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BOUVARD E PÉCUCHET - GUSTAVE FLAUBERT

Lembro que uma edição lançada por aqui, nos anos 90, foi tema de muitos textos em jornais. Não há escritor mais amado por outros escritores que Flaubert. De James à Fitzgerald, todos admiram a perfeição do texto feito por Flaubert. Espírito inquieto, Flaubert nunca escreveu nada que se parecesse com aquilo já produzido antes por sua pena. ------------------ Este é seu último romance e ficou incompleto. O plano de Flaubert era o de fazer dois volumes, ficou apenas um, com 250 páginas que param de modo abrupto. O tema é delicioso: são doia amigos solteirões que ao ficarem ricos, resolvem se tornar "pessoas muito instrupidas" e para isso seguem aquilo que de mais moderno é publicado então. Da agricultura à educação, da filosofia è geologia, eles falham em tudo o que fazem, pois além de não serem inteligentes, eles acreditam em tudo que pareça novo, científico, publicado. ---------------- Se isto lembra a voce o mundo internético em que vivemos voce sentiu bem. O romance é de uma atualidade impressionante. Cercados por "especialistas", "gente da ciência", pessoas sábias, eles não se decidem por quem seguir e quando decidem se vêm em apuros. Tudo dá errado. Os dois são ingênuos. ----------------- Apesar de provocar alguns risos não se trata de uma comédia. Flaubert era cético. Ele desconfiava de tudo aquilo que parecia seguro, óbvio, aceito pelo senso comum. Mas também desconfiava do que se anunciava como original e único. Ao fim do livro há um DICIONÁRIO DE IDEIAS FEITAS, verbetes onde Flaubert desfaz certezas e mostra o que há de burro naquilo que parece inteligente. ----------------- Um grande autor sempre nos faz mais sábios e Flaubert fez aqui uma obra que duvida da sabedoria. L~e-se com prazer, mas já aviso: é um livro diferente de tudo que voce leu. Não há heroi, não há vilão e nem aventura. Nada de romance amoroso, nada de exibicionismo estilístico. São dois parvos e um monte de tolos ao seu redor. Sem exageros. Sem apelação. Sem peripécias que nos deixam surpresos. E mesmo assim, é obra de mestre. ----------------- Valeu.

GEMMA BOVERY- JOHN BOORMAN- WES- BOWIE-ROEG- NOIR

   GEMMA BOVERY de Anne Fontaine com Fabrice Luchini, Gemma Arterton
Um padeiro, ex editor, conhece novos vizinhos. Um casal inglês. Os dois fazem com que ele se recorde de Charles e Ema Bovary. E por aí vai... Este é um filme de uma banalidade exasperante. Tudo nele é óbvio. Cada cena "sexy", cada reviravolta, tudo tem o carimbo de "já visto antes". É o velho problema do cinema francês "pop", perde o apuro do cinema gaulês tradicional e não consegue a rapidez colorida do bom cinema popular saxão. O livro de Flaubert, uma obra-prima tão forte que chega a nos deixar doentes, nada tem a ver com este souflé murcho. ZERO.
   O HOMEM QUE CAIU NA TERRA de Nicolas Roeg com David Bowie e Candy Clark
Roeg foi um diretor de fotografia genial. Dentre vários trabalhos é ele o responsável pelo visual de sonho de "Longe Deste Insensato Mundo", a obra-prima de Schlesinger. A partir dos anos 70 Roeg virou diretor e todos os seus filmes são ousados, afiados e desagradáveis. Um ET cai na Terra, fica rico com tecnologia e tenta construir uma nave para voltar a seu mundo. Veio a este planeta procurar água. David Bowie é perturbador. O que mais impressiona é como o David de 1976 é já um rapaz moderno de 2015. O filme tem cenas de sexo, é confuso, muito louco, feio, tem efeitos ruins e música esquisita ( de Stomu Yamashita ). E é profundamente perturbador. É provável que você se entedie, e depois fique com ele na cabeça por vários dias. Invulgar. Sem nota.
   RAINHA E PAÍS de John Boorman com Callun Turner e Caleb Landry Jones
Um excelente jovem elenco num ótimo filme do veterano Boorman. Na Londres de 1952 acompanhamos um jovem no exército. O filme vai da comédia doida ao mais desencantado drama. Quase se estraga com as cenas de romance com uma doidinha fatalista. Mas é um grande filme. Assistimos sempre com interesse e ao final sentimos sua beleza. Há poesia verdadeira aqui. Boorman foi e volta a ser um diretor dos bons. Ele tem muito a dizer. E diz. Nota 9.
   A VIDA MARINHA DE STEVE ZISSOU de Wes Anderson com Bill Murray, Anjelica Huston, Cate Blanchett e Willem Dafoe.
A arte pós-moderna. Não procure nela paralelos com a vida dita "real". Mas também não cometa o erro de achar que é "arte pela arte", como diziam os românticos. Não se tenta criar uma obra de arte. O que se faz é um filme. Um filme sem filosofia, sem mensagem e sem lição alguma. Apenas imagens que existem porque deu vontade de as filmar. Assim, Wes faz o filme que eu faria aos 12 anos. Se eu tivesse talento. E isso que falo é um elogio. Wes, como Tarantino, não filma cenas de amor, não filma cenas de denúncia, ele filma cenas de Wes Anderson. É infantil. É o que de mais novo se pode fazer hoje. Ele é um antídoto para a denúncia cliché e para o adultismo poser. O filme faz o que deseja fazer: é colorido, excêntrico e inteligente. E muito, muito bobo. Nota 7.
   D.O.A. de Rudolph Maté com Edmond O'Brien
Um filme noir de pesadelo. Um homem é envenenado. O veneno não tem um antídoto. Antes de morrer ele tenta vingar sua morte. O que vemos é puro desespero. Algumas cenas meladas não conseguem destruir o clima. E ainda tem uma cena de jazz que é puro veneno. Nota 7.

MADAME BOVARY DE FLAUBERT, O BURGUÊS E O ROMANCE

   A façanha do nobre só tem valor se for um risco absoluto. Se o risco envolver a perda da vida ou da fortuna. A façanha do burguês é o aumento de sua segurança. Ele detesta o nobre por sua irresponsabilidade. E tem inveja de sua segurança irresponsável. Uma contradição.
   O século XIX criou o burguês. O século XX fez dele opção principal. No século XXI ele é modelo único. Todo valor burguês tem por objetivo a segurança. Por isso seu principal interesse é a medicina. Ele ama a higiene, os remédios, o spa, as receitas de boa saúde mental. Idolatra o regime, a ginástica, o bom clima. Condena tudo o que fala de risco: a promiscuidade, a sujeira, a guerra, a exaltação, a falta de controle. Sua igreja é aquela do bom tom. Nada dos exageros da fé medieval. É uma religião sem milagres e sem punições. Assim como sua politica é a do possível. A poesia burguesa fala do amor como coisa fisica. Palpitações, febre e excitação. Será um amor de pombinhos e depois, hoje, um amor de motel. Sempre físico. Uma ginástica da boa disposição. O burguês ama acima de tudo o progresso. Porque ele promete dinheiro, saúde e vida longa. Tudo nele se mede em números. Muitos anos de vida significam vida boa. Muito dinheiro significa sucesso. Várias amantes quer dizer satisfação. O que se mede e se conta merece apreço. O resto é romantismo.
   Flaubert odiava esse mundo. Ele odiava seu mundo. Seu tempo foi o tempo do hiper-burguês, o burguês em sua máxima confiança. Eles tinham a certeza de estar construindo o paraíso na Terra. Amavam tudo o que era científico, desprezavam o passado e tinham o prazer de zombar de igreja, monarquia e poetas. Falubert os odiava. E pior, sabia que os românticos, seus adversários, também estavam perdidos. Bovary é essa romântica. Ela ansia por amor erótico. O orgasmo não lhe interessa. O que ela quer é Eros, ritual, beleza, transcendência. Cega, ela se deixa envolver por cada conquistador que encontra em sua vida vazia de mulher casada. Tenta ver neles o mundo por que ansia. Flaubert nunca foge do mal. Bovary cai no vazio absoluto. A vida vai perdendo lentamente seu encanto. Eros partiu e tudo agora é feio, reles, sem sentido, burguês. Ela se suicida. Lentamente de forma dolorosa. O livro, o mais terrível que já li, é desagradável. Crú.
  Flaubert disse que Madame Bovary é ele. Sim. Só que ela não sabe de seu mal. Flaubert sentia a vida como Bovary a sente. Mas sabia o porque desse mal. E criou uma obra-prima. Ele descreveu a mediocridade de politicos cheios de si, de cientistas balofos, de padres sem fé e de homens que viviam pelo sexo. Bovary, tola criança que ainda acreditava em Eros, morre seca e envenenada nesse mundo sem ar. 
  Flaubert, o mais amado escritor pelos escritores,  era terrível.