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A EPIFANIA
...sol na janela e eu sou tomado pela solidão. Estou só na Terra, lendo. Como uma emoção que não nascem em mim, mas vem de fora, desce sobre. Me toma. ---------------- Um cavaleiro anda só pela mata e ele ama. Mas ela não é e não será dele, nunca. Não deve ser, não pode ser, não, sempre. Ela o olha e ele a olha mas o corpo não pode. As almas se tocam mas dizem adeus. ------------------ Então meu coração dispara e eu sinto que era eu. Um imenso sim nasce e me toma. Epifania. Eu vivo 900 anos depois o mesmo sentimento, mas não a mesma história. -------- Não, não sou uma alma que foi um cátaro. Mas sim, provável meus genes virem de árabes que entendiam a heresia. ( Todo movimento herege medieval nasceu de leituras orientais ). O centro da minha epifania foi a visão do rosto dela e a afirmação: Eis a mulher, eis o Amor. Alma com alma salvas em um Mundo feito pelo Mal e para o Mal. ------------------ Mas este é o século XXI baby e a carne manda neste planeta. Não há amor sem gozo sensual, não há vida sem biologia. Minha epifania morre em dois segundos. Se esvai. ---------------------- De onde vim?
A PERCEPÇÃO À PORTA
Só ao homem e a nenhum outro ser é dado olhar e ver. No olho do animal é visto o que lhe dita o desejo de viver: comida, proteção e preservação. O amor de seu cão por voce é a certeza de ser cuidado. Mas o homem....sim, eu adoro meus cães mas não faço parte dessa baboseira de achar que somos menos que eles. Nós somos os olhos do universo meu amigo. Se somos um grão de pó em meio ao infinito, é este grão que observa e olha e anota e idolatra o cosmos. E mais ninguém. ----------------------- Olhamos e vemos pois apreciamos. E mais que isso. Huxley fala nas Portas da Percepção do olhar às coisas como elas são e não como as conceituamos. Pare agora e olhe esta tela. Se esforce, vamos lá. Luz que é irradiada. Pequenos pontos pretos. Toques de azul e de laranja. Olhe e veja. Lembre como se faz isso: ------------------------- Na minha mesa de centro há um boneco de um marinheiro. Eu o possuo desde 2002, mas nunca o vejo. Paro e olho: blusa branca com listras azuis. Calça folgada. Uma barba branca. Olho mais. Sapatos marrons. Cinto largo, preto. Quepe. Nunca o vi. Ele está em minha casa faz 22 anos, mas eu bato o olho nele, mas nunca o vi. ------------------ Um volume da coleção Ler e Saber, 1967. Tenho-o desde criança. Eu ficava horas com um deles nas mãos. Uma cena de guerra: soldados medievais subindo pelas paredes de um castelo. Os elmos, as espadas. O cenário ao fundo. Como reaprender a olhar? Eu, aos 10 anos, entrava naquele desenho. Respirava o ar que os soldados inalavam. Um prazer inclassificável. --------------- Mais profundo, vamos mais ao fundo, vamos a linguagem do espírito. Lá: uma teia de aranha na janela do porão. Eu olho a janela e a teia como quem encontra o mundo inteiro em um só olhar. Tudo que desejo ver na minha vida inteira está naquela teia. A luz que passa por entre os fios é a luz do mundo todo. E o vidro sujo, quebrado, da janela, é a aula de poesia perfeita. Tudo está lá: todo onde e todo quando. Não há tempo naquele olhar, ele dura. Não há mais o que ver além de lá, pois a teia é infinita. ---------------- Eis o PARAÍSO. --------------- A eternidade não é pensar : isto é eterno, pois o pensar destroi a eternidade. Para pensar criamos um agora e portanto um antes e um depois. Para provar a eternidade basta olhar eternamente. Como explicar? Não explico, voce que se permita intuir o que falo. ----------------- Havia um pântano ao fim do campo. Garoava e pássaros, grandes, voavam gritando. Então eu olhei tudo aquilo como se tudo aquilo fosse uma coisa só. Não havia mato-pássaro-céu-eu, havia aquilo tudo. Continuo olhando desde então. Ou desde antes do então. ------------------ As Portas são a própria percepção.
NO ALTO
Eu nasci no alto. Vento e chuva. Ao longe eu podia ver as montanhas do Pico do Jaraguá. Era minha primeira visão de manhã. Da porta da cozinha eu o via. Às vezes claro e brilhante, o sol lhe dando um prateado de joia. Outras manhãs mal se podia ver, o vulto cinzento envolto em chuva ou em névoas de inverno. Mais bonito era quando o Pico surgia todo verde, risonho como uma criança brincando. Mas havia mais: da frente de casa eu via o Morumbi e à direita "a cidade". O Morumbi era uma terra de Tom Sawyer, um Missouri de sonho onde havia córregos com peixinhos, lagos com tartarugas e cobras escondidas em montes de capim alto. Cada rua era uma aventura a espreita. Naquela havia uma velha bruxa, na outra um bando de pedreiros bêbados. A rua onde se corria de kart, a outra onde o Circo montou praça, e a do Moacyr Franco e do Roberto Carlos. Excursões que eu fazia. Um bairro tão pacato, uma vida tão familiar, que na casa do meu primo se entrava pela piscina, pois ela não era cercada e da rua voce andava direto para a água. Era 1969 e na minha casa meus amigos entravam sem avisar, quando eu percebia o Valtinho já estava entocado no porão. -------------- Era alto e de lá eu ouvia radinhos de pilha no jogo do São Paulo, Gerson e Pedro Rocha. Ou, andando pelas ladeiras, eu ouvia os rádios das donas de casa, nas cozinhas, no Silvio Santos que falava com suas colegas de trabalho pelo telefone. Era alto, casas lá longe, casas brotando, aviões vindo distantes, urubus, helicópteros, um disco voador. Meu pai, homem criado nos montes, sempre disse: More no alto, nunca no baixo. No alto há largueza, há o que ver. No baixo voce sufoca. Abra a janela na baixada e veja outra janela ou uma rua sem graça. Abra a janela no alto e veja o céu, a Lua ou uma montanha distante. Cães que latem a quilômetros daqui. ------------------- De quando nasci até meus 36 anos eu sempre vivi no alto. Da minha segunda casa eu olhava o Alto de Pinheiros e Perdizes inteiros. O inverno chegva em cheio na cara da casa, como um tapa. O verão tinha um céu tão vasto como aquele da praia. ( Única baixada que vale é a do mar ). Pois agora eu voltei para a parte alta do bairro e a diferença é imensa. Agora eu gosto de ver e de andar, pois há o que ver e onde andar. A chuva vem caindo do céu e não cai entre paredes, cai lá de cima. Quando olho pela janela não vejo outra janela, vejo o vazio, e que saudade eu tinha do vazio! Não é uma montanha, mas é meu alto. E eu me sinto de volta. Amém.
BIG SUR BY HENRY MILER + ABBEY ROAD AND LET IT BLEED + UMA CONVERSA COM UM STALINISTA + RILKE
-------------------- Big Sur foi escrito por Miller nos anos 40 e não fala de sexo e nem de drogas bebida ou tudo aquilo que os leitores teen de Miller procuravam até os anos 90. Ele se mudou para o sul da cidade de San Francisco, o Big Sur, uma região selvagem e deserta então, e nos conta como é morar lá. O livro, muito bom, é um elogio da solidão, da percepção que nasce com a observação atenta da vida e das coisas. Não chega a ser ZEN, mas o que Miller diz me agrada porque eu vivi tudo aquilo que ele narra, então eu sei do que se trata. Mas não pense que seja um isolamento radical. Miller mora num barraco, feito por ele mesmo,com dois filhos, câes e tem vizinhos, vizinhos que moram longe, que também amam a solidão, mas que o encontram de vez em quando. Ele aprende a se virar, a construir uma fossa, um chuveiro, moveis, a viver sem eletricidade. Quanto aos vizinhos, o foco do livro é falar deles. ------------- São pessoas interessantes. Gente que largou tudo e foi viver por lá. Alguns são artistas, todos são diferentes, excêntricos talvez, mas jamais malucos. Miller descreve eles, relembra conversas e nos conta suas sensações ao observar o tempo, o mar, as montanhas, uma folha seca no chão. Quando não cai em seu emocionalismo, que eu odeio e por isso não leio os Trópicos, Miller escreve bem. Ele descreve, ele pensa, ele diz. Felizmente neste livro ele se perde em emoções adolescentes poucas vezes. É um adulto falando. E como tal ele conta coisas que interessam. ----------------- Miller já era cult então, por isso recebe visitas de fãs que o acham lá. Ele tenta fugir, mas não há como. Vão a procura do escritor louco cheio de sexo, encontram um quase monge solitário. Com os moradores do lugar ele é simpático. São conversas sobre o clima, sobre consertar uma porta, sobre a escrita, sobre pintura. São companheiros. ----------------- Quanto mais voce usa esse seu celular mais distante da ONDA DO MUNDO voce está. Explico. Miller crê que ninguém cria nada, que há um criador que cria através de nossa mente. Somos antenas. Para acessar essa criação é preciso alguma solidão, silêncio, quietude. Sacou? Uma geração, inclusive eu, que vive conectada não tem chance alguma de entrar nessa onda mental. Daí a pobreza vexatória de nossa arte hoje. São criações de carne e de nervos, não de alma. ------------------ Em 1977, ano em que provei a quase solidão total, ganhei os discos Let It Bleed e Abbey Road. Os escutei diariamente por meses. Como dizia Rilke, voce só entra numa obra de arte quando dorme-vive-é inteiramente dela. A somoridade cristalina de Abbey Road e sua mistura de tragicidade com alegria criativa marcaram minha alma para sempre. Assim como a rebelde sexualidade arrogante de Let It Bleed. Eu morei, sozinho, em cada sulco daquele vinil. Não foi uma experiência estética ou sensual, foi um degrau espiritual conquistado. Minha pergunta é: quem tem uma experiência musical assim no Spotify? -------------------- Rilke diz em certo momento que livros emprestados não lhe tocam como aqueles que são dele. Pois a leitura completa só se dá em livros que têm seu cheiro, suas marcas, convívio físico entre leitor e obra. É preciso que o livro faça parte de voce. -------------------- Reencontro um velho amigo. Mais um. Ele me leva à um café chique, caro, exagerado. Não nos víamos fazia mais de 10 anos, muita coisa para se dizer. Mas.... Ele começa me contando de uma amiga negra, modelo, que só consegue trabalho na Suiça, aqui não. " Porque o Brasil é racista não é?". Depois ele me fala de um amigo que transou com um travesti, e que por isso, está sofrendo a terrível culpa cristã. Então ele fala de sua esposa, que está ganhando muito menos do que merecia, porque o Brasil é machista. Nesse ponto já entendi que aquilo não era um reencontro, ele apenas queria saber meu "grau de direitismo", como eu reagia a esse quase interrogatório. Me corrigiu várias vezes, "Não diga favela, é ofensivo, não diga gay, é machismo..." Então ele pagou a conta, alta e injusta, e disse que eu sou O CARA. --------------------- Fiquei triste. Eu sabia que ele faz parte do mundo dos Liberais Chique, mas pra mim isso é só um rótulo, ele é muito mais. Ou era muito mais. ------------- Nada das conversas sobre livros e sol, nada de mulheres bonitas e saudades, nem uma frase sobre a alegria de se rever um amigo. Apenas os assuntos minúsculos, ensaiados, aprendidos em jornais podres. Ele me pareceu morto. Vazio. Um boneco que nada percebe. --------------- Minha namorada riu. Ela trabalha com moda e diz que uma negra estilosa arruma muito mais trabalho que uma loura bonita. Nascida na favela, ela ri ao dizer que todo mundo nela diz favela. Comunidade é coisa de classe média ou de negro na TV. ----------------------- Eu queria ter falado à esse amigo dos livros que li, das experiências que tive, das pessoas que conheci. Impossível. Eu me sentiria em prova todo o tempo, ele a espera da revelação de minha condição de extremista de direita. ------------------- Enquanto isso pouco me interessa se Henry Miller amava Lenine ou não. O que importa é o modo como ele vê um pássaro e o que ele fala sobre a cor. Posso dizer que ele, morto em 1980, é muito mais próximo de mim que esse amigo perdido. O tempo.... ele é relativo.
NÃO VOLTE, NUNCA
Não volta ao passado, pois o homem-menino que voce foi não será nunca mais. Então, creia, todo reencontro é um encontro e nunca um renascer. -------------- Percebo isso, de novo, ao comprar algumas revistas da Editora Ebal, publicações de 1968, 69... Alegria ao achar, alguma alegria ao comprar, e uma decepção imensa ao abrir e ler. Porque assim como o reencontro com um antigo amor não é um encontro com o sentimento antigo, voce mudou, ela mudou, o mundo mudou; abrir uma revista que voce tanto queria aos 12 anos de idade não satisfaz um homem que já passou por tanta coisa. ------------ Não se compra uma epifania. Eu já as tive e sei como acontecem. Elas te tocam sem serem chamadas, sem a espera, sem preparação. Andando numa rua da Vila Nova Comceição, cinco da tarde, de repente me sinto como eu era exatamente aos 6 anos de idade. Uma doçura triste, uma sensação de ter sentido aquilo antes, um tipo de reencontro comigo mesmo. Reencontro que não aconteceu com as revistas em quadrinho. ---------------- Porque eu queria a sensação de 1974, sete da manhã, indo à banca, segunda feira, ver as revistas que haviam acabado de chegar. O papel ainda quente, a tinta não havia secado direito, revistas recèm saídas da impressão. A banca colorida, uma folia para meus olhos, mais de vinte títulos, e eu com dinheiro para três. A escolha, e a volta para casa, ao frio da manhã, ansioso de alegria, o tesouro nas mãos. Nada disso pode ser repetido, as revistas agora estão secas, velhas, mortas. ---------------- Por isso eu sei, não visite a cidade onde voce viveu o paraíso em sua Lua de Mel. Não reencontre a primeira namorada. Não tente sentir de novo o sabor da torta que sua avó fazia. Serão decepções e ao voltar voce perde a lembrança perfeita. Deixe seus tesouros onde eles estão, dentro de voce. E procure viver uma emoção nova, nunca antes provada. Vá sempre adiante, levando em sua mente a lembrança perfeita e coletando novas memórias, novas sensações, novas ideias. Recordando voce pode, ocasionalmente, sentir parte daquilo que um dia foi vivo e fresco, mas tentando voltar, fisicamente, ao lugar, à coisa ou a pessoa, voce encontra apenas uma ruína, uma sombra, um lugar que parece caricatura daquilo que um dia foi. Nem tente. Vá em frente.
DEIXEI NO METRÔ TODA A OBRA DE MURILO MENDES
Deixei no metrô toda obra de Murilo Mendes. Que alguém dela faça bom uso. Pois eu reli o poeta e senti vergonha de um dia ter a ele amado. Que coisa repugnante ele foi !!!! ----------------- O que hoje me enoja nele? A doçura pegajosa, característica tão brasileira, povo do tapinha nas costas e do cafezinho e que em seguida propõe uma malandragem sem pudor algum. A Italia é igual, mas pelo menos eles tiveram a renascença e nós tivemos a Semana de 22, um encontro entre playboys que se viam como um tipo de Jean Cocteau dos trópicos. Oswald? Quem ele foi? Só aqui pra se levar um pândego sem talento a sério. Em país sem genialidade, até um cantor de bolero é chamado de gênio. ----------------------- Murilo é daqueles que comeram as babás e se orgulham de chorar de pena do povo. Hipocrisia em estado de doce de leite. Seu catolicismo é daquele tipo melado, tudo na religião é saudade e alívio. Murilo, medíocre maior, ama o mundo sem suspeitar que ele é seu mundo. Ama-se sem pudor algum. Sua obra, uma sopa de substantivos temperados por uma tonelada de adjetivos, tudo unido ao acaso, é profunda como um episódio de Friends. Eis a tal arte brasileira em sua nudez mais pelada: Questão de cozinha e nunca de intelecto. Murilo tem muito pouca inteligência. Suas descrições poéticas de cidades do mundo são dignas de um artista poeta de rua. Óbvias. Vazias. Enfeitadas. Um poeta carnavalesco. Muita cor e muito brilho a serviço do la ia la ia infinito. --------------------- E eu o amava, Por volta de 2002 eu dizia ser Um Grande Poeta. Por que? Por preguiça. Ler Murilo era como ouvir Dorival Caymmi. A gente é educado a achar aquilo genial, quando é na verdade somente "simpático". Caymmi era um cara legal, amável, boa gente. A gente escuta suas canções tentando ser também "como ele era". Doce. ------------------ Murilo nem mesmo era um cara simpático. Era apenas um deslumbrado. ---------------------- O rock brasileiro morreu ao dar tapinhas nas costas de todo mundo. Da dura retidão do rock n roll tentaram tirar dendê e pudim de leite. Pois aqui, seja sertanejo ou funk, tudo é sempre um cafezinho e uma rede de dormir. --------------- Uma verdade que parece piada: um diretor de escola teve como grande ideia para melhorar o ensino colocar redes penduradas nas árvores. Para o relaxamento dos alunos. Isso é o Brasil. --------------------- Isso aconteceu de fato. Numa escola em Pinheiros, bairro de SP. ---------------- " Mas meu amigo querido, vem em casa tomar um cafezinho e jogar fora um dedinho de prosa ". --------------------- Murilo Mendes me agradava porque eu amava a rede ao sol. Era objetivo de vida. ------------- Hoje não mais. Adeus poeta fake. Sua obra não vale um arroto de Eliot ou um pensamento bêbado de Baudelaire. Murilo, nada mais és que um funcionário público, ávido pela aposentadoria aos 50 anos de vida. E que para justificar sua vida vazia, arrisca uma loteria de palavras óbvias unidas a pensamentos infantis. Adieu. --------------------- PS: Mente viva. Eu mudo. Pour quoi pas?
MEU TEMPO E SEU TEMPO
======================================== O meu tempo não é o seu tempo. E isso é corriqueiro. ---------------- Luis Schiavon morreu nesta semana e disse uma frase interessante ( frase que sinto sempre ): " O pior de ficar velho é se despedir de seu mundo. Ele desaparece dia a dia ". Não, não pense que este texto é choroso. Não faço elegias ao meu tempo. Ele existe enquanto existo. E tenho orgulho em ser dele e não deste. Muita coisa se foi, mas eu estou aqui. Sujando e poluindo o mundo de hoje. ------------------ Fui criança nos anos 60 e o que morreu daquele tempo foi o espaço. Havia espaço, não apenas uma quantidade imensa de terrenos vazios e ruas desertas, veja os mapas de então, como espaço para planejar. O futuro parecia um campo sem muros. Otimismo baby, um imenso otimismo. Nas ruas, tomadas por crianças, seja aqui seja no Japão ou em NY, o que mais lembro são dos rádios, volume alto, muita música. Música alegre. Minha cidade era muito pobre, mas não se ligava muito pra isso, porque a vida era vivida na rua. Em comunidade. Muita festa: carnaval com lançaperfume, guerra de confetes, em cada rua crianças jogando água em quem passava. Páscoa com os Judas amarrados nos postes. Festas juninas com fogueiras nos quintais e balões aos céus. Muita pipa, pião, bola, corda pra pular. --------------- Minha melhor década foram os anos 70. Quadrinhos, as bancas tinham cerca de 50 títulos mensais de quadrinhos. Discos e revistas de mulher pelada. Foi uma década colorida, de rock e de surf na alma. Carros amarelos, laranja, verdes, camisas de estampados absurdos, calças rosa e roxa. Tudo era exagero e eu exageradamente só pensava em mulheres e rock. Longos cabelos, longas noites na rua, longas conversas, Amigos vinham em casa sem avisar, porque ninguém tinha telefone, então pra ver alguém tinha de ir lá e correr o risco de dar com a cara na porta. Normal. No fim da década veio a discoteque e a coisa mudou, agora a gente tinha de ser elegante. E saber dançar. Adorei. ------------------- Os anos 80 foram uma chuva de cocaína. Todo mundo cheirava, era barato. Década de se sair toda noite e voltar com o sol. Eu detestei essa década desbundada, onde se falava muito, onde todo mundo parecia histérico, onde nada fazia sentido nenhum. Foi minha década pesadelo mas também minha década de apaixonado, em love por livros, filmes, meninas, praias, festas. Tudo sem regra, tudo free. Foi o tempo mais livre, mais irresponsável, mais over que eu vivi. ------------------ Nos anos 90 começaram os primeiros anúncios do que somos hoje. Mas ainda era louco. Foi um tempo que tentou pegar o melhor dos anos 70 e juntar ao que havia de bom dos anos 80. Não rolou. Os anos 90 foi um replay dos anos 70 em modo cínico. De repente tudo que era dos anos 70 era cool: filmes, discos, cabelos, roupas, modismos, tudo feito em 1976 parecia cool em 1996. Mas a coisa era fake, 1996 tinha uma frieza e uma melancolia que não havia em 76. --------------------- Então veio 2000 e logo veio a queda das torres e o mundo virou uma merda. A propagação do medo fez de nós um bando de dedo duros sem trégua. É um mundo de pavor, de cuidados, de receios e de policiamento absoluto. Quem nasceu dentro desta paranoia não pode a perceber, isto é tudo que se conhece, mas para a minha geração a coisa é ridícula. ------------------- Meu mundo tinha Paulo Francis e Nelson Rodrigues. E eles seriam impossíveis hoje. Meu mundo tinha Von Karajan e George Solti. Eu vivi sabendo que Dali e Miró estavam vivos. E fui acostumado a esperar um livro novo de Saul Bellow, Norman Mailer, John Updike e Graham Greene. Eu conheci o cinema lendo sobre a estreia dos novos filmes de Bunuel, Truffaut, Kurosawa e Bergman. Quando comecei a ir ao cinema sozinho, aos 13 anos, ainda produziam filmes gente como Hitchcock, Elia Kazan, Vincente Minelli e pasmem!, George Cukor!!!! Kubrick e Fellini estavam cheios de energia. ----------------- Aqui no Brasil a nova música tinha Secos e Molhados, Alceu Valença e Fagner. O país crescia a 12% ao ano. Mais que Coreia do Sul ou Singapura. Tivemos nossa chance. Mais uma. 1988 mataria nossas chances. ------------------ Esse é meu mundo e todo dia eu vejo um pouco dele sumir. O primeiro sinal faz muito tempo, foi a morte de Lennon em 1980, um sinal de que minha infancia estava partindo. Depois foram centenas: desde a casa de minha ex que é demolida, a rua que fica cheia de prédios, o amigo que morre ou enlouquece. -------------------- Mas o fim de meu tempo não é exatamente a morte de um guru ou a destruição de uma memória física, a morte do meu mundo é muito mais cruel e muito mais sutil, é o fim de um modo de viver, de pensar, a morte de valores e de sonhos. É o fim do "numa boa", a extinção do "eu quero é mais", o silenciamento do "é proibido proibir", tudo isso trocado por coisas, para mim ridículas, atitudes que cobram de todos uma espécie de eterna guarda, eterna tensão contra "o inimigo", inimigo que não existe, que é um espantalho criado para unir os diferentes em pseudo igualdade. ----------------- No meu mundo ser diferente era ser melhor. Hoje são todos falsamente iguais. A diversidade dos que pensam o mesmo e são diversos apenas na fachada. ------------------------ Meu mundo ria, ria muito. Ria do careca, do gordo, do magro, do baixo, do alto, do preto, do portuga, do gringo, do paulista, do baiano, do gaúcho, de todo mundo. Rir era recomendado e se voce era alvo de riso, então que se crie uma piada melhor como resposta. O brasileiro era famoso por contar piada. Por rir. Se contava piada no ônibus lotado, na praia, no bar, na escola. E acima de tudo, se admirava a mulher.... Se amava a beleza, as curvas, o sorriso da mulher. Drummond, Vinicius, Bandeira, eles falavam da mulher que passa, do molejo, do bamboleio, da felicidade que era a presença da mulher. ------------------------- Preciso dizer que isso morreu? As feias tiveram sua vingança. --------------------- Irreconhecível mundo meu. Amado mundo meu. -------------------Penso então que ele não morreu. Na verdade ele passa, eternamente, em looping, bamboleando como aquela mulher indo à praia. ---------------- Não falo de mulher por acaso, a beleza e o elogio à beleza são hoje atitudes rebeldes. Nada parece mais revolucionário que amar a beleza e elogiar a mulher como ser mágico e encantado encantador. -------------------- Então encerro dizendo que elas ainda existem e ainda são lindas e que o eu de 13 anos, que as descobria e as amava como fossem elas mágicas, tem seu canto em meio a melodia da moça que passa ao caminho do mar. Pois a moça bonita e o mar, esses não mudam, não morrem e resistem. E eu, ainda aqui, e esperando viver pelo menos mais 20 anos, testemunho, alimento, insisto e faço presente o meu mundo vivo. E como diria o poeta maior: Bebete vão bora pois já tá na hora!
OS VISITANTES DA NOITE, O MAU E O AMOR, A POESIA EM FILME
Um letreiro anuncia: O Diabo mandou à Terra duas almas para semearem o desespero entre os homens. França, 1485. Vemos então duas pessoas à cavalo. Cruzam um campo, árido, e chegam à um castelo, branco. Primeiro acerto do filme, o castelo é novo em folha. Vários filmes medievais mostram castelos em ruínas, esquecendo que em 1300 ou 1400 eles seriam novos. A dupla é recebida numa festa que lá se realiza. Anne, jovem bela, irá se casar com o dono do castelo. Em meio ao banquete, o homem, Gilles, canta para Anne. Se instaura a poesia: a canção é belíssima e Anne se apaixona por Gilles. Ao mesmo tempo, o outro forasteiro, que na verdade é uma mulher, seduz o pai da noiva. A dupla, humanos que se venderam a Satã, instauram o desespero usando um falso amor. Cena exemplar: o tempo cessa, todos são congelados, para que a sedução se realize. O amor surge como solidão no tempo, mundo à parte, morte em vida. Mas algo ocorre: Gilles se apaixona de fato e o Diabo precisa intervir para vencer o amor. E mais não conto. ----------------- Raras vezes vi filme tão despudoradamente romântico. Prévert, o roteirista poeta, nos mergulha no amor. Anne e Gilles são torturados, tentados, tapeados, mas se agarram um no outro, em seu mundo além do mundo. Me pego chorando em duas cenas. O modo como Anne enfrenta o diabo é de cortar nosso coração. Paganismo: este mundo é do mal, o amor é de Deus. Deus enfrenta o Demônio a cada vez que um amor real nasce. Ao fim, o casal "perde", são transfomados em pedra. Mas, que surpresa! O Diabo ouve que o coração dos dois ainda bate! Irado, ele chicoteia as estátuas, mas o coração insiste, persiste, vence... Não há como resistir a este filme. --------------- Assiti esta obra prima em 1989, na velha TV Gazeta. Sábados de noite havia um festival de clássicos franceses. Foi lá que vi meus primeiros Renoir, Feyder, Clair...e Carné. A imagem dos filmes era péssima! Não restaurados, alguns eram quase impossíveis de assistir. Mas mesmo assim me apaixonei por este filme. Ele me pareceu mágico. Era um mundo onde o impossível acontecia de forma convincente, lógica, cotidiana. O sabor medieval era autêntico. Então fiquei 30 anos sem o ver! Revi em 2019 e mais uma vez ontem de noite. Não me decepciono! É uma obra prima de fato! ---------------------- Todos os atores são comoventes, mas Jules Berry como o Diabo é a melhor encarnação de satã que vi na vida. Charmoso, elegante e profundamente mau, ele é o oposto absoluto à Anne feita por Marie Déa, um primor de força natural, de beleza bondosa. Fiquei 30 anos com a voz de Gilles dizendo "Anne Anne" ecoando em minha mente! É um dos raros filmes que vive para sempre dentro de voce porque ele reflete algo que respira dentro do nosso inconsciente. A luta entre a sombra e a luz. Mais: o filme desperta uma absoluta vontade de amar, e vemos que o amor é uma solidão, pois ele nos isola do mundo e nos faz viver dentro dele. Ao mesmo tempo, é ele a única força capaz de vencer o medo, o mal e a morte. Anne e Gilles são vencedores porque amam. E nada mais tem a menor importância. ---------------- Pois se os Templários estavam certos, somente O Amor é Deus, e todo o resto é Mundo de Satã. No amor estamos vivos, fora dele somos almas em danação. O filme mostra essa filosofia, profunda, em falas e imagens que parecem vir de algum lugar muito antigo e muito "de sempre", parece remoto e ao mesmo tempo esteve sempre aqui. Jacques Prévert e Marcel Carné criam uma história simples, porém eterna. Não há fala fraca e não há cena inútil, cada fotograma é um lembrete: amor, amor, amor, amor... ------------- Penso em como uma alma cínica, deste século vagabundo, se sentirá vendo este filme. Incômodo? Sono? Raiva? Fuga? Quem hoje tem coragem? Que amor é este, o de 2023, que não enfrenta nada e na verdade obedece? Mergulhados em ruídos e em coisas, onde está a coragem de tecer um mundo solitário? Quem geme e grita o nome do amor em meio a tortura? Quem? --------------- Pois o amor é espírito, é gentil, alma que canta, olho que vê além. Ele vence quando nasce. Ele sobrevive quando morre. Obra de arte, este filme dignifica o cinema francês e dá estatuto de nobreza a uma arte tantas vezes vulgar. Voce sai do filme e deseja se apaixonar. Completamente. É um filme veneno.
PRATO DO DIA, UMA LEMBRANÇA DE COMO SE COMIA EM SÃO PAULO NOS ANOS 70.
Risoto à Catarina era uma montanha de arroz cozido com molho de tomate e frango desfiado. Misturava-se ervilha e sobre tudo se depositavam seis fatias de presunto frito. Era minha comida favorita no bar do meu pai. De uma fartura imensa, o sabor de ervilha com frango era irresistível. Prato comum nos botecos da cidade, ele foi abandonado quando os MacDonalds fizeram falir os bares de salão grande que serviam refeição. Os frequentadores eram os gerente de bancos e lojas, mas também os balconistas, compradores, todos lá se uniam. Havia mais: Bife à Cavalo era prato comum e conhecido em todo lugar, hoje pouco lembrado. Um contra filé de dois palmos com três ovos mal passados descansando sobre a carne. A gema, mole, escorregava sobre o filé e o arroz que descansava debaixo de tudo. Era bom demais. Um outro prato sempre pedido, que eu adorava, era o Bife de Fígado com fritas. Um gigantesco bife de fígado de boi, bem passado, com batatas fritas que eram temperadas pelo suco que saía do bife ao ser cortado. Postas de Cação ao Molho. O peixe cozido numa panela grande, mergulhado em tomates, cebolas, azeite, alho. Acompanhado por batatas cozidas. Rabada. O rabo do boi cozido longamente em panela de pressão, um cheiro rico, irresistível, prato para se comer com as mãos, fiapos enfiados entre os dentes, o molho grosso, gorduroso, capturado pelo pão fresco. Dobradinha, talvez fosse a comida que mais me dava prazer. Um caldo grosso, quente, fumegante, com feijão branco, bucho, temperos em quilos e quilos. Para quem nunca comeu, o bucho não tem gosto, ele apenas engrossa o caldo e tem uma textura deliciosa. É como morder uma carne que derrete ao ser tocada. A Feijoada era outra na época. Vinha com mais carne seca, grandes cubos desfiando no caldo fervente. O feijão vinha à parte, em sua cumbuca com paio e lombo. Orelha, focinho, rabo, pé de porco, as pessoas tinham fome, tinham estômago, comer era um prazer, o maior dos prazeres. A Lasanha tinha três andares: presunto, queijo e carne moída. O molho escorria a cada garfada e a massa era firme, pedaçuda. Meu pai nunca servia Virado a Paulista, então esse prato não faz parte de minha memória afetiva e gulotiva, mas o Espaguete com Almôndegas é inesquecível. Imensas bolas de carne nadando em tomate, o ato de cortar uma ao meio, ato que era recompensa pelo trabalho do dia, o vapor saindo lá de dentro, o sabor de carne suculenta, o espaguete grosso, escorregadio e o pão para limpar o prato no final. Proust tinha razão, nossa memória de cheiros e sabores é viva, surpreendente! O Filet de Pescada com Fritas, o mais barato dos pratos de então, hoje o peixe está caro, Pescada não se acha mais, frito, ele estalava nos dentes ao ser mordido. Mais barato? Não! O prato dos Office Boys era o Comercial, arroz e feijão, salada de alface e tomate, e um bife fininho. E barato era também o Picadinho, um cozido de carne com batatas e cebolas, quente, grosso, prato que agora, ao escrever, ainda me faz salivar. --------------- No balcão o copeiro deixava garrafas de caipirinha e batidas de frutas, cortesia da casa para abrir o apetite. Sobremesas, meu pai oferecia apenas três: Pudim de Leite, do qual ele tinha imenso orgulho. Era um pudim gigante que era cortado em fatias triangulares. Muito elogiado por ser pouco doce, era feito por ele mesmo, daí seu orgulho. Quem resistisse ao pudim teria salada de frutas ( mamão, laranja, maçã e banana, tudo em pedaços grandes, nada dos picadinhos minúsculos de hoje ), ou Quindim, esse não muito cotado, único prato não feito na cozinha do meu pai, era comprado numa doceira da rua ao lado. ---------------- Botecos da época, falo de 1973, 1978, vendiam pouco sanduíche. O grosso eram esses pratos, comidos no balcão ou em mesas para quatro. Coxinhas e empadinhas, feitas na hora, imensas de grandes, vendiam muito também, e quando se pedia sanduíche ele era misto quente, baurú ou americano. Não se falava em hamburger. O Americano era soberbo: pão de forma com queijo prato, presunto, ovo frito, alface, tomate e maionese. O queijo esticando ao ser mordido e o presunto dourado, bem passado. Pra beber? Eu mandava duas Fanta laranja, sempre a minha favorita, mas tinha 7UP, Gini, Pepsi, Taí, Ginger Ale. Meu pai nunca vendeu Tubaína não.... ------------------- Saudosista este post? Sim, é. Havia nessa comida uma pessoalidade, a marca da mão da cozinha, mesmo simples, mesmo modesta, uma riqueza de gosto e de cheiro, um conforto caseiro que não existe em nenhum fast food e está ausente em 90% dos bons restaurantes. Nos Fast food a comida não tem cheiro e possui pouco sabor. O atendimento é antipático, frio, apressado e voce mal percebe o que come e comeu. Já nos restaurantes, os ruins são apenas ruins, e os bons vendem uma "experiência gastronômica", ou seja, um ato que está mais ligado a um show que a uma refeição calorosa e confortante. -------------- Suado pelo trabalho, voce tirava o paletó e o apoiava no encosto da cadeira, respirava fundo e gritava no salão: Oh Charuto! Tem Dobradinha ainda? E o Charuto, apelido do Antonio Carlos, gritava, caneta enfiada atrás da orelha, " Tem só mais uma! Manda?" Voce estava em casa. E isso custava pouco e valia muito. Muito sabor.
SOBRE O LUGAR DO TEMPO E OS TEMPOS DE CADA LUGAR
Pessoas idiotas vivem em um tempo. Pessoas um pouco menos idiotas vivem em dois. Quantos tempos há? Como saber se meu cérebro foi adaptado para viver, vigilante, atento, desperto, em um tempo apenas, para poder assim o tomar para si? Pessoas um pouco menos idiotas sentem e intuem o que estou dizendo. Um grande sábio conseguirá viver em três ou quatro tempos concomitantemente. Entenda, nada do que falo é a verdade, pois toda verdade do mundo é a verdade de um tempo, de um mundo e de um modo. Apenas. ------------- O mundo de 2023 nos mostra isso de forma simplória, porém clara. Dentro das redes sociais há um tempo e logicamente, um local. Nesse mundo tudo é sempre um começo, um postar eterno que nada deixa de rastro ou de duração. Nesse mundo, sem solidez nenhuma, não há passado porque nada apodrece e não há futuro porque nada almeja a permanecer. É como uma explosão que explode sem pavio e sem assentamento de poeira. É como um orgasmo que é um jorro sem gozo, sem antes e sem paz. Mas.... se desligamos a máquina e vamos à janela há ali, explícito, um outro tempo. Muito mais nosso, particular. Ele anda ao modo do coração que bombeia e tem a certeza da morte final. Nele chove, nele faz frio, nele tudo enferruja e nasce. Todos vivem nesses dois tempos, sabendo, bem ou mal, que eles existem e não se misturam. ????? Sim, não se misturam e isso engana muita gente. Eles não se misturam. --------------- Mas eu vejo outros mundos quando olho nos olhos do meu cão. E no mundo do meu cão não corre o meu tempo, é um outro. Assim como recordo que meu tempo aos 7 anos de idade não era este onde escrevo isto. Como Bergson dizia, há tempos que duram e outros apenas passam. Então, se eu abrir meus olhos em 1974, por exemplo, o que me chocará não são as roupas ou os carros. Será o tempo que lá corre e dura. As pessoas se moverão de outro modo e mesmo o som de suas vozes ecoa em outra velocidade. A luz que incide na rua ilumina de modo alternativo e os cheiros que chegam ao meu nariz não são os daqui e agora. Porque 1974 foi e é outro feixe de tempo. ---------------- Cada ato humano no tempo tenta vencer o próprio tempo onde se insere. E quanto mais atrelado ao aqui e agora mais rápido e sem substância esse tempo irá ser. Desse modo, o tempo da notícia, da política, da diversão barata, é um tempo que se esvai como pó. Já a música tem um tempo que é dela e só dela. Três minutos que parecem duas horas ou duas horas que voam como um segundo. As ações mais sábias brincam com o tempo e o dominam. O olhar que mira além daqui se livra do agora. Mas há mais... --------------- Quando este mês se desfaz em chuva ele nos convida a entrar em seu tempo. Mas voce foge desse convite e irritado liga o video game. Imediatamente voce entra em conflito com o tempo e se deixa alienar. Esse o veneno da tecnologia: ela nos dá a chance de fugir do tempo por todo o....tempo. E o convite do momento, que é sempre um chamado harmônico, é perdido. A pessoa se fecha no tempo digital e se exila de qualquer outro. De certo modo ela morre para os tempos possíveis. ------------ Muitas vezes confundimos o lugar que amamos com o tempo que amamos. Exemplo. Eu amo a Serra do Mar. Não há lugar no planeta mais belo. E entendo que aquilo que mais amo na Serra é o modo como o tempo lá dura. O pássaro que ergue voo e passa no céu dura mais que qualquer pássaro aqui. Cada gota de chuva lá escorre mais viscosa que toda gota daqui. A voz falada é mais redonda e quica nos ouvidos e o odor da comida permanece no nariz. A melancolia do fim de tarde é uma sinfonia e nunca simples canção e o sol passa desfilando como um leão cheio de preguiça. Não me leve na brincadeira, estou falando sério, o tempo em cada lugar é o tempo daquele lugar. Assim como existe gente que nos dá, sem saber como e sem querer o fazer, seu tempo. Ela espalha o tempo dela ao redor e esse dom é recolhido por aquele que está desperto. Artistas, professores e padres deveriam ter sempre esse dom. São raros os que o possuem. ( Não confunda com gente lenta ou gente histérica. Estou falando da qualidade, do valor do tempo. Uma pessoa acelerada esvazia o tempo e o deixa anônimo; uma pessoa lenta e plácida pode fazer do tempo um peso inútil. Eu falo do ambiente, do estar dentro do tempo e nunca falo do simples e banal velocímetro ). ---------------------- Porque estar aqui é estar no tempo e portanto o tempo é um aqui, um lugar.
A RAIZ DA VIDA
Estou numa praça onde vejo gente passar. Alguns ainda usam máscara, a expressão de bicho amestrado na cara. Um pastor australiano corre atrás de uma bola. Pega-a e a traz de volta a seu amo. Se deita sobre a grama e paralisado espara por um novo lançamento da bola. Ele irá repetir isso pelo tempo que o amo assim desejar. Não, este não é um post sobre gente amestrada. É sobre eu e voce. -------------- Quantos anos, séculos, foram precisos para que se fixasse nesse cão o comportamento, automático, de olhar com atenção, aguardar, buscar, trazer, vigiar? Hoje ele faz tudo isso sem pensar e eu sei que fazendo esses atos ele se sente CONFORTÁVEL CONSIGO MESMO. Está gastando uma energia que habita dentro dele. Um desejo que faz parte dele mesmo. Para ser ele, inteiro, ele necessita vigiar-correr-buscar-reunir-guardar. Pois...... sentado sobre a grama eu observo esse cão. E as pessoas que passam. Estou só, em busca do silêncio em mim mesmo. Fecho os olhos e ouço: o vento nas folhas, vozes distantes, cães arfando. O sol queima meus ombros nús. Eu estou lá. Saibam: vivo faz já 60 anos e em todo esse tempo, estar sentado ao ar livre, debaixo do sol, pacientemente deixando o tempo passar como preguiça, é a coisa que mais fiz. Seja numa rua, no quintal, na praia, na escola, ficar parado, olhando o que se pode ver ao meu redor, nuvens indo e vindo, vento e mormaço, é o ato onde me sinto mais EM CASA. Sempre fui, desde que nasci, e sou, capaz de passar um dia inteiro na contemplação daquilo que para os outros é o nada e para mim é a vida. Preguiça? Talvez. ----------------- Ficar dentro de casa, debaixo de teto e entre paredes sempre foi para mim insuportável. Fico triste quando sou obrigado a ficar mais de 6 horas sem poder ir para fora. Pois....volto para casa, vindo da praça e vejo minha mãe. E o óbvio se revela: pastorear. Por centenas de anos meus antepassados viveram olhando as cabras a comer a relva ou a beber água. Eu os repito. O mato, o sol, o vento e eu ali, guardando. Sem saber eu pastoreio. Conduzo os bichos com meu cajado, protejo-os dos lobos, aguardo. Me deito e olho as nuvens e prevejo a chuva. Toda manhã, todo dia, o mesmo e outro. Fecho os olhos e os ouço balir, mastigar, chamar, os passos que se afastam, que voltam. Quantos séculos eles não viveram isso? Os seus talvez tenham sido caçadores, ou construtores, ou soldados, os meus foram pastores. Leite e queijo, peles e carne. Cão ao lado, andar por caminhos, levar para beber, ver parir, matar. --------------- No trabalho, 2022: crianças ao meu redor, eu as vigio, eu as guardo eu as conduzo. Sendo pastor não sou necessariamente feliz, mas estou confortável. Sou aquilo para o que fui treinado. Essa a raiz.
DA ALEGRIA
O sol. As ruas pareciam sorrir mas de fato elas brilhavam às 8 da manhã. Detrás dos balcões, das lojas pequenas, material de construção, botecos, uma única farmácia, roupas, comidas, os vendedores sorriam, solícitos. Carros corriam sobre o asfalto seco. Minha pele cheirava à banho, o cabelo ainda molhado, a camiseta solta deixava respirar. Eu amava e naquele tempo amar era uma felicidade, mesmo que a menina não soubesse quem eu era. Isso porque amor me fazia sentir vivo, dono da vida. Ele abria meus olhos, meu coração dançava e tinha planos. Na escola não haveria aulas, íamos apenas para ver as notas. Eu sabia já ter sido aprovado. Meus amigos estavam lá: Carioca, Tinho, Diógenes. O riso, a atenção, a companhia. Nós quatro explodíamos de hormônios. Quando nos avistávamos dávamos pulos, ríamos, gritávamos. Não pensávamos em fazer tipo, não havia medo de parecer bobo ou de ser "amigo demais", nada de tentar ser cool, a gente simplesmente sentia. E assim, eu amava aqueles caras como amava aquela manhã e como amava a Aninha. Tudo era amor, tudo era estar estando. --------------- Surgiu Aninha, sempre com Clara ao seu lado. O cabelo preso em um rabo de cavalo, franja, o corpo magro em seus 15 anos de idade. Assim que a vi meu coração pulou. Calor no rosto, respiração difícil, pernas bambas, pensamentos de alegria, suor nas mãos. Era amor como é: o mundo parecia ser perfeito porque ela era parte dele. Eu era feliz por saber que ela existia, então tudo fazia sentido. Ela tinha uma bola de volei nas mãos e logo foi jogar. Era a melhor jogadora da escola, era a capitã do time, eu era talvez o pior, odiava volei. Carioca jogava bem. Enquanto eles jogavam andei pela escola sem rumo, ainda feliz, com Tinho e Diogenes. Os outros estavam por lá: Persio, Flaminio, Renata, Nivaldo, Jorginho, Japa, Tamanduá, Giba, Fábio, Demétrios. A cantina do Mi, a sala da direção onde estava a Patricia, o sol cada vez mais forte. Fomos, após o fim do volei, à Faria Lima, correndo pela rua por todo o caminho, quatro moleques com rostos de sol da manhã. Dávamos tapas nos postes, arrancávamos folhas das árvores, atravessávamos o sinal bem devagar, só para irritar os motoristas. O mundo era nosso, a gente sabia disso. O fliperama já estava cheio, as luzes das máquinas na escuridão da sala barulhenta. Eu adorava o Space Invaders. Compramos fichas, o dia parecia leve como brisa. Depois, no Cal Center, Carioca comprou uma camiseta e mandou estampar ela. Coisa bem do Rio, blusa branca com estampa de praia. Toda cheia de brilho. Voltamos pra escola, agora já meia vazia. Passamos ao lado da rua de Aninha, a rua mais bonita do mundo todo. Bertoldi Bianchi. Diziam que uma menina chamada Bethânia gostava de mim, queria me beijar, mas eu não sabia o que fazer, ficava perdido, ela era bonita e tinha seios grandes, mas ela não era Aninha. Carioca ficava irritado porque ela era amiga da menina que ele gostava, uma loirinha bonita, quieta, Ligia. Ele beijou a Ligia, mas para mim, beijar era algo tão misterioso como a luz de uma estrela ou o voo de uma águia. Eu evitava Bethãnia. Mesmo em um mundo alegre existe um problema confuso. -------------------- Fomos almoçar no bar de meu pai, rua Cunha Gago. Lotado de clientes, peguei coxinhas para eles e sorvetes. Carioca, sempre lembrando sua cidade de origem, mergulhou o picolé de coco num copo de Fanta laranja. Açucar em grau máximo. Nós quatro falávamos das meninas, ansiosos pelas alegrias que iriam vir no ano seguinte. Nenhum deles sabia de Aninha, eu os escutava e não falava muito de mim, na verdade eu falava besteiras, minha capacidade de falar sem nada dizer era infinita. Na calçada gente com sacolas e pacotes, não é fantasia minha não, se comprava muito presente no Natal. Era pacote até para o entregador de contas de luz. -------------------- Um passeio pela loja Yaohan. Tinho, sempre metido à malandro, todo mundo que morava em Pinheiros era, roubou um pacote de peixe seco. Só percebemos na rua, quando ele mostrou o fruto do roubo cheio de orgulho. Voltamos à loja para roubar mais. Carioca pegou um saco de balas. Eu não consegui pegar nada, não por honestidade, por medo de ser pego. Já começava a anoitecer. O céu tinha tons de roxo e azul escuro. Uma melancolia surgiu, mas até mesmo a melancolia era feliz, porque ela era parte do estar vivo, do ser jovem e pronto para o que acontecesse. Essa melancolia tomou sentido no ponto de ônibus: era hora de me despedir de Carioca. Ele iria para casa, longe, em Quitaúna, o pai era tenente do exército, e no dia seguinta iria para o Rio, Madureira, ficar todo o verão no lugar onde nascera. Houve um súbito silêncio no ponto, nenhum dos quatro falava. Carioca falou então: Tu vai ver o Flamengo perder de novo? ------------ Ele era Botafogo, eu me tornara Flamengo. Tinha raiva de ser paulista. Então imitava o modo carioca de ser e de falar. Enganava bem. Vivia usando uma camisa do Flamengo e gente na rua, às vezes, perguntava se eu era do Rio. Por causa do meu sotaque. Um jovem camaleão. ------------------ O ônibus veio e se foi, levando nosso líder. Todo grupo de meninos tem seu líder, o cara que inventa o que fazer. O Tom Sawyer da turma. Carioca acenou da janela, rindo. Então Tinho falou uma besteira e Diogenes espirrou. Ele estava sempre espirrando. Fomos correndo de volta à Yaohan. Lá comprei o mais lindo cartão de Natal. Eles queriam saber para quem era. Não disse que era para Aninha. Paguei e o segurava nas mãos como se fosse um tesouro. Nos despedimos na calçada, promessas de nos vermos amanhã, promessas não cumpridas. No ônibus, voltando para casa, eu tinha plena consciência de estar vivendo feliz. Todos ao meu redor pareciam tipos interessantes, abertos, faladores, gente que fazia parte da minha alegria. Quando entrei na sala de casa, meus pais vendo TV, a felicidade foi tanta que eu quase chorei. Deitei sobre o colo de minha mãe e adormeci. Olhos fechados ouvindo as vozes dos meus pais. O sono me levou. ------------------- Hoje, mais de 40 anos passados, eu penso, infelizmente, que tanta alegria se devia ao simples fato de possuir um corpo jovem. Meus olhos enxergavam o brilho das ruas e meus músculos eram leves como pluma. E pensar isso, pensamento de velho, entristece. Porque trai aquele dia. E então eu lembro: Era feliz porque pouco pensava e não planejava, vivia. Minha vida era impulso, era o momento em que ela existia, agora. Quase sem passado e ignorando o futuro, eu via e ouvia o hoje. E por isso amava. Pois o amor é o HOJE. O amor não é antes nem depois, é já. ------------------- 9 de dezembro outra vez e ontem, na escola onde trabalho, meninos e meninas de 15 anos jogaram volei na quadra. Esta geração é muito diferente da minha, a interconectividade joga sobre eles, coitados, a consciência de SER e ESTAR todo o tempo. O sol de uma dia lindo é obstruído por mensagens, notícias, fatos, fofocas, datas e modismos onipresentes. Eles não podem mais ser apenas um jovem corpo solto em um agora sem vínculos. São dirigidos. Mas..... vibram ao fazer um ponto, pulam e gritam e choram na despedida dos amigos. Me abraçam e agradecem por eu ter estado com eles. Me dão presentes. Se despedem. E jogam volei. ------------------ Nesta noite eu recebo a visita DELA, aqui em casa. E olhando o corpo dela eu perco a consciência de onde estou, quem sou e para onde vou. A beleza cheia de curvas daquele corpo, a volúpia tentadora, me deixam como o menino que amava Aninha sem saber o que fazer. E pouco se importando com isso. Hoje quando a toco é tocar o cartão de Natal de 1980. Ouvir sua voz é escutar a voz do Carioca. E sentir sua presença é saber que o menino está vivo, em mim. ----------------- A vida é muito mais alegre que pensamos.
DYLAN THOMAS E A INFÂNCIA
O pai de Dylan Thomas era professor de literatura e lhe deu o nome de Dylan, nome então muito raro, como marca de sua nação, Gales. Dylan significa em galês "criança encantada". Com uma enorme biblioteca, o pai lia Shakespeare para o filho já aos 4 anos de idade. O vínculo entre os dois foi imenso e um ano após a morte do pai, Dylan morreu. Tinha 39 anos. Era 1953. ------------------------ Thomas foi daqueles poetas que se torna famoso muito cedo. Aos 18 já publicava e logo depois falava no rádio e escrevia roteiros de cinema. Sempre pobre, gastava muito e ganhava pouco, foi um alcoolatra radical. Ele e sua esposa eram capazes de beber 30 pint de cerveja sem cair. Nos anos 40 e 50 era Dylan Thomas o poeta mais famoso em língua inglesa. Nada político, havia crítico que o desvalorizava por isso, seus temas eram a morte, o sexo, a natureza, o ser e o não ser. Panteísta, ele via seu corpo como parte do universo, cosmos onde tudo estava ligado à tudo. Sua escrita tentava transmitir o inefável. É famosa sua declaração de que ele sempre complicava o poema. O leitor deveria ser sempre desafiado e a língua desmembrada. Tento ler Thomas desde 2008 e só agora encontro sua chave de entrada. -------------- Ler Dylan Thomas é ler uma criança. E isso é muito raro. O poeta galês, impregnado de Donne, Joyce, Milton, Keats, manteve sempre uma visão de criança da vida. Não infantil, de criança. Confuso com seu corpo, perdido entre sexo e Deus, fuga e luta, natureza e cidade, Thomas consegue fazer algo que me encanta: ele mostra o que seria a visão primeira sobre a vida. Daí a dificuldade em o ler: ele fala de coisas ANTES DA FALA. O que ele escreve é aquilo que uma alma vê e sente antes de aprender a falar e verbalizar. Para isso ele usa símbolos. Thomas mergulha na palavra e cava até a raiz. Procura encontrar o que se esconde em cada vocábulo. ------------ Era um trabalho árduo. Ele escrevia e reescrevia, apagava e editava, refazia. Nada de inspiração romântica, era trabalho físico. Esculpir o sentido. Lendo seus poemas eu vejo visões de uma criança sobre o mundo. Impressões sobre coisas desconhecidas, palavras a serem entendidas. Então: escrevendo poemas difíceis ele nos obriga a fazer o mesmo que fizemos quando eramos crianças: tentar entender o mundo que nos era dado. Desvendar o que era aquilo a nossa frente e o que fazer com aquilo que nos era dado. O fato de Dylan Thomas conseguir me fazer lembrar, por uma fração de segundo, o que fui e o que senti, faz dele um mestre.
A NATUREZA
Durante milhares de milhares de anos o homem olhou para a natureza sem a enxergar. Percebemos isso lendo qualquer texto mais antigo. Não se descreve a paisagem natural, o bosque ou a floresta, quando citados, são vistos como coisa humana. Cada árvore e cada rocha, rios e montanhas são deuses, portanto, humanos. Toda mata é apenas parte da sociedade humana, tem rosto, tem alma, tem caráter. O mesmo com estrelas, a lua e até mesmo a chuva. Tudo é gente, tudo é como nós mesmos somos. Isso começa a mudar lentamente na renascença e só toma forma que conhecemos no fim do século XVIII com os românticos. Apesar de ainda acharem que uma árvore é triste ou que a chuva chora, ou seja, ainda vêm na naturez um espelho do que sentem, já existe um olhar para fora. Pela primeira vez se tenta observar a floresta ou o mar com isenção, não vendo neles nada mais que aquilo que eles são: o exterior de nossa mente. Romances começam a descrever paisagens, páginas são gastas no simples prazer de se descrever uma chuva. Não subestime esse momento! Hoje esse movimento para fora continua a ocorrer e se antes víamos o homem em tudo que nos cerca, hoje não vemos o homem nem mesmo dentro do próprio homem. ------------- Wordsworth, que reeleio mais uma vez, é o poeta central desse momento. Explícitamente, sem simbolismo ou meio tom, ele afirma que a natureza deve ser olhada como ela é, sem os olhos dos livros e nem com o olhar da ciência. Deve-se largar livros e teorias e simplesmente ver. Isso em 1805, décadas antes de Thoreau ou Whitman. Estamos no tempo de Goethe e Beethoven, mundo em que ainda se via a natureza como algo do Demo ou Divino. --------------- Wordsworth usa a linguagem do camponês, pois diz ele que só quem é simples, de pouca cultura, consegue ainda usar a língua sem enfeites e símbolos inuteis. Ele valoriza também o sentimento da criança, é o primeiro poeta a fazer isso, antes dele ser poeta era ser hiper adulto, hiper civilizado, hiper culto. Para Wordsworth, tem a criança ainda a memória do outro mundo, do mundo melhor, e a aquisição de cultura faz com que ela esqueça tudo o que sabia. Wordsworth fala várias vezes da maravilha que era ver o mundo com o sentimento infantil, a vida que cores e sons tinham então. ( Hoje se sabe que a repetição nos embota, e é por isso que o azul ou o sol deixam de parecer tão mágicos, mas é uma bela teoria ). Muito antes que qualquer outro, Wordsworth associa a poesia com o manter a infância viva dentro de si. Fazer sobreviver o olhar virginal. -------------------- Não vou pedir para voce ler Wordsworth. Ninguém mais o lê. Poetas que pareciam populares a 30 anos, Pessoa, Vinicius, Baudelaire, Ginsberg, Whitman, hoje mal são citados nas escolas de letras. Se nem eles são lidos o que dizer de Wordsworth?
Uma pena, pois o exercício da leitura de poesia desenvolve nossa percepção e melhora nosso modo de pensar. Nos tornamos menos ansiosos e mais despertos, o que parece contraditório, mas é uma verdade. Bem....é isso aí.
VELHICE
Haverá quem saiba envelhecer hoje? Não me conte que foi sempre assim, que o mundo é o mesmo de sempre e que envelhecer sempre foi desgracioso. Pois eu acabo de escrever abaixo sobre um homem que soube envelhecer, eu sei que soube porque eu vi. E eu falo e digo que o rocknroll que tanto adoro e adorarei sempre, nos deu uma maldição terrível: nos roubou o dom de saber envelhecer. Porque nada é mais patético que ver Ozzy ou Steven ou Mick ou mesmo Paul e perceber que eles tentam e tentam e lutam e se negam na luta por permanecer rockers. E eu adoro todos eles e sempre adorarei. Não não estou dizendo que envelhecer bem seja usar um terno preto ou parar de fazer sexo ou dirigir um sóbrio Toyota. Eu, se pudesse, teria uma moto enorme e uso tatuagens e aneis e ouço e sempre vou ouvir rocknroll e rap e tudo mais. O que falo é sobre postura. Sobre admitir as dores as rugas as falhas as impotências as saudades a melancolia admitir o tempo que se foi. Falar a língua dos velhos. O que falo é sobre admitir que voce é o que voce é agora. Voce não é um futuro, voce não é um projeto, voce não pede desculpas porque voce é aquilo que voce é agora. Isso é voce, pronto, isso é ser responsável. Ser velho é ser pronto. Então envelhecer graciosamente é aceitar sua responsabilidade pela vida que voce viveu e voce vive. E ser firme em dizer: eu sei pois estive lá. E deixar de tentar agradar os jovens e deixar de tentar ser algo que não se é e deixar de tentar correr atrás e saber que voce tem pouco e tem muito. Não ser o velho cômico nem o velho jovial nem o velho sábio nem o velho frágil nem o velho ousado nem velho nenhum. Ser apenas o que voce é, um tempo vivido, um tempo ido, memórias e dores, doçuras e amargores, frustrações e uma coragem. Um homem velho que passa na rua e sente desejos e sente dores e está vivo mas não quer mais saber não quer mais ser não quer mais tentar ser jovem. Em paz com seus joelhos com seus ombros com sua próstata com seu humor com sua saudade. Olhando a morte olhando a sorte perdida olhando a vitória de estar aqui olhando a mulher que passa. Olhando o cara que ele foi. Haverá no futuro quem saiba envelhecer?
BERCEUSE- CHOPIN POR MAURIZIO POLLINI.
Pela cortina, atráves do tecido branco. Meio dia, sol. Uma abelha. Água em um copo. Vidro. Não, nada disso! Outro tempo: Matando aula, estou na rua. Sento no meio fio. O suor gruda nos meus cabelos ( Meus cabelos! Deus! Eu fui um adolescente de longos cabelos românticos! Vejo em fotos: eu era bonito... ). Continuo: Sentado no meio fio são três da tarde. Um sobrado ao lado, todo branco. O quarto, lá no alto. Tem uma cortina branca. Voa ao vento da tarde. Alguém lá dentro toca piano. Estranho! Não sei se era um disco. Não sei se era um pianista ou uma mulher. Mas era ela. Sempre foi. Então eu ouço. E o sinal do intervalo toca na escola, a minha, lá no fim da rua onde estou. Gritos de crianças abafam o piano. Me ergo e vou pra casa. Eu sei que ela está agora comendo seu lanche. Com sol nos cabelos. E as mãos, distraídas, passam pela boca que mastiga. Camisa branca. O tempo se foi e eu estou de volta à mesma escola. E aquele sobrado ainda existe. Mas não ela. O amor agora é outro. E a escola, aquela, apagou seu restro dentro de mim. ----------------- Ouvir esta música é tudo isto. E é mais ainda. Chopin era uma afirmação da alma diante da matéria. Sua música é uma prece. Arabescos. Cascatas de notas. Cristais. Cenas de Max Ophuls. Preciosos momentos. Pollini, um grande, está a altura da missão. A música é a mais abstrata das artes. Construção invísivel de inefabilidades impossíveis. E duram. A ferramenta é o tempo. ---------------- Postarei o viedo de um menino indiano. Seu sorriso é isto.
USUFRUA SUA VIDA
Tenho uma amiga, escritora, de direita, então voce não a conhece, que fez um belo texto sobre algo que muito a surpreende. A incapacidade das pessoas usufruirem uma experiência. Ela tem amigos que passaram por aventuras, viagens incríveis, conheceram pessoas fantásticas, mas que não tiraram nada do que viveram. Ela não está falando de aprendizado. Fala de simples narrativa, de ter o que contar, lembrar, descrever. Mais que falta de vocabulário, são pessoas cultas, que possuem leitura, o que ela precebe é a incapacidade de maravilhamento. A alma, ou coração, está morto. Ela diz que nunca houve tanta quantidade de maravilhas ao nosso alcance, mas estranhamente, nunca houve tantos zumbis no mundo. ------------ Falo à ela da minha experiência, tudo que escrevo neste espaço sempre é baseado em minha história pessoal, e lhe conto que meu ano mais rico em memórias, maravilhamentos, descobertas, foi aquele que aparenta ser o mais rotineiro e que sem dívida foi o mais solitário. Passei um ano, por razões que não cabe aqui dizer, sem amigos. Larguei a escola aos 15 anos e me distanciei dos amigos que tinha. Foi um ano em que minha rotina consistia em ler, ver TV, pouca, ler mais, ouvir música, ler. E dentro dessa vida, tão aparentemente banal, eu tiro os momentos mais mágicos, plenos, ricos, complexos, de toda minha existência. O que me faz crer que a pobreza atual se deve a ausência de solidão física, de tempo morto, de nada para fazer, de vazio espacial. De silêncio. Eu sei por experiência própria que a internet mata a alma. A telinha nos aliena de nós mesmos e nos torna um objeto que capta coisas e não as usufrui. É preciso vazio, vazio de tempo e de espaço para se absorver um livro, um filme, uma canção. É vital ter vazios para amar uma paisagem, a cor de uma manhã, o ar frio de uma noite. O aumento da velocidade diminui a apreciação. Comer com pressa é viver com pressa. -------------- O córrego que cruzei, numa estreita ponte de madeira, aos 10 anos, é uma lembrança muito mais rica que a primeira viagem à Paris. Porque cruzar aquela ponte foi um momento parado na vida, foi uma ação de total concentração, foi uma narrativa sem acessórios. Já a viagem foi uma ação entre várias, uma imagem em meio a centenas de outras imagens, uma corrida dentro do tempo que voa e se desfaz. Desse modo, o eu que cruza a ponte vive para sempre dentro de seu tempo particular, e o eu que desce do hotel em Paris faz parte da história do mundo, não da história dele. -------------- Acho que aí está o segredo. A vida do garoto de 15 anos que fui ERA DELE É SÓ DELE. A vida do cara de hoje, conectado no mundo 24 horas por dia, é a vida de todos, do planeta, do mundo. O que ele vê é aquilo que o mundo vê, portanto ele não pode e não sabe mais ter uma experiência só dele. Aos 15 eu lia meu livro, livro que eu pensava só eu ler, só eu ter, só eu ser como eu era. Hoje leio sabendo quentos mais estão lendo, quantos mais comentam, quantos mais estão comigo. O livro não é meu, é do mundo. A experiência não é minha, é geral. ---------------- Hoje é preciso uma força imensa para criar algo de único, particular, individual, só seu. Por isso a pobreza de experiências. Ver um disco voador no Vietnã não é mais uma coisa úncia e sagrada. É só mais um post sobre ovnis na net. Graças a Deus eu vivi meus 15 anos em 1977. Completamente isolado. Só. Com um Voltaire só meu. Um Truffaut que só eu conhecia. Um Roxy Music que cantava só para mim. Minha casa parecia ficar em uma rua sem vizinhos. Meu quarto era uma caverna secreta. Eu era o descobridor e inventor de uma vida, a minha. Foi um ano mágico. Porque foi e continua sendo parte de mim e só de mim. Dura. Vive. Respira e é pra sempre. E é assim.
KONSTANTINOS KAVÁFIS, POEMAS
Me desculpe José Paulo Paes, mas ao contrário do que voce diz, não há dois poetas mais diferentes que o grego e Pessoa. Voce, Paes, diz que ambos se parecem por serem os dois homossexuais, virem de países marítimos e usarem línguas pouco conhecidas, o grego e o português. Mas e daí? Leia o que escreveram e veja a diferença crucial: Kaváfis é sensual, saudável, hedonista, feliz. Tendo vivido na virada do século XIX para o XX, o grego publicou quase nada e morreu desconhecido ( sim, como Pessoa, quantos mais não o foram ), mas sem ressentimentos, Kaváfis celebra os encontros em camas de hoteis, a alegria dos membros bonitos, a juventude do desejo sem limites, a liberação do amor. Não há medo aqui. Não há tristeza. Vive nele a coragem. ----------- E por outro lado, ele celebra o passado grego, os herois, pouco se importando com o hoje e o agora. O que lhe seduz é o para sempre. Nascido na Alexandria sensual e sem vergonha, aquela descrita por Lawrence Durrell, Kávafis é delicioso e prazeroso. Mediterrâneo. Azeite e vinho no pão do sol.
POEMAS DE JACQUES PRÉVERT
Há um poema onde ele lamenta, sempre em seu modo leve e bem humorado, a destruição das florestas. Ironicamente ele diz que o papel das florestas é usado pelos jornais para divulgar a destruição das florestas. O tempo muda tudo: Prévert fala mal dos professores "que ensinam as crianças a obedecer". Escritos nos anos 30, nos anos de 1940, pelo comunista Prévert, seus poemas pregam aquilo que a direita prega em 2021: desobedeçam, não sigam seus professores, não creiam nos jornais, sigam aquilo que seu coração, e apenas seu coração, pede. Jacques Prévert, que foi também autor de alguns dos melhores roteiros do cinema francês, era comunista em um tempo em que ser comunista ainda soava honesto. Sua poesia é feita para o homem que ama e trabalha, para aquele que sofre mas não se deixa cair. -------------- Claro que Prévert zomba da igreja, zomba do patrão, zomba do pai de família, e essa zombaria deixa tudo datado. É aquele intelectualismo francês, necessário em 1920, primário cem anos mais tarde. Intelectualismo que por vaidade, por burrice, por rigidez, tanto artista latino, tanto pensador "original", ainda se apega para não ter de se auto analisar, se julgar, se revalorizar. -------------- Era o esquerdismo romântico de uma Paris que passava fome. O intelectual, solidário, se absolvia de sua inutilidade, nutrindo sentimentos fraternos pelo operário faminto. Não movia um dedo para lhes dar o pão, mas sofria com eles. Ou assim escrevia. Nunca saberemos o quanto de hipocrisia havia nessa postura. A do autor que comia ostras com Picasso e depois escrevia sobre a fome dos subúrbios. Enquanto isso os padres que ele odiava faziam sopas para as mães abandonadas e arrecadavam roupas para os que sentiam frio. Eu pergunto: Será que o texto irado era assim tão importante? ------------- Mas há a beleza da linguagem e essa não passa, não se faz demodée. E Prévert escreve bem, muito bem. Que sina não? Aquilo que parecia ser seu ponto mais irrelevante, a beleza da escrita, é o que faz dele legível em 2021, enquanto sua ideologia, aquilo que mais era elogiado em 1940, é hoje de uma pieguice óbvia e rasa, sem fim. Vale a pena ler? Quem sabe?
DYLAN THOMAS E O PROBLEMA DA TRADUÇÃO
Releio Dylan Thomas sem entender nada. Mas é agradável, as palavras soam bem. Ler Dylan em inglês já é dificil, em tradução, como li, é perder tempo. Mas é agradável. Quem traduziu foi Ivan Junqueira e traduziu bem. O problema, intransponível, é que Dylan amava as palavras e criava usando o som das palavras, a música do verbo. Ele não era um criador de imagens poéticos e sim de sons de poesia. Traduzir um poeta de imagens é bem mais possível, voce transfere o quadro para novas tintas. Mas quando a base criativa é o som de W ou de um KY...como fazer? É impossível. ------------- Dylan foi uma estrela em seu tempo. Nos anos 30 e 40 ele foi o poeta mais famoso do mundo. Tinha bela voz e fazia aparições no rádio por isso. Bebia às toneladas e por isso morreu aos 39. Seu pai foi poeta frustrado, professor de lingua, e por isso dirigiu o filho para as letras. O nome Dylan vem do misticismo celta: filho do mar. ------------- Dizem hoje que Dylan Thomas não vai sobreviver. Acho uma tolice falar isso. Se voce fala que um poeta está esquecido é porque ele não está. Como estará daqui a 50 anos? Quem sabe? ------------------ Dylan escrevia devagar. Como todo poeta que se baseia em palavras, ele corrigia muito. Lutava com a pedra-palavra. Esculpia. Amava Joyce. Lendo-o eu entendo o que está escrito, é simples entender que um barco singra, por exemplo...o que disse que não entendo é onde mora a poesia daquilo, onde está a entrada para a profundidade da mensagem, onde a genialidade do poeta. Ela mora na forma verbal e por ser tradução não mora mais, ficou no inglês. Em minha língua o barco que singra é apenas e sempre será apenas um barco que singra. ------------ Mas é agradável ver o barco singrar.
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