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MEU PAI ERA UM ESTOICO ( E EU ERA UM HEDONISTA ENVERGONHADO )
Se Portugal tivesse entrado na Segunda Guerra, meu pai teria idade para ter entrado nela em 1944. Ele foi pai aos 36 anos, ou seja, nossa diferença de idade era grande. O mundo onde meu pai viveu até os 30 anos não tinha TV, pouco rádio, sem telefone, quase sem jornais. Em 1950, aos 24 anos, ele pegou um navio e levou 10 dias de mar para chegar ao Brasil. Foi morar na Barra Funda, na época um lugar de fábricas e cortiços. Trabalhou com um primo, bar, prosperou e um dia se casou, em 1961. No ano seguinte eu nasci. No mundo que cresci, um baby boomer, já havia TV, muito rádio. Gosto de lembrar que nasci no ano em que os Beatles lançaram seu primeiro disco, Bob Dylan idem, ano do primeiro James Bond e da primeira Pantera Cor de Rosa. Psicose e Lawrence da Arabia eram os grandes filmes. Foi o ano de lançamento dos Flintstones. E os Rolling Stones faziam shows. No meu mundo a vida hedonista já dava as cartas. A ideia era: seja feliz, seja jovem, consuma sua juventude, viva intensamente. O mundo era vendido como shopping center, lugar das maravilhas, uma alegria ter 20 anos e poder estar vivo. --------------- Mas meu pai não era assim. Sua filosofia era radicalmente contra tudo isso. Na verdade nem era questão de ser contra, meu pai ignorava esse mundo. Ele era um estoico, e o mundo do estoicismo era o mundo de 99% das pessoas de sua geração. Não havia em meu pai nenhum traço da ideia de que o mundo era uma festa, ou de que todos nós tinhamos o direito de ser feliz. Sua filosofia era a de que nós dormimos e comemos e entre essas duas atividades, as mais importantes, nos distraímos com besteiras futeis da mente. Não havia como eu aceitar uma visão de vida tão antiga, daí nossas brigas eternas. Para meu pai, a vida era uma luta sem fim e sem trégua, felicidade era uma abstração vã e contentamento era sim uma ideia possível. Entenda: Felicidade está ligado à completa ausência de dúvida ou trsiteza, contentamento se liga ao repouso satisfeito. Meu pai não tinha neuroses visíveis, sua vida era simples, e apesar de ver o mundo como luta, ele era contente. Comida, sono e uma cerveja eram o que lhe bastava. Felicidade? Isso não existe. ---------------------- Ele estava certo e vejo isso pelo fato, simples, inquestionável, de que em casa ele foi o único "não ansioso". Ele não tinha esse sonho de felicidade, essa auto cobrança de alegria, ele não vivia a obrigação de ser jovem para sempre. Meu pai foi um senhor aos 40 anos, um senhor respeitável aos 50, um velho aos 60. Apesar de sempre aparentar menos idade do que tinha, isso para ele era indiferente. Seu contentamento era outro. Estoico sem o saber, crescido dentro do estoicismo, ele intuia que tudo era caminho para a morte e que a única coisa que contava era viver dentro dessa certeza. Tudo morre e nada dura, portanto a felicidade é impossível. Daí a ansiedade, pois se obrigar a ser feliz é uma luta perdida. Não há felicidade possível dentro de um corpo que morre a cada dia. ------------------- Triste ele? Nem um pouco. Entenda: ele não foi educado para ser estoico, não lhe impuseram isso. Ele era como seu pai, seu avô, seu bisavô, não havia ruptura alguma. A vida é isso e pronto, não se vai contra um fato tão óbvio. Apaixonado por filmes de faroeste, ele percebia naqueles cowboys a filosofia estoica colocada em termos claros: um homem solitário em briga eterna contra seu meio. Um cowboy não quer ser feliz, ele quer se safar ou resolver um conflito. E após vencer não alcança a felicidade. O cowboy fica contente e parte para a estrada. Só. ----------------- Ele também amava Sinatra, um estoico que vendia sonhos de felicidade. --------------- Minha tentativa de ser hedonista me levou ao vazio deseperado. O Paraíso não existe na Terra e ser um amante da alegria juvenil nos leva à burrice parva da busca sem fim. Ansiedade e uma decepção imensa: Me venderam a vida como festa, e ela é só isso?????? --------------------- Hoje eu entendo meu pai. E o entendi na hora certa.
SÊNECA
Primeiro que fique claro: a filosofia estóica só se parece com o cristianismo em superfície. Cristo diz que a salvação está em Deus, Sêneca diz que a salvação reside em nós mesmos. O cristianismo, como toda religião, almeja a anulação do ego, o filósofo romano pede que mergulhemos em nós mesmos. ------------------------------------------------------------- Releio Sêneca em momento difícil de minha vida. Por motivos diversos, talvez tenha de me separar das minhas coisas. E no cerne do pensamento de Sêneca, existe a certeza de que as coisas nos escravizam e portanto nos fazem infelizes. Para ele, a receita da felicidade pode se resumir numa frase: Não se apegue. Pois a tristeza nasce do medo de perder. Não se apegue inclusive às pessoas, aos lugares, à própria vida. Tudo que voce possui de fato é voce-mesmo e é isso que te basta. A felicidade é conviver com esse eu-mesmo, enriquecer seu eu do único modo possível: pelo saber, pelo aumento de seus conhecimentos, por experiências. A infelicidade não é medida por aquilo que voce não tem, mas sim por aquilo que voce teme perder. Quem nada tem a perder é feliz. Não há infelicidade maior que o horror à perda. -------------------------- Aquele que teme perder teme a vida. Pois a vida é tempo que passa e tempo significa perda. No correr dos anos ele perde saúde, perde vitalidade, perde amigos que morrem, perde amigos que o traem, perde coisas que se desfazem, perde dinheiro que é gasto, perde sonhos, e por fim, perde a própria vida. Já quem não teme perder, quem nada tem a perder, nada perde. O tempo se torna ganho de experiência, o futuro se faz uma curiosidade, o dinheiro só existe para garantir a subsistência, os amigos passam como etapas da vida, os lugares mudam e são aceitos como fumaça. Quem se apega luta contra o tempo que tudo desfaz e tudo rouba. O desapego é entender que a única coisa que não muda e com que voce pode contar é voce mesmo. -------------------- Sêneca deveria ser obrigatório aos alunos de 16 anos.
SUMARÉ, SÊNECA E VOLTAIRE
Do meu bairro eu podia ver os altos do Sumaré. A antena da Tupi ( ou seria da Cultura? ) que mandava para minha casa a misteriosa imagem da TV. Eu achava que dentro do aparelho moravam pequenos homens, e que nas válvulas se condensava o cenário. Era maravilhoso ver o técnico arrumar a televisão.
Às vezes eu ia ao Sumaré. Velhinhas cruzavam a rua. Nas janelas de suas casas, velhinhas olhavam a rua. E fazia sempre frio. Vento. Garoa. A gente ia na igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde fui batizado. Sim, fui batizado e ainda acho, institivamente, um absurdo uma criança civilizada não ser batizada. Batismo é entrar na civilidade. Na Minha civilização.
O bairro continua a ser um conjunto de ladeiras. E a ter suas pequenas velhinhas cruzando a rua. O ar tem muito de folhas verdes e de sombra. E há um silêncio que traz calma e também memória. Ao contrário do Morumbi que morreu ou do Itaim que se travestiu, o Sumaré continua vivo. Vento no alto do morro e a vista da cidade longe.
Andando sinto a mão de minha mãe pegar a minha enquanto atravesso a rua. E a de meu pai me dando saudade. Eu briguei muito com ele. Eu briguei muito com todos aqueles que amei. Ainda brigarei mais. Fotografo as velhas casas. Eu ligo pra elas. Elas estão aqui pra vida.
Sêneca disse que a vida não tem valor. Que a vida é um caminho sem valor em si. Que ao viver criamos seu valor, bom ou ruim. E que a vida só vale se for plena. Ela dura aquilo que vivemos. Viver não é uma benção e não é uma maldição. Depende. Certos bairros são vivos por terem duração. São diferentes e históricos. Existem como testemunhos. Para mim.
Sêneca é um dos mais claros espíritos que o mundo viu. E eu continuo a andar. Uma feira. O cheiro dos legumes e das frutas. Cachorros me cheiram. Eles sempre sabem que sou um deles. Uma escola. Vozes de adolescentes. Eu sei que ainda serei sempre um deles. Como eles me percebem?
A sombra some e eu sinto uma nova verdade. Sumaré ainda está aqui. Bom de andar. bom de tomar café e bom de olhar. Detalhes em detalhes: uma rachadura, uma flor, um enfeite no jardim. Casas com jardim. Um absurdo uma casa sem jardim. Casa sem jardim não é casa. Civilidade necessita de jardim. Como falava Voltaire, cultivemos nosso jardim.
Estou cansado do romantismo. Chega de originalidades! Chega de novidades! Quero o bem feito, o hábil, o saber fazer. O prazer daquilo que é bonito. Chega de romantismos!
Clássico Sumaré. Sem grandes emoções. Correto.
Uma velhinha cruza a rua.
Às vezes eu ia ao Sumaré. Velhinhas cruzavam a rua. Nas janelas de suas casas, velhinhas olhavam a rua. E fazia sempre frio. Vento. Garoa. A gente ia na igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde fui batizado. Sim, fui batizado e ainda acho, institivamente, um absurdo uma criança civilizada não ser batizada. Batismo é entrar na civilidade. Na Minha civilização.
O bairro continua a ser um conjunto de ladeiras. E a ter suas pequenas velhinhas cruzando a rua. O ar tem muito de folhas verdes e de sombra. E há um silêncio que traz calma e também memória. Ao contrário do Morumbi que morreu ou do Itaim que se travestiu, o Sumaré continua vivo. Vento no alto do morro e a vista da cidade longe.
Andando sinto a mão de minha mãe pegar a minha enquanto atravesso a rua. E a de meu pai me dando saudade. Eu briguei muito com ele. Eu briguei muito com todos aqueles que amei. Ainda brigarei mais. Fotografo as velhas casas. Eu ligo pra elas. Elas estão aqui pra vida.
Sêneca disse que a vida não tem valor. Que a vida é um caminho sem valor em si. Que ao viver criamos seu valor, bom ou ruim. E que a vida só vale se for plena. Ela dura aquilo que vivemos. Viver não é uma benção e não é uma maldição. Depende. Certos bairros são vivos por terem duração. São diferentes e históricos. Existem como testemunhos. Para mim.
Sêneca é um dos mais claros espíritos que o mundo viu. E eu continuo a andar. Uma feira. O cheiro dos legumes e das frutas. Cachorros me cheiram. Eles sempre sabem que sou um deles. Uma escola. Vozes de adolescentes. Eu sei que ainda serei sempre um deles. Como eles me percebem?
A sombra some e eu sinto uma nova verdade. Sumaré ainda está aqui. Bom de andar. bom de tomar café e bom de olhar. Detalhes em detalhes: uma rachadura, uma flor, um enfeite no jardim. Casas com jardim. Um absurdo uma casa sem jardim. Casa sem jardim não é casa. Civilidade necessita de jardim. Como falava Voltaire, cultivemos nosso jardim.
Estou cansado do romantismo. Chega de originalidades! Chega de novidades! Quero o bem feito, o hábil, o saber fazer. O prazer daquilo que é bonito. Chega de romantismos!
Clássico Sumaré. Sem grandes emoções. Correto.
Uma velhinha cruza a rua.
SENECA
Seneca tentou educar o mais cruel dos imperadores de Roma. Não pode. E perseguido, foi exilado e depois obrigado a cometer o suicidio. Hoje, 2000 anos após sua passagem pela Europa, ler Seneca é ainda de extrema utilidade.
Ele não é um filósofo, pois não cria um sistema. Não é um poeta ou um satirista. Então o que ele é? Um educador. Seneca nos ensina a viver. Com habilidade e muita arte, nos mostra aquilo que importa, mais que isso, faz de nós homens muito mais fortes. Nele não há uma preocupação moral, o que existe é uma preocupação com o valor das coisas e da vida. A pergunta é: viver bem é viver como? Seneca discute o que vale a vida, e dentro da vida, o que é a morte, a fama e o dinheiro. Nos mostra quão tolas são nossas preocupações, mostra a precariedade da vida, a tolice de todo apego, nos coloca na beira do abismo, mas jamais nos dá desespero.
Dizer que Montaigne e Shakespeare adoravam Seneca mostra seu valor. Roma em seu tempo foi o exemplo supremo daquilo que entendemos por O Império. Inglaterra em 1800 e EUA em 1950 são pálidas sombras de Roma. Detentora da civilização, berço do que até hoje nos é familiar, tempo de Juvenal, Marcial, Horácio e deste Seneca, mestre do homem realista, do ser que vive sob tensão e nunca perde a frieza. Criador do moderno herói, do herói distanciado, dono da verdade dura e desencantada, aquele que age sabendo que a ação é vã.
Tenho um amigo que descobriu Seneca via Humphrey Bogart. Esse meu amigo entendeu a ponte que os une, e essa ponte não é o cinismo, é o desencanto. Seneca soube ver o básico, valorizar o valor mínimo, dar peso ao que parecia sem peso. Foi um dos melhores cérebros que já viveram. Lê-lo nesta era de novo barbarismo, época que nega história, honra e hospitalidade, é de fundamental importancia. Mais que isso: é vital.
Ele não é um filósofo, pois não cria um sistema. Não é um poeta ou um satirista. Então o que ele é? Um educador. Seneca nos ensina a viver. Com habilidade e muita arte, nos mostra aquilo que importa, mais que isso, faz de nós homens muito mais fortes. Nele não há uma preocupação moral, o que existe é uma preocupação com o valor das coisas e da vida. A pergunta é: viver bem é viver como? Seneca discute o que vale a vida, e dentro da vida, o que é a morte, a fama e o dinheiro. Nos mostra quão tolas são nossas preocupações, mostra a precariedade da vida, a tolice de todo apego, nos coloca na beira do abismo, mas jamais nos dá desespero.
Dizer que Montaigne e Shakespeare adoravam Seneca mostra seu valor. Roma em seu tempo foi o exemplo supremo daquilo que entendemos por O Império. Inglaterra em 1800 e EUA em 1950 são pálidas sombras de Roma. Detentora da civilização, berço do que até hoje nos é familiar, tempo de Juvenal, Marcial, Horácio e deste Seneca, mestre do homem realista, do ser que vive sob tensão e nunca perde a frieza. Criador do moderno herói, do herói distanciado, dono da verdade dura e desencantada, aquele que age sabendo que a ação é vã.
Tenho um amigo que descobriu Seneca via Humphrey Bogart. Esse meu amigo entendeu a ponte que os une, e essa ponte não é o cinismo, é o desencanto. Seneca soube ver o básico, valorizar o valor mínimo, dar peso ao que parecia sem peso. Foi um dos melhores cérebros que já viveram. Lê-lo nesta era de novo barbarismo, época que nega história, honra e hospitalidade, é de fundamental importancia. Mais que isso: é vital.
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