Porque tanto me incomoda a poesia de Rumi? Há, provávelmente, alguma coisa nela que abre uma ferida em mim. Ou ela revela uma paisagem ( passagem? ) que prefiro evitar. Qual?
Rumi nasceu na Persia, 1207, tornou-se famoso como religioso sufi, filósofo, mestre e depois poeta. Encontrou, no meio de sua vida, ao caminhante/errante Shams de Tabriz, com quem viveu uma relação de profunda espiritualidade amorosa. Os dois se complemetaram. Tabriz lhe ensinou o absoluto desapego. Este livro é dedicado a esse mestre, que partiu sem avisar e nunca mais foi encontrado.
Existe uma dança persa. Sama é seu nome. Nessa dança, os dançarinos giram sobre seu eixo como se fossem planetas. Ao mesmo tempo, eles rodam ao redor de um sol imaginário. Giram até penetrar no êxtase. Rami criou essa dança ( dançada até hoje. Tenho amiga que já a praticou. ) Jalal ud-Dim Rumi cantava ao dançar. Seus discípulos escreviam aquilo que ele cantava ( improvisava ). O poeta curou-se desse amor nessa dança e nesse canto.
São palavras que pregam a despersonalização. Para ele a felicidade está em não-ser, não-estar e não-falar. Para Rumi, o amor é maravilhoso por proporcionar a quem ama o esquecimento de si-mesmo. Ao amar não somos, não estamos e não temos razão. Somos felizes.
Cito-o:
Ó amantes abandonai as tolas ilusões
Enlouquecei, perdei de vez a cabeça.
Erguei-vos do fogo ardente da vida
Tornai-vos pássaros, sede pássaros!
E tu, perde-te por inteiro
Abandona tua casa em ruínas
Segue os amantes de Deus
-torna-te sufi, sede sufi!
Limpa teu coração dos velhos rancores
lava-o sete vezes
e serve o vinho do amor
-torna-te taça, sê a taça!
Enche tua alma de todo o amor
transforma-a na alma suprema
senta à mesa dos santos
-embriaga-te, sê o vinho!
O Rei que tudo ouve
fala com o homem piedoso
Escuta as palavras sagradas
-limpa teu corpo, limpa teu coração!
Ao ouvires a doce canção
teu espírito é alçado aos céus.
Teus limites nada significam
Sê como o amante sem medo
-torna-te eterno, sede eterno!
Os pensamentos só te levam onde lhes apetece
Queres segui-los?
Melhor é seguir teu destino
-torna-te guia, sê teu próprio guia!
Por quanto tempo mostrarás duas faces?
Até quando trairás a ti mesmo?
submisso como bandeira ao vento?
Não te cansa ser o bispo do xadrez?
E andar todo o tempo de viés?
-Torna-te sábio, ó sábio!
Por algum tempo foste os elementos
por outro tempo mais foste animal
por um tempo serás alma,
É agora a tua chance
-Torna-te alma suprema, sê a alma suprema!
Rumi já era famoso na Pérsia, na Siria, na Turquia, quando em 28 de junho de 1244 encontra Shams. Daí por diante sua vida será embriaguez. Rumi mergulhará em embriaguez de amor, de revelação, de saber.
Só a morte põe fim seguro
às dores e aflições da vida
A vida porém temerosa
tudo faz para adiar esse encontro.
É que a vida vê na morte
apenas a mão sombria
e fecha os olhos a luzente taça
que a mesma morte lhe oferece.
Assim também foge do amor o coração apaixonado
receoso de um dia morrer
da mesma paixão porque vive.
Lá onde nasce o verdadeiro amor
morre o "eu", esse tenebroso déspota
Tu o deixas espirar no negror da noite
e livre respiras a luz da manhã.
Lendo Rumi me vem uma sensação: A de que sua época possuia algum segredo sem nome. E penso: o desenvolvimento material cobra o empobrecimento espiritual. Há um equilibrio na vida. O crescimento do todo traz a diminuição do Uno, o enriquecimento da persona traz o esquecimento do coletivo.
Cinquenta anos após a morte de Rumi, cavaleiros franceses de volta das cruzadas trariam essa poesia para a Provence e criariam toda a nossa tradição amorosa.
Leia esta poesia e sinta alguém transcender tempo e lugar através de sons e mistério:
Sai do círculo do tempo
e entra no circulo do amor.
Entra na rua das tabernas
e senta entre os beberrões.
Se queres a visão secreta
fecha teus olhos.
Se desejas um abraço
abre teu peito.
Se anseias por uma face com vida
rompe esse rosto de pedra
Porque hás de pagar o dote da vida
a essa velha bruxa, a terra?
Mil gerações já gozaram
do que agora tens
Prova a doçura em tua boca
que antes foi flor, abelha e mel.
Vamos, aceita esta pechincha:
Dá uma única vida
E leva uma centena.
Jalal ud-Din Rumi.