adorando Yeats como eu adoro, não conhecia ). O gênio de uma pessoa é seu demônio. Ele o fustiga, desafia, exaspera. Assim como o amor, o demônio é o inimigo, a antítese, a imagem no espelho, anima. O amor, o gênio interno, existem como forças de destruição, mas que ao serem enfrentadas, tornam-se criação. O demônio alia-se ao amor " não apenas como opositor, é nosso outro eu. " Como Goethe e Shelley, ele acreditava no seu prórpio demônio. Ser que lhe propõe tarefas cada vez mais árduas. Cabe ao artista aceitar tal desafio, e mudar, mudar sempre, na eterna descoberta de sí mesmo.
Termino esta pequena exposição do livro de Harold Bloom ( há ainda maravilhosos textos sobre Italo Calvino, Goethe, Keats, Rimbaud... ), citando Yeats, o mais fantástico dos romanticos :
SÓ PODE CRIAR A MAIOR BELEZA IMAGINÁVEL QUEM SUPORTOU TODAS AS DORES IMAGINÁVEIS, POIS SOMENTE QUANDO VIMOS E PREVIMOS AQUILO QUE TEMEMOS, SEREMOS RECOMPENSADOS PELO DESLUMBRANTE, IMPREVISTO, ANDARILHOS DE ASAS NOS PÉS. NÃO PODERÍAMOS ENCONTRÁ-LO SE ELE NÃO FIZESSE PARTE, EM CERTO SENTIDO, DO NOSSO SER, DO NOSSO PRÓPRIO SER, MAS COMO ÁGUA COM FOGO, RUÍDO COM SILÊNCIO. VEREI AS TREVAS SE TORNAREM LUMINOSAS, O VAZIO SE TORNAR FECUNDO, QUANDO COMPREENDER QUE NADA TENHO, QUE OS SINEIROS DA TORRE APONTARAM UM SINO ITINERANTE AO HÍMEM DA ALMA.
A alma sempre há de ser virginal, pois o demônio ou gênio, é a ela antitético. O gênio de Yeats floresceu quando ele se deu conta de que nada tinha, que a solidão interna era sua benção. Dotados do frêmito do mar oeste/ Pensamentos e imagens comuns/ Dos quais criei meus gemidos/ Para depois beijar uma pedra...uma pedra...
E depois disso compus uma canção...