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Vivaldi Magnificat RV 610 in G minor Jordi Savall Le Concert des Nations

EU E MEUS FANTASMAS

Conviva bem com seus fantasmas, fale com eles. Não falo "fantasmas" no sentido bobo. Não são meus traumas ou feridas, falo de fantasmas mesmo. Todos nós os temos. Uma das tolices do século e negar sua verdade. Por medo ou preconceito contra o passado nós tentamos eliminar nossos fantasmas. Mas eles não se vão, eles não podem ir. Estão ao seu lado. O tempo todo. --------------- Nossos fantasmas são todos aqueles que nos construíram, e estou falando fisicamente. Somos a união de todos os que pisaram nesta terra antes de nós. Deixaram sua marca. Então olho a unha do meu dedo e vejo nela meu tataravô. E sei que esse fantasma está aqui. Assim como estarei para quem por mim estará depois. Quando como esta maçã sei que estou comendo a fruta que minha bisavó comeu. E ao mancar, levemente, estou andando o passo de meu tio avô. Eu amo o azul do modo amante daquele Moraes que viu um azul em 1790. E sou um bicho do mato como o foi um Cristo em terras de Bragança por volta de 1420. Meus lábios cantam como cantava o José Pires em Viseu, 1900. Me apaixono da maneira Maria do Céu Cristo, em Val-Prados, 1879. Eu e meus fantasmas formamos um mundinho dentro de um mundo. Eu e minha mãe, nesta casa, os alimentamos de atos e de sentimentos. ------------------ Escrevo isto, aqui, e quem escreve é o Manuel das Múrias, o Manel de 1820. Seu espírito está em meus genes e na minha alma, no meu sopro e no meu sangue. Eu escrevo com ele e por ele e ao mesmo tempo eu o ensino. Ouço Vivaldi e seu Magnificat, e assim eu faço um coral com todos eles, com as vozes de todos eles, corações deles. Ergo-me à eles, e eles descem até mim. São vários, mas eu sou único e com eles me acho. Música e escrita numa oração ao todo. --------------- Meus fantasmas e eu.

Vivaldi Lute Concerto in D Major RV93 I - Allegro

QUANDO A FANTASIA ERA A VERDADE

Perdemos a fantasia quando ficamos adultos. Se voce ainda a tem, parabéns. Se nunca a teve, lamento por voce. Dizem que artistas a preservam por toda a vida. Mentira! Artistas trabalham. Inventam, raramente fantasiam. Não confunda fantasiar com ser criativo. Fantasiar é negar o mundo que todos percebem e perceber ou querer viver em um outro universo. Aos 15 anos eu vivi o apogeu da minha fantasia. -------------- Era 1977 e eu abandonara a escola. Não tinha absolutamente nada para fazer o dia inteiro. Vaidoso, como todo adolescente é, criei uma ilusão de que eu tinha de ser uma espécie de gênio. Sim, não ria, isso é muito mais comum aos 15 anos do que voce pensa. Minha rotina era a da descoberta da genialidade. Acordava em meio a um frio glacial ( aquele ano teve um dos piores invernos da história ), e lia a Barsa. Em 1977 eu li a Barsa inteira. Ainda posso sentir a gripe que me acompanhou por todo o ano. O odor das páginas velhas. Minha cama cheia de cobertores e meu pijama de flanela. Depois disso eu ligava o rádio: Cultura FM. Música clássica por toda a tarde. Meu irmão ia à escola e minha mãe à ginástica. A casa era minha. E eu vivia a fantasia de ser um pobre gênio tuberculoso em 1877. Sim, 1877. Devo confessar: era uma delícia! -------------------- De madrugada eu lia Dickens, Bronte, Hardy, London, tudo à luz de um abajur com luz fraca. O vento batia na janela, a casa adormecida, e eu naquele universo de lama, névoa e cheiro de Vick Vaporub... Meu irmão ria de mim! Ele dizia que eu só conseguia ler se passasse Vick Vaporub no peito. -------------- Viver cem anos antes em 1977 era mais fácil que seria hoje. No Brasil de então a vida era mais lenta e essa fantasia não era muito trabalhosa. Eu andava pela cidade dentro da fantasia, imaginando uma bengala em minha mão, e os ônibus, sujos e barulhentos, eram carruagens lotadas. -------------- Havia um incômodo nisso tudo: eu me sentia velho. Hoje eu sei que só um jovem consegue fantasiar tanto, mas eu sentia então que jogava minha juventude no lixo. Toda essa vida era temperada por culpa. Ouvir música clássica e ler livros antigos era coisa de velho. Minha educação deficiente me deu esse preconceito. Preconceito bastante americano aliás. Somente após os 30 anos eu entendi que em 1977 eu fui um adolescente muito, muito romântico. E como tal, eu tinha uma musa, e seu nome era Jeanne. ---------------------- Lembrei de tudo isso agora, ao escutar Vivaldi. Ele foi o primeiro compositor clássico que amei e foi descoberto em 1977 no rádio. Começar por Vivaldi é começar do modo certo. Ele é genial e é acessível. Se voce não sentir prazer com ele não haverá esperança para voce. -------------------- Acho que em 1977 eu cultivei minha jovem alma para o futuro. Não sei que futuro e não sei que alma. Não cabe à mim saber. Das poucas certezas que tenho é aquela que diz que ter uma alma é uma conquista e não um direito. Hoje tenho a idade que em 1977 eu imaginava ser a idade certa para ouvir Beethoven.

VELHOS INSTRUMENTOS

No começo dos anos de 1960 aconteceu uma revolução na música. Beatles? Também, mas não é deles que falo, embora meu assunto tenha influenciado os caras de Liverpool. O que aconteceu foi a gravação de peças clássicas com os instrumentos de seu tempo. Vendeu muito, muito mesmo, nas décadas de 60-70 e 80 ajudou a equilibrar as finanças dos departamentos de música clássica. E saiba, foram as gravações de então, versões com instrumentos de época que fizeram Beatles gravarem Yesterday e Eleanor Rigby. ------------- Até então, quando se escutava Bach, ou Vivaldi, ou Haendel, ou Corelli, o que se ouvia eram instrumentos que não existiam em 1750 tocando músicas que em 1750 deveriam soar de um modo bem diferente. Comeaçava-se a perceber que aquilo poderia ser uma traição. Música do século mais racional sendo executada de maneira romântica. À Schumann. ------- Então um grupo de jovens maestros e músicos ingleses resolveu usar instrumentos como os de 1750. Violinos com cordas feitas de tripa de animais. Flautas de madeira. Cravo no lugar do piano. Bandolin, Corne, afinações antigas. Os andamentos mais acelerados, nada de sentimento exagerado, ênfase na dança, na alegria, no ritmo incessante. Para surpresa de todos, o público comprou aos montes. A dita "Música Antiga" entrou na moda. Em 1969 ouvir Bach era chique e que coisa, era hip ! ----- Trevor Pinnock e Christopher Hogwood são dois dos grandes nomes da onda. Ouço esses dois maestros, Pinnock em Bach e Hogwood em Vivaldi. ------------------ Vivaldi com Hogwood e a Academia de Música Antiga é um compositor diferente. Ele parece muito menos doce. Vivaldi se torna mais despido, mais apimentado, o som áspero das cordas lhe dá urgência. É um som que deixa o fundo aparecer mais. Os violoncelos atacam como guerreiros, a harmonia é mais selvagem. Já escutei mais de 8 versões dessa obra, desde italianas amorosas até alemãs exatas. Após o estranhamento inicial voce começa a preferir esta. ----------------- Trevor Pinnock e o grupo The English Concert tocam os Concertos de Brandenburgo. As cordas são como fossem feitas de borracha, parecem flexíveis. É um Bach menos sangue azul e muito mais camponês. É muito menos saltitante, a complexidade harmônica se revela em nudez. --------------- Era desse modo que Bach e Vivaldi queriam ser ouvidos? Quem prefere as versões tipo século XIX diz que se eles tivessem instrumentos melhores teriam composto para eles, e que portanto seria melhor ouvir piano e violino moderno. Já os amantes destas versões dizem que cada compositor escreve para aquilo que conhece e domina, e somente respeitando isso se pode ouvir aquilo que ele desejou que fosse perpetuado. Eu penso que jamais saberemos exatamente o que eles ouviam porque não há gravação em 1750. O que nos ficou são as partituras. Então toca-las em piano ou cravo é indiferente. O que se deve respeitar é harmonia, melodia e ritmo. ----------------- São dois cds históricos.

VIVALDI: LORIN MAAZEL, THE FOUR SEASONS

NOITE EM VENEZA

Dinheiro e sexo. Quem conhece a Veneza do século XVIII sabe do que falo. Mesmo entre os pobres, a vida vista como um palco, e nesse palco, carnaval e jogo são a chance maior de atuar. Máscaras e capas. Decotes e vielas escuras. As sombras na água dos canais. Ecos de sapatos afivelados. O pênis sempre pronto para ser usado. Maquiagem e risos. E as igrejas. Casanova vaga em mesas de carteado. E Vivaldi, o padre rosso, compõe dividido entre sexo, dinheiro e vaidade. Ouvir Vivaldi é tentar sentir algo desse espírito. Óbvio que nunca iremos chegar nem perto daquilo que eles viveram. Nosso mundo desencarnado não poderia ser mais contrário àquele outro. Mas tentamos. Há na música de Vivaldi algo que promete e não cumpre. E essa decepção não se deve à música, mas sim ao que perdemos nesses séculos. O poder de se encantar e de viver irresponsávelmente. O que nos restou do banquete veneziano é a música, que é bela, superlativamente bela, mas é parte da coisa, não o todo. Ouço AS QUATRO ESTAÇÕES mais uma vez. Lorin Maazel rege os músicos de Paris. Instrumentação de época, cordas de tripa, estridentes, nada romanticas, ótimas! Já escutei mais de 5 versões dessa obra. Esta é das melhores. É agora minha favorita. Ouço Vivaldi desde meus 15 anos de idade. Foi esta obra que me adentrou à música clássica. Na verdade ela é a porta de entrada de quase todo mundo. É manjadíssima. Por isso dificil de ouvir com isenção. Pode parecer gasta. O primeiro movimento confirma isso, passa como rotina. Mas o resto, e principalmente o último movimento, ainda deliciam. Antonio Vivaldi era um padre sacana. Era alma de Veneza. Tanto quanto Casanova. A vida como um jogo, uma cama e um palco. Eis sua trilha sonora. Distribua as cartas. Blefe. E mantenha seu falo ereto.

TCHAIKOVSKI, VIVALDI, RAVEL E A CARMEN

No tempo em que ainda se consumia regularmente discos de música clássica, pessoas que hoje seriam chamadas de poser, exibiam em seus racks, LPs lustrosos das Quatro Estações de Vivaldi, do Bolero de Ravel, da Carmen de Bizet e talvez um Beethoven. Mas diriam, com aquele ar sonhador de pessoa sensível, que Tchaikovski era seu favorito. Vejam só... logo o velho Piotr Ilytch T. ---------------------------- A música de Tchaikovski é insuportável. Tudo nele é mel. Voce ouve uma melodia cheia de auto piedade, chorosa, e pensa: Deus, que porcaria!, mas Piotr Ilytch é sensível não é?, então o que ele faz? Derrama ainda mais mel, mais pétalas de rosas e transforma o que é ruim numa insuportável sacarose. A sinfonia conhecida como Patética, mesmo em versões das melhores orquestras, é de uma pobreza atroz. É música de cinema. A música de cinema padrão, aquela que exige emoções à forceps, tem sua origem aqui. Tento ouvir, faço força para aguentar, mas não consigo!!!!! São montes de violinos chorosos, tudo afirmando e reafirmando: Eu, Tchaikovski, sofro!!!! Oh!!!!! Como eu sofro!!!!!!--------------------------------------- Sua música para ballet é ainda pior. Mas essa eu nem tento ouvir. A abertura 1812 é medíocre. Salva-se, devo confessar, seu hiper famoso concerto para piano. A orquestração é banal, mas esse concerto dá a chance a que um grande pianista se exiba, e se ele for bom, irá se exibir e brilhar. ------------------------- Por que Piotr Ilytch Tchaikovski agradava tanto? Well....ele é romantico. Mas não o romantico tipo Schumann ou Wagner, o romantico satânico, que é feroz, que anda no limite; ele é romantico tipo ramalhete de flores, lençois de cetim, lágrimas de amor, ele é o romantismo que todo mundo conhece e se sente confortável dentro. Esse o segredo, Tchaikovski é confortável. Mas não pra mim! Ele me irrita. --------------------------------- Por fim, uma dica: Para pessoas que como eu, não entendem muito de música, mas querem aproveitar o que há de melhor, prestem atenção no que um compositor coloca no fundo da orquestra, no que ele harmoniza. Quando digo que Tchaikovski é pobre, digo isso porque ao fundo dos violinos melados não há nada. Toda a orquestra toca a mesma melodia exagerada. No máximo um metal dando uma leve harmonizada. É música fácil, sem segredos, exposta, simplória. Quando voce ouve Beethoven, nota que ao fundo da melodia principal, há um tecido de acordes, e notas, e harmonizações que não se esgotam. Tchaikovski, como acontece na música POP, tem uma melodia, e tudo é apenas essa melodia. Se ela for boa, como acontece na melhor POP Music, voce adora, desde que ela não dure mais de 3 minutos, porém, se ela for ruim, voce a descarta em dois segundos. Música clássica não é assim. Tchaikovski é. E como suas melodias são o mais ridículo acúmulo de lágrimas e açúcar que já ouvi, eu o descarto. ------------------------- Citei no título Vivaldi, Ravel e Bizet....eles são bons.