NO ALTO

Eu nasci no alto. Vento e chuva. Ao longe eu podia ver as montanhas do Pico do Jaraguá. Era minha primeira visão de manhã. Da porta da cozinha eu o via. Às vezes claro e brilhante, o sol lhe dando um prateado de joia. Outras manhãs mal se podia ver, o vulto cinzento envolto em chuva ou em névoas de inverno. Mais bonito era quando o Pico surgia todo verde, risonho como uma criança brincando. Mas havia mais: da frente de casa eu via o Morumbi e à direita "a cidade". O Morumbi era uma terra de Tom Sawyer, um Missouri de sonho onde havia córregos com peixinhos, lagos com tartarugas e cobras escondidas em montes de capim alto. Cada rua era uma aventura a espreita. Naquela havia uma velha bruxa, na outra um bando de pedreiros bêbados. A rua onde se corria de kart, a outra onde o Circo montou praça, e a do Moacyr Franco e do Roberto Carlos. Excursões que eu fazia. Um bairro tão pacato, uma vida tão familiar, que na casa do meu primo se entrava pela piscina, pois ela não era cercada e da rua voce andava direto para a água. Era 1969 e na minha casa meus amigos entravam sem avisar, quando eu percebia o Valtinho já estava entocado no porão. -------------- Era alto e de lá eu ouvia radinhos de pilha no jogo do São Paulo, Gerson e Pedro Rocha. Ou, andando pelas ladeiras, eu ouvia os rádios das donas de casa, nas cozinhas, no Silvio Santos que falava com suas colegas de trabalho pelo telefone. Era alto, casas lá longe, casas brotando, aviões vindo distantes, urubus, helicópteros, um disco voador. Meu pai, homem criado nos montes, sempre disse: More no alto, nunca no baixo. No alto há largueza, há o que ver. No baixo voce sufoca. Abra a janela na baixada e veja outra janela ou uma rua sem graça. Abra a janela no alto e veja o céu, a Lua ou uma montanha distante. Cães que latem a quilômetros daqui. ------------------- De quando nasci até meus 36 anos eu sempre vivi no alto. Da minha segunda casa eu olhava o Alto de Pinheiros e Perdizes inteiros. O inverno chegva em cheio na cara da casa, como um tapa. O verão tinha um céu tão vasto como aquele da praia. ( Única baixada que vale é a do mar ). Pois agora eu voltei para a parte alta do bairro e a diferença é imensa. Agora eu gosto de ver e de andar, pois há o que ver e onde andar. A chuva vem caindo do céu e não cai entre paredes, cai lá de cima. Quando olho pela janela não vejo outra janela, vejo o vazio, e que saudade eu tinha do vazio! Não é uma montanha, mas é meu alto. E eu me sinto de volta. Amém.