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3 FILMES DE UM CANCELADO

O diretor de cinema mais amado pelo liberal americano, entre 1972-2000, foi, sem a menor dúvida, Woody Allen. Ele era tudo aquilo que o liberal amava ( e era como ele se via ): inteligente, engraçado, chique, neurótico, freudiano, vindo da minoria ( judeu ), amante de arte e ao mesmo tempo adorando coisas POP como jazz e beisebol, anti republicanos, não cooptado pelo sucesso, um cara que era niilista e que ao mesmo tempo parecia amar a vida. Seus filmes eram cheios de professores, feministas, músicos, escritores, gente interessante. Apartamentos com livros em cada canto, discos de vinil, pinturas dos anos 30 e 40, sofás de couro. Esses personagens falavam de Bergman, de Freud, dos irmãos Marx e de sexo, muito sexo. Mas então, a partir de mais ou menos 2005, a coisa desandou. Woody Allen, como aconteceu e acontece com tanta gente, começou a ser cancelado, comido, odiado pelos filhos daqueles que o amavam. Pois os liberais hoje não aceitam nada que saia da raia delimitada por eles mesmos. Se antes eram pró livre expressão, hoje fazem a censura de tudo que lhes ofende. E sensíveis como são, quase tudo que faz parte do mundo real os magoa. -------------- Revi 3 filmes de Woody. O DORMINHOCO eu revejo cada dois anos. E fiquei chocado com sua atualidade. Convido voces a verem o filme. É um futuro onde é proibido discordar, perguntar, ser do contra. Todos são felizes com sexo mecânico e drogas bobas e o governo os vigia pelo bem de todos. Em 1973, ano de produção do filme, Allen devia pensar em um futuro de republicanos assanhados, mas o que salta aos olhos hoje é que aquele povo é idêntico ao povo que colocou Woody no ostracismo. Eles odeiam seu sexismo, no filme, seus modos naturais, seu não alinhamento. São liberais de 2022. -------------------- Ah sim...o filme é muito, muito emgraçado e os rebeldes que lutam contra o governo, homens nas matas, parecem cowboys....isso deve irritar muito um Sean Penn da vida. ------------------- Me decepcionei muito com DESCONSTRUINDO HARRY. Tinha boas lembranças dele, mas visto agora ele pareceu terrivelmente chato. Não tenho mais paciência para aquelas pessoas falando sem parar de seus problemas tão banais. O filme é constrangedoramente metido a intelectual, cheio de truques, esperto sem impressionar. -------------- Mas por fim, A ÚLTIMA NOITE DE BORIS GRUSHENKO. Talvez, quem sabe, o melhor filme do diretor. Devo dizer que a música, a maior das artes, prova aqui sua superioridade sobre as outras artes. Tem Prokofiev o tempo todo na trilha sonora e qualquer imagem fica magnífica com música tão maravilhosa. Mas o filme é ótimo porque Woody brinca com ele mesmo. As falas chatas de DESCONSTRUINDO HARRY aparecem aqui como aquilo que são: óbvias. O filme é a história de Boris, na Russia de 1815, da infância à morte. Há citações abundantes de Dostoievski, Tolstoi, Gogol, do cinema de Eisenstein ( a cena no campo de batalha com seus cortes rápidos e closes simbólicos ). Até Nabokov entra em dois momentos: quando um velho padre diz que a felicidade é uma menina loira de 12 anos; e na cena em que Boris vai pra guerra levando uma rede de caçar borboletas ( Nabokov era maluco por caçar e classificar borboletas ). Diane Keaton está bonita e muito engraçada e o filme tem algumas cenas inesquecíveis. E claro, há o final que homenageia Bergman. E além do mestre sueco, identifiquei citações aos irmãos Marx, várias, e aos filmes do leste europeu dos anos 60. Curto, frenético e profundo sem jamais parecer solene, é uma joia de um diretor que morrerá em cancelamento.

Hour of the Wolf Official Trailer #1 - Max von Sydow Movie (1968) HD

A HORA DO LOBO - INGMAR BERGMAN

Chamado de "o filme de vampiros" de Bergman, esta produção de 1968 tem a fama de ser bastante assustadora. O enredo fala de um casal que vai morar numa ilha deserta. Ele é um artista plástico e ela está grávida. Sofrendo de insônia, ele começa a ver seres do mal e ela o acompanha em suas visões. Essa fauna de pessoas monstruosas convidam os dois para o castelo e o mal acaba por tomar tudo. --------------- A hora do lobo são as três da manhã, a pior hora para os insones, hora onde muita gente morre e muita gente nasce. Bergman jamais falou qual o sentido do filme. Aparentemente o artista enlouquece perseguido por vampiros de alma. Algumas cenas se fixam na nossa mente, sendo a final, a do Homem Corvo que bica seu corpo e parece beber seu sangue, a mais forte. Mas talvez haja outra possível visão sobre este filme. ----------------- A esposa é a chave. Ela diz, por duas vezes, que o amor, que quando vivemos com uma pessoa, passamos a ser como ela é. Que nosso rosto, nossos hábitos, e até nossos sentimentos passam a ser iguais. Ela entra no mundo do artista e passa a ver o que ele vê. Compartilha de sua loucura. E por isso posso dizer que é um filme sobre o amor. Os vampiros são as pessoas que sabotam e tentam destruir o amor do casal. Fadado a ser destruído, o amor é encurralado, aviltado e por fim morto pelo bando de seres secos, mortos, estridentes, rancorosos que vivem na ilha. O filme é então uma assustadora visão sobre as tentações que matam o amor. ------------------ Nisso, talvez a mais central das cenas, seja aquela em que o artista vê a ex amante morta, e ao tocar seu corpo nu faz com que ela volte a existir. Nesse momento o amor do casal está já destruído. --------------- Max Von Sydow está frágil como nunca. Sua atuação beira o fantástico. Liv Ullman é a esposa e não à toa ela estava grávida de Bergman durante as filmagens. Seu rosto é a única coisa sã durante todo o filme. Ingrid Thulin é a ex amante morta, sempre sensual com uma bela cena de nudez. ------------ Senti durante o filme algo de Fellini nos closes faciais e de Hitchcock na maneira como o pássaro ameaça a vida das pessoas na ilha. É um dos mais tristes filmes de Bergman.

Scenes from Bergman's Silence

O SILÊNCIO, BERGMAN

Um dos mais terríveis filmes que já vi. O enredo é simples: uma mãe e seu filho, mais a irmã da mãe, descem de um trem e se hospedam num hotel. Estão em país de língua desconhecida. Calor terrível, gente estranha. ------------- Sven Nykvyst é o fotógrafo do filme. Difícil lembrar de filme em PB com fotografia melhor que esta. Gunnel Lindblom é a irmã- mãe. Sensual, atirada, que adora comida. Ingrid Thulin é a outra irmã, alccoólatra, doente, tradutora de livros, profundamente infeliz. Jorgen Lindstrom é o menino. Quase sem palavras, sem trilha sonora, o filme é um pesadelo. Chato, árido, sem saída. Por que Bergman fez este filme? Para que? Quem sabe? --------------- Duas cenas me causaram espanto: feito em 1963, ele tem, pela primeira vez, uma cena de masturbação sem disfarce algum. Ingrid Thulin se deita na cama e enfia a mão por debaixo da roupa. Exatamente na frente, abaixo do umbigo. Então vemos seu rosto em orgasmo, o gemido. Sem sombras, sem música, sem nada, é uma mulher que se masturba. Só isso. Outra cena espantosa para a época, é uma em um cinema. A irmã sensual vai ao cinema de noite, sozinha, e lá vê um casal transar. O que vemos é uma moça, bonita, de seios nús, montada sobre um homem, com cara de mau, gozando. Eu nunca vi um casal gozar de um modo tão real em filme nenhum. A cena dura apenas 30 segundos, mas fica na memória como se tivesse horas. É forte e é bonita. -------------- A irmã irá transar com um homem desconhecido, um homem com cara de bandido. Transam madrugada afora. Transam no calor, com suor, sem falar. Ele a pega por trás, ele abusa dela. Ela se deixa levar. O menino sabe, viu eles irem para o quarto, mas ele pouco se importa. --------------- Não conheço diretor que saiba filmar melhor o que seja o mundo de uma criança. O menino anda pelo hotel, se esconde, olha rostos estranhos, brinca com um bando de anões espanhois, espiona a mãe, vê o corpo nú que ela exibe para ele ( o filme é muito freudiano ). Como toda criança, ele olha, ele vê. Não interage, apenas está lá. Sua interação é com seu mundo, com ele mesmo, e com uns poucos que sabem entrar nesse mundo. Mas o filme não é sobre a infancia, é sobre a solidão, e acima de tudo sobre o sexo. ---------------- Todas as relações no filme são sexualizadas. Os anões parecem querer deflorar o menino ( e o vestem de mulher ), as irmãs parece ter um caso de incesto, o menino parece ser objeto de desejo sensual da mãe. Já perto do fim, a personagem de Thulin diz uma das poucas falas do filme: A vida é sobre tecido que fica ereto e sobre o desejo de gozar. Mais nada. ----------------- Onde eles estão? Hungria? Há tanques na rua. Uma cena belíssima, no começo: no trem, o menino vai à janela e vê filas e filas de tanques a passar na estrada. Porque essa cena? ------------------ Eu comprei este DVD em 19 de novembro de 2005. Eu sei porque abri a caixa e o ticket de compra ainda estava lá. R$ 37.90 reais. São 16 anos. Eu demorei 16 anos para o assistir. Nesses anos eu vi Morangos Silvestres 7 vezes. E todos os outros Bergman pelo menos uma vez. Mas evitei este filme até ontem. De madrugada tive um pesadelo assustador. Acordei ouvindo uma voz, feminina, pedindo socorro. Tremi de frio e medo em seguida. E pensei em fantasmas. ------------------ Voce não sabia ainda que Bergman é um dos maiores diretores de filmes que produzem medo? ----------------- ah sim... o filme é também sobre o corpo de Gunnel Lindblom.

ATRAVÉS DE UM ESPELHO - BERGMAN E SEU DEMÔNIO

Filme de 1961. Temos Harriet Andersson. Que não é mais a menina de Monika e o Desejo. E nem mais o monstro sensual dos anos 50. Aqui ela consegue parecer pesada, densa, terrivelmente grave. O resto do elenco tem Max Von Sydow, como um frio e ao mesmo tempo perdido professor. Gunnar Bjorstrand é o pai, e o filme é dele. Há ainda Lars Passgard, ator que não se firmou na trupe de Bergman, como o irmão de Harriet. Gunnar esteve em quase todos os filmes dos anos 50 do diretor sueco. Este filme, que começa com cello de Bach e imagens de um mar cinzento em uma ilha vazia, fala de loucura. ----------------- Desde a algum tempo nos acostumamos a ver artistas ateus ignorarem Deus. Infantis, eles negam sua existência como ideia central da nossa civilização. Crianças negam aquilo que não entendem. Acreditam que fechando os olhos para uma coisa, ela deixa de existir. Por isso estranhamos que um ateu como Bergman se ocupe tanto com Deus. Ele não crê, mas não nega sua importância. Ele, adulto que é, O discute. ------------------- Harriet acabou de sair de uma clínica. E volta a enlouquecer. Vemos momento a momento sua agonia. E ao mesmo tempo, a reação da família. O marido que tenta manter a cabeça no lugar. O pai que covardemente se afasta. E o irmão, que afunda no sofrimento do amor pela irmã. Em um quarto abandonado, ela começa a ter contato com alguma coisa. Algo que vive por detrás das paredes. ( Fosse um filme de 2021, essa entidade seria um ser de outra dimensão. Nós substituimos Deus por um ET. Tudo para parecer mais cinetífico ). Ao fim do filme ela vê essa entidade e enlouquece. Um helicóptero vem a levar embora. ---------------- Uma aranha. Deus é como uma aranha. O rosto impassível. Os olhos frios e impessoais. A vida é sua teia. Somos aqueles que cairam nela. Horror absoluto. ---------------- O filme está longe de ser perfeito. Há algumas cenas que soam artificiais, forçadas. Mas é uma obra prima. A cena dentro do barco, a barriga da Baleia de Jonas, é uma das coisas mais belas e fortes já filmadas. O desamparo de quem viu Deus. E encontrou Nele nada do que esperava. --------------- Após a partida da filha, o pai e o filho conversam junto a uma janela. Afinal, Deus existe? O pai, numa fala artificial, porém de beleza sublime, diz que o amor que sentimos é uma manifestação da existência de Deus. Que o amor é Deus afinal. O pai parte e o filho, sozinho, diz: EU FALEI COM MEU PAI. Para quem como eu, viveu uma relação de amor profundo e odio ferino com seu pai, essa é uma das mais comoventes falas de toda a história do cinema. Bergman criou todo o filme para essa fala final. A obra se trata disso: dois filhos a procura do pai que sempre se faz ausente. -------------- Desde Freud o valor da mãe tem sido hiper valorizado e nesse processo, o pai foi posto de lado. Se tornou um tipo de ator coadjuvante, um São José apagado diante de Maria. Mas, pelo menos para os meninos, a relação pai e filho é crucial para qualquer chance de alegria e saúde mental. A tragédia de nosso tempo é a ausência do pai, seja ele Deus, pai biológico ou avô. O guia, o protetor, o heroi, o aglutinador. E também o rival declarado, o excitador de vontades, o ponto a ser superado. Sem o pai há um vacuo, vazio a ser preenchido por qualquer coisa. Inclusive uma aranha. ------------------ Só alguém que chegou perto da loucura escreve algo assim. Minha teoria boba de que Bergman nunca sofreu como sua arte nos faz crer, cai por terra. Sim, ele esteve perto da aranha horror. E saiu para nos dizer que FALOU COM SEU PAI. Abraço meu travesseiro e choro sem pudor algum. Nobreza nada mais é que dizer, sozinho e sem testemunhas, perdão meu pai. Onde voce está? Que falta voce me faz. Salve-me. Salve-me. Salve-me. Este filme é uma missa solene. Por isso Bach. Harriet é o médium e seu irmão, um anjo. O marido é um homem comum. E o pai...ah o pai....é o deus que foge, que nos escapa, que se vai. Se isto não é uma obra prima elas não existem.

O SÉTIMO SELO. UM FILME QUE VOCE NÃO DEVERIA VER.

Sempre que algum jovem cinéfilo quer ver UM Bergman, ele se aproxima do SÉTIMO SELO. O que é um erro. Erro tão bobo como querer conhecer cinema francês assistindo Godard. Assim como Godard está longe de ser o melhor da França, procure ver Jacques Becker, Jean Pierre Melville ou Henri Georges Clouzot; O SÉTIMO SELO não é o melhor Bergman. Em minha vida, não fica nem entre os 10 melhores do sueco. -------------- Ao contrário dos criticozinhos eu explico o meu motivo e não emito apenas uma sentença. Este filme não está entre os melhores, embora seja um filme muito bom, por ser didático. Artificial. E isento de emoção verdadeira. ------------- Escrevi que Bergman consegue ser um dos poucos diretores que nos faz entrar na idade média. Pelo menos um tipo de era medieval possível, do tipo que parece real sem forçar no pseudo realismo. Aqui não. Tanto o cavaleiro como o escudeiro são homens do século XX. Nada há neles, seja em atitude, seja em pensamento, que lembre vagamente aquilo que seria um ser medieval. Eles se auto analisam, eles refletem com distanciamento. Isso não existia naqueles tempos. Não existe nem em Chaucer e nem em Bocaccio. Tudo então tem o clima de uma lição de moral, de filosofia, de modo de ser. Cada personagem é explicitamente uma única voz: Bergman. É um filme de arte naquilo que filmes de arte têm de pior: panfletagem. --------------- Woody Allen ama este filme por ser o mais simples dos filmes de Bergman. Como nos filmes de Allen, tudo é simplificado. Bergman nos diz: A vida é isso. E pronto. Tá dito. Não há sutileza. Não há o "talvez". Bergman fez um filme que afirma. Por isso seu sucesso. Ao contrário de filmes enigmas como O ROSTO ou NOITES DE CIRCO, aqui tudo é claro. --------------------- Esquematismo? Sim. A turma dos atores mambembes faz parte do mesmo problema. São pessoas da Suecia dos anos 50. ------------- Por favor, não pense que eu não goste do filme. Não estou aqui a criar problema para parecer original. Gosto do filme. Como não gostar das cenas icônicas e de um ator como Max Von Sydow? O que digo é que ele não é um dos melhores Bergman. Não possui o piscar de olhos de seus melhores filmes. Não nos engana, é apenas o que parece ser. ------------------------ Então não veja este filme se voce quiser conhecer Bergman. Vá de JUVENTUDE. O ROSTO. NOITES DE CIRCO. Para começar a conhecer o melhor Bergman, estes são os caminhos ideais.

A FONTE DA DONZELA. MILAGRES?

Ninguém retrata a idade média no cinema como Bergman. E por surpreendente que pareça, o mestre sueco fez apenas 3 filmes medievais. Nos filmes a época medieval é quase sempre retratada como época mágica-colorida ou tragédia de fome hiper pseudo realista. Bergman nos leva à época porque ele não força nada. Veja, por exemplo, os primeiros cinco minutos deste filme. Uma mulher, grávida, acorda. Ela aviva o fogo. Abre a chaminé que é também uma janela. Ouvem-se galos cantando. Na casa, toda de madeira e palha, quase nada há. Potes, cama, panos. Mais nada. Todo o clima está dado: pessoas vivem em meio aos animais que os alimentam. Quase não há objetos para se possuir. São sujos, mas não grotescos. A vida se divide em dois assuntos: Deus e a fome. Cenários, roupas, expressões corporais, tudo remete ao realismo não exagerado. Bergman não tenta chocar. É como se ele comentasse: Eis 1.300. Mas...e daí? --------------------- Os primeiros vinte minutos do filme, que ganhou o segundo Oscar de Bergman, em 1960, são para nos situar. Depois, a emoção toma conta. Uma menina vai à igreja levar velas à Virgem. No caminho, ela é estuprada e morta. O estupro é encenado de forma magistral: dois homens a violam como se fossem bichos possuindo uma fêmea. Uma criança vê o ato e nada compreende. Os dois adultos são bestas humanas. Agem por puro instinto, e ao contrário do que dizia o imbecil do Rousseau, homens em estado puro são agressivos e egoístas. O selvagem nunca é bom. O selvagem é uma fera com fome e desejo. ------------------ A cena do estupro é profundamente emocionante. É absurda. Sem sentido. Crua. E por isso, patética. A virgem morre com uma paulada na cabeça. Eles pegam suas roupas e fogem. --------------------- Pensamos: o filme se passa na primavera. Tudo pode ser simbólico no filme. O rito da morte do inverno, da natureza virgem sendo violada na primavera. Mas é Bergman e ele não é junguiano. Esqueça. O estupro é sobre aquilo que vemos: a violência cruel contra o mais fraco. A mulher. A virgem. -------------------- Os tolos assassinos pedem pousada na casa dos pais da virgem. E a mãe descobre quem eles são. O pai, um soberbo Max Von Sydow, pega então seu bem mais precioso: a espada, único bem de luxo na casa. ( Ele é rico ). E se vinga. Todos são mortos, inclusive a criança que anda com os estupradores. Depois ele e sua família partem para procurar o corpo da filha morta. -------------- Ela está onde foi executada, no bosque. O pai pede perdão à Deus por ter matado uma criança. Não há arrependimento pelos assassinos, apenas pelo inocente. Se ajoelha e diz que fará uma igreja com suas mãos. Então ele ergue a filha do solo e uma fonte brota do chão. Um milagre. -------------- Bergman amava Carl Dreyer e Dreyer era crente. Bergman não é, mas está longe de ser ateu. Ele sabe que a coisa é bem mais complicada que simplesmente dizer NÃO e esquecer Deus. Então nós perguntamos: O milagre....é real? ------------------- Não. Não é um filme de Dreyer, então fica em aberto. Bergman filma a lenda, como ela é, e voce que pense o que quiser. Como todo grande artista, ele não vai te dar uma conclusão mastigada. Se vire. ------------------- O milagre acontece e o pai da morta é profundamente religioso. Mas antes do milagre ele grita com Deus. Que justiça é essa? Por que isso aconteceu? Onde Voce estava? ------------------ O que posso dizer, com certeza, é o maravilhoso dom que Bergman tem de ser feminino sem ser feminista. Eu assisti Sonho de Mulheres antes deste filme, e nele vemos duas mulheres sendo decepcionadas por homens fracos. O universo de Bergman é das mulheres e os homens existem como seres que as defendem ou as decepcionam. Aqui o pai cumpre a vingança justa, sob os olhos da mãe, mas ele falha ao deixar a filha ir sem proteção. --------------- O filme é perfeito. --------------- Um lembrete: Sem um homem, por toda a história do mundo, mulheres eram vítimas de estupro todo o tempo. Agora que temos todo um sistema de proteção POLICIAL E PENAL, feministas cospem nos homens que protegeram suas avós. Não conheço nada mais idiota.

RUMO Á FELICIDADE - INGMAR BERGMAN. É POSSÍVEL SER FELIZ?

Em seu começo já ficamos sabendo de seu fim: a esposa morre em acidente doméstico. Voltamos anos no passado e iremos saber como tudo chegou alí. Onde a felicidade? Tudo terminará em morte! --------------- Ele é um violinista. Neurótico. Insuportável. Durante todo o filme vemos sua profunda antipatia. Ele é incapaz de conjugar o nós. Seu mundo é o do eu. Tudo que o move é vaidade disfarçada de auto piedade. Mesmo assim há quem o ame. Sua esposa, colega na orquestra. Há ainda o maestro, feito por Victor Sjostrom, que no futuro seria o ator de Morangos Silvestres. Papel tão marcante que eu logo o reconheço em meio a orquestra. ------------ O casal namora e se casa. Os ensaios correm. Ela engravida. O filme é de 1949 e é surpreendente ver como na Suécia de então já se via como corriqueira coisas como aborto, sexo antes do casamento e até mesmo um velho casado que oferece a jovem esposa aos amigos. Os filhos nascem e eles vivem no campo. ------------- Mas ele é infeliz e na verdade, mais que isso, um terrível estraga prazeres. Fracassa em seu plano de ser um solista e isso o destroi. Tem um caso com a tal jovem esposa do velho, com o consentimento do marido. No ponto mais baixo de sua vida, ele bate na esposa. Se separam e fazem as pazes. Um dia ela morre. ---------------------------- Na última cena ele toca na orquestra. Um dos filhos entra e assiste. O filme acaba. --------------- Onde a felicidade? Na música. O maestro é duro, rígido e tem consciência de que sua orquestra é de segunda categoria. Mas é feliz. Ele aproveita o sol. Ele adora comer e beber. E ele ama a música. Eis a chave do filme: a felicidade não mora na vida que levamos mas sim naquilo que criamos. Não apenas a arte, mas também os filhos. Será que alguém já percebeu que Bergman ama crianças? O violinista, ocupado em ser Grande, em ser um Solista, é incapaz de tirar sentido da orquestra, em ser membro. Assim como ele não entende o casamento. O filme deixa em aberto se ele será um bom pai. Eu acho que ele irá abandonar os filhos. ------------ Tudo que Bergman fará já está aqui. O amor às mulheres, a dificuldade em se integrar, o casamento como luta de egos, as crianças como criação de beleza, a arte como sentido da vida. O único assunto que ele não toca é o religioso. Todos os outros temas estão aqui. Inclusive a beleza do mar e da ilha. Não é uma obra prima, mas é um filme invulgar. Veja como entrada no universo de Bergman.

SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR - BERGMAN E O MUNDO DO NORTE

O mundo do norte da Europa é o mundo luterano. Mesmo que um país como a Suécia tenha maioria atéia a décadas, sua herança cultural e seu ambiente espacial é luterano. Faz parte de seu caráter. ------------ Luteranos, predominantes em parte da Alemanha também, amam o trabalho e com o trabalho, a limpeza. Para eles, a sujeira, a desordem, o acaso são partes do mundo do mal. Provável que essa concepção venha como oposto ao catolicismo. Para luteranos, católicos eram e são sujos, desleixados, preguiçosos, não confiáveis. Suas igrejas, as romanas, são de mal gosto com seu exagero de imagens, cores, corpos nús, padres suspeitos, sexo mal dissimulado. Não me interesso aqui no porque disso, mas sim no efeito que os filmes de Bergman, que adoro, têm sobre mim. Eles são profundamente luteranos. E é esse caráter, tão fantástico, tão distante, tão pouco cotidiano para mim, que me fascinam em seus filmes. ------------- Observe este filme citado no título. Trata de uma família rica da Suécia de fins do século XIX. É o mesmo mundo de filmes como My Fair Lady ou dos filmes de Ophuls. Mas mesmo os ingleses sendo protestantes, eles jamais chegam perto da arrumação fria, da limpeza esmerada que vemos nos filmes de Bergman. A religião inglesa nada mais é que um acordo. Luteranos são radicais. Odeiam acordos. ------------- O filme, alegre, trata de sexo. Mas não há o espírito dos filmes franceses ou italianos. E nem o sexo nada sensual dos americanos ( não há país menos sexy que os USA ). Observe como são as cenas de desejo, as cenas na cama, os beijos. Observe as casas, as ruas, o teatro. Tudo limpo, claro, arrumado, sem nada em excesso, tudo posto em seu lugar, nada dos adereços da Londres de 1890, nada do pó e do mofo italiano, nada da bagunça opulenta de Paris. Tudo parece rico, porém simples, chique, mas envergonhado. Esse ambiente, tão anti-Visconti, tão anti Ophuls, é o que explica meu amor aos filmes de Bergman. ---------------------- Ingmar Bergman deprime muita gente, não a mim. E não é porque sou deprimido e portanto imune. O fato é que vejo em seus filmes a paz que não vejo em outros diretores. Por mais deseperado ou niilista que uma cena seja, há paz no cenário, na luz, na condução dos atores, no roteiro seco e sem firulas. Bergman é assim, o mais sereno dos diretores e portanto um nobre. Se Kurosawa também é nobre, ele é, sua nobreza é a dos samurais. Kurosawa é exagerado, ríspido, histérico e sempre maravilhosamente belo. Bergman nunca atinge a beleza de Kurosawa, mas é mais sereno. ---------------- Isso é estranho porque eu sei que Bergman era um homem muito mais imaturo que Kurosawa. O japonês tinha uma sabedoria muito maior. Então entrego o caráter sereno dos filmes de Bergman não a uma sabedoria particular, mas ao luteranismo rigoroso do ambiente onde ele nasceu e cresceu. Os copos e os pisos brilham nos filmes de Bergman. E as atrizes, elas são sempre lindas. ---------------- Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson e Harriet Andersson. Todas são maravilhosas e atemporais. Harriet se destaca. É a empregada da casa, livre sexualmente, ousada, sem pudor, feliz. Sem tirar a roupa ela exala sexo. Vi vários filmes com Harriet, ela era um fenômeno. Nunca vi atriz com tanto poder volátil. ------------------- Amamos as pessoas que Bergman cria. Talvez porque ele as ame. O homem maduro que não consegue fazer amor com a muito jovem segunda esposa. O filho que teme o sexo e quer ser pastor. A jovem esposa entediada. A empregada sexy. A atriz que começa a ficar velha. O soldado de opereta. Todos são felizes de certo modo, e de outra maneira, estão condenados. Bergman não evita ser Bergman e em certas falas sentimos o drama pesado quase dar suas caras à cena. Mas não. O filme é feliz. ----------------- Não há mais diretores como Bergman porque mesmo em seu tempo, anos em que o cinema viveu seu apogeu como forma de arte, ele era único. Falava-se então em Visconti-Fellini-De Sica-Antonioni, Godard-Truffaut-Chabrol-Malle ou mesmo Kurosawa-Ozu-Mizoguchi-Naruse. Mas Bergman era apenas Bergman. Seu estilo era só dele, sem escola e sem descendentes. Ele amava filmes. Os que fazia e uns poucos que via. Amava as mulheres, muitas. E a música, Mozart sobre todos. E acima de tudo, amava atores. Cada fotograma de cada filme é pintado com esse amor pelo rosto de seus atores. Por isso todos eles parecem tão lindos, tão especiais, tão incríveis e eternos. ------------ Fellini tinha o mesmo amor, mas era um amor católico, ou seja, exagerado, burlesco, maneirista, barroco. O amor de Bergman é exato. Fellini era operático. Bergman filosófico. É isso.

A FLAUTA MÁGICA . MOZART E BERGMAN.

Nos anos 70 havia anúncio de cinema na TV. Na Globo. Lembro de ver, em 1976, este filme sendo anunciado. Parecia uma festa. Tinha algo de SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO. Não o vi na época. Vejo agora. É uma festa. É a ópera fantástica de Mozart. Há quem ache ser esta sua obra mais reveladora. Tem espírito da maçonaria. É infantil em seu aspecto mágico. E é a grande paixão de Bergman. Nos extras vemos Bergman ensaiando a obra. Ele está feliz. Ri muito. É Mozart. -------------------------------- O filme é 100% Bergman. Imensos closes nos rostos dos cantores. Pauline Kael disse que era a ópera mais íntima já feita. Ela se encantou com essa proximidade. Me encanto com a alegria dos atores-cantores. Dizem que as imagens eram suntuosas. Minha cópia não foi consertada. As cores estão esmaecidas. Pena. ---------------------------- Mesmo assim é um filme digno de Bergman. É medieval. É simbólico. E fala do medo, o sentimento mais forte do ser humano. Como em Fanny e Alexander, é uma folia feliz, mas com tons de pavor à espreita. Devo falar da música? Algumas canções são belas como...Mozart. ---------------------------- É uma obra doce. Mas que nunca nos deixa esquecer que todo doce acaba. É um sonho em meio a pesadelos. Mágico? Sim. Mozart tinha certeza que magia era cotidiana. Bergman amaria crer nela. ---------------------- O filme é uma esperança.

POR QUÊ INGMAR BERGMAN

Eu não acho a filosofia dos filmes de Bergman atraente. O que seus melhores filmes dizem nada tem de original. E não há neles nenhuma visão original sobre a vida. Bergman fala do mundo sem Deus, da falta de sentido da vida, da solidão invencível que vence todos nós. do mal como força que molda o mundo. Nada disso é original e nada disso é dito de modo novo. Em todo filme de Bergman, mesmo em alguns que adoro, Noites de Circo e Juventude por exemplo, há um momento em que ele explicita essa visão de vida, e é nesse momento que me sinto quase constrangido por ver uma obra tão maravilhosa ser quase estragada por duas ou três frases tolas. Mas então o que me faz amar tanto seus filmes? E por quê eu não sinto a mínima depressão em vê-los? A não depressão é simples de explicar: não afundo em tristeza porque não levo à sério sua mensagem. Bergman fala da tristeza e do desespero,mas seus filmes, tão perfeitos, tão bem feitos, são uma ilha de ordem no mundo. Eles negam o Kaos de um modo prático. Se a vida fosse tão absurda sua arte não existiria. O trabalho que ele realizou é vitória sobre o não sentido. Bergman é assim um anti Pasolini por exemplo. O cinema tosco e sujo do italiano advoga a inutilidade da beleza e a futilidade da razão. Bergman salva os dois valores. Amo profundamente seus filmes por causa exatamente de sua ordem e de sua retidão. Nada nele parece ao acaso. Nada fora do lugar. Tudo está posto onde sempre deveria estar e cada cena é um mundo perfeito dentro de si mesma. Bergman tem vários filmes fracos, mas nenhuma é mal feito. Nenhum é medíocre. Nenhum parece um erro. Mesmo os ruins são perfeitos. Erros que são como etapas a serem cumpridas. O modo como ele vê a vida é acima de tudo estético. Ele percebe a beleza da vida em sua aparência. A falta de sentido que ele advoga é sempre atenuada pela beleza de seus cenários, pela luz que ilumina seus filmes. Em Bergman a vida pode ser cruel, mas ela nunca é suja. Eis a razão de seu amor por Mozart. Veja Morangos Sivestres. Desde a primeira fala, um professor em seu escritório confessa sua solidão, há em todo filme a presença de uma mente nobre que tudo ordena e tudo clareia. O velho professor está só, sua vida está terminando, mas o que vemos é um mundo luminoso ao seu redor. Bergman se trai: o homem sofre, mas tudo ao redor fala em comunhão com o todo. Deus não é algo que jamais existiu, Bergman na verdade crê num Deus que saiu de cena e nos esqueceu. Um criador que se desinteressou pela obra. O oposto do que Bergman fazia, o sueco amava sua obra e nunca a deixava na mão. No mundo do cinema, apenas Kurosawa se aproxima de seu poder de ordenar o kaos e de dar luz às trevas. A grande diferença dos dois é que Kurosawa não nega seu amor aos homens, Bergman, tímido, tenta nos fazer crer que sente desgosto pela vida. Mas sua obra o trai. Citei a palavra nobreza. O cinema de Bergman é nobre por jamais apelar. Bergman não nos exige simpatia, não nos obriga a chorar, não barateia nada. Inexiste a sujeira da pornografia em seus filmes. Ele se recusa a explicitar. Alguns de seus filmes são rodeados pela dor, mas nunca há o barateamento da lágrima. Bergman jamais filmou para chocar. Ele é nobre, elegante, nunca histérico. Seus filmes, diferentes de qualquer outro tipo de cinema, são um universo aberto, frios mas nunca secos. Guardo suas obras como um tesouro dentro de mim.

BELEZA - ROGER SCRUTON

   Como vou começar a escrever sobre um livro tão imenso...Apenas 200 páginas, mas vasto, largo, direto e por isso cheio de ideias. Impossível lhe fazer justiça, então usarei a mais kitsch das artes como exemplo para o que quero dizer. O cinema. Vamos lá então...
  Em um mundo onde a experiência do sagrado entra em crise por causa da decadência das religiões, a arte passa a ter a incumbência, imensa, de dar aos homens esse contato com aquilo que seja mais importante: a beleza. Esse pensamento surge apenas na última linha do texto, e para chegar até aí, Scruton nos convence do porque da beleza ser um conceito tão importante.
  Ele não nos diz, de forma proposital, o que é a beleza; nos diz para que ela serve, por que ela existe e como ela funciona. Para Scruton, a busca pela beleza e o prazer com ela é um fato inerente ao homem. Toda cultura, em todos os tempos, produziu artefatos, arte, cerimonias, hábitos revestidos de beleza; e quando essa beleza atinge o grau de sacralidade, se alcança seu pleno poder.
  Nada há de místico nisso. Scruton evita tocar em conceitos como fé ou crença. Um objeto se torna sagrado quando " ele está neste mundo mas não é deste mundo". Trata-se de algo que é único e insubstituível.
  Temos essa experiência ao amar alguém. A pessoa amada, se torna sagrada, ou seja, uma pessoa que não pode ser substituída por outra. Ao mesmo tempo, tudo o que essa pessoa diz ou toca, passa a ter algo de único, de encantatório. Scruton tece então comentários sobre vicio e pornografia que são bastante esclarecedores. A beleza nunca vicia porque ela não dá, jamais, um prazer imediato. A beleza não pode ser comprada, não pode ser automatizada. Ela requer tempo, disposição, tato e seu retorno nunca é garantido. Já a pornografia é garantida. O prazer é imediato, automático e simples. Por isso ele pode se transformar em vicio, é uma satisfação, uma recompensa que se faz em um toque, com um objeto, simples e prático.
  Scruton, falando do corpo, diz que a pornografia nega o rosto, transforma corpos em coisas sem face. Há um ódio ao rosto na pornografia porque é no rosto que vive nossa faceta humana e sagrada. Não existem dois rostos iguais, olhos transmitem sentimentos, desejos, medos, tudo aquilo que a pornografia não aceita, ou seja, complexidades. Para a pornografia, um corpo é uma coisa que produz sexo. E sexo é o corpo.
  Sexo, no mundo pornô, é exatamente aquilo que Freud dizia, que o impulso sexual é um apetite como a fome e a sede, e como tal deve ser tratado. Triste falha! Sexo, no ponto de vista da beleza, é uma dádiva dada à quem merece. Muito mais que fome ou sede, ele requer uma pessoa escolhida, e só aquela que é escolhida. Visto desse modo, o sexo valoriza o ato, dá espiritualidade ao corpo e dignifica quem o usufrui. Torna-se o encontro de dois corpos, únicos e individualizados, que procuram um no outro encontrar sua sacralidade dando ao outro a sacralidade que ele tem.
  Eu disse que ia falar de cinema e acabei nada dizendo. Falo agora.
  Scruton tem amor por música e arquitetura. São suas artes favoritas. Mas ele fala de cinema numa certa hora. Ele diz que o cinema barateia a beleza, a faz ser kitsch e o kitsch é o maior mal do nosso tempo. Kitsch é a emoção que substitui a experiência. Ela empobrece o gosto e amortiza a vida. Explico.
  Digamos que sua casa tenha uma imagem de Jesus e outra de Maria. E voce leve no pescoço um terço. E ainda tenha uma tatuagem de São Jorge no peito. Tudo isso é kitsch. O kitsch é o movimento que se apossa de uma imagem sagrada e a transforma em coisa banal. Por exemplo, vivemos, para nossa grande dor, a vulgarização do funeral, do casamento e do aniversário. Ao serem usados símbolos barateados, ao se repetirem por convenção atos e palavras sem compreensão do que elas significam, se transformou em puro kitsch, aparência sem substãncia, aquilo que era aparência da presença do sagrado.
  O homem precisa desse objeto. E hoje o procura num carro especial, num vestido exclusivo, numa casa isolada. Nada encontra nisso, apenas mais kitsch.
  No cinema, Scruton, para minha grande alegria, cita Ingmar Bergman como um diretor que realmente sabia produzir beleza. Para Scruton, filmes como A Fonte da Donzela e O Sétimo Selo atingem o alvo em cada fotograma. Todos os objetos em cena, cada xícara, animal, janela ou vestimenta, têm um motivo para estar presente, cada cena tem um porque dentro do todo e cada fotograma pode ser enquadrado, os filmes são segundos e minutos de beleza que se sucedem. Como maior exemplo ele cita Morangos Silvestres, o filme que serve para percebermos a diferença entre imaginação e fantasia.
  Imaginação é criar o novo dentro da realidade. Nessa imaginação tudo tem regras próprias e funciona de acordo com a imaginação do criador, o artista. Já na fantasia o que se faz é falsear a realidade, pretender ser real sendo fantasia. É uma verdade que parece morta, porque ela é uma realidade mentirosa. Há milhares de exemplos de filmes assim, desde policiais toscos até pretensas obras sérias que são pura fantasia.
  Outro fato que Scruton destaca, é que na verdadeira obra de arte, sabemos todo o tempo que o que vemos é uma imaginação, uma criação de uma mente, e não a vida real. Estamos diante de um filme, que nos emociona profundamente, mas é sempre um filme, e por isso é belo. Já a falsa obra de arte ela nos confunde e tenta produzir tanta emoção quanto possível. Torna-se um tipo de hipnose onde esquecemos estar diante de uma obra artificial, e tontos, apenas sentimos aquilo que desejam que sintamos.
  Há um preço pela beleza. Quando ouvimos uma obra de Wagner, vemos um filme de Bergman, ou lemos Tolstoi, o autor nos pede várias coisas. Atenção, tempo, calma, disposição, alguma cultura, detalhismo. No kitsch tudo é dado de graça. Voce terá risos, choro, filosofia, pensamentos bonitos, tragédias terríveis, tudo à custo de quase nada e sem o menor esforço. Rápido, destruidor, dilacerador, e , claro, sem nada que dure e permaneça. Ou pior, dando ao expectador a impressão de ter visto algo de belo, quando na verdade o que ele viu foi algo de sensacional. Como rastro, fica o vicio. Nesse regime de emoções baratas, a pessoa passa a exigir isso da vida, ou seja, satisfação imediata. E esse tipo de satisfação somente os vícios podem dar.
  Scruton fala ainda da beleza da natureza, como ela funciona em nós, da beleza dos pequenos objetos que nos cercam, da beleza de uma rua discreta ( ele é inglês, ele ama a beleza discreta ). Não preciso dizer que é um livro belo.é digno de seu tema.
 

O MUNDO MARINHO DE WES ANDERSON E O MUNDO DRAMÁTICO DE JOHN BOORMAN

   O novo filme de John Boorman, Queen and Country é maravilhoso. Continuação tardia de seu grande filme de 1986, ele encontra os meninos da segunda guerra em 1952. Agora a guerra é a da Coréia, eles estão com 20 anos e descobrem o que é a vida. O filme é maravilhoso porque ele tem três linhas de estilo que se cruzam ( ou seja, Boorman continua a correr riscos ), ele começa parecendo um tipo de MASH inglês, uma comédia satírica sobre o exército. Depois, quando começa a história do amor do rapaz, o filme cria um clima irreal de sonho, lembra até o EXCALIBUR, que John fez em 1981. E por fim, um estilo de horror quando ele se aproxima do final. O sabor que fica é bem amargo.
  Várias cenas são emocionantes e o filme inteiro transborda beleza. Absurdo, essa a palavra que define a obra de Boorman. Ele foi o mais novo dos "novos" diretores ingleses surgidos entre 58-62. Schlesinger, Richardson, Lester, Reisz, Ken Russel, Loach, Clayton. Boorman é o último em atividade. Dentre seus filmes temos INFERNO NO PACÍFICO, DELIVERANCE, EXCALIBUR, LEO THE LAST, AGONIA E GLÓRIA. Seu modernismo é do tipo social. Todos os seus filmes criticam o mundo, apelam aos sentimentos de ira e de reforma, ele é engajado.
  Wes Anderson é pós-moderno, ou seja, podemos traçar seu caminho de Warhol à Duchamp. Bem americano, ele usa toda a informação a seu redor e brinca com ela. As mistura. Como faz Tarantino, seus filmes pegam aquilo que normalmente não é visto como Arte e as embaralham. Mas atenção, aleatoriamente. São filmes que não têm um intenção. Eles são aquilo que parecem ser: imagens e sons, uma história que nada mais quer dizer que aquilo que se vê. Tarantino pega filmes nada nobres ( western italiano, filmes japoneses pop, blacks movies, noir ) e os embaralha. Ele se diverte e nos diverte usando seu coração. Wes faz a mesma coisa, mas suas referências são outras.
  Eu assistia em 1978 a série de Jacques Cousteau. E ouvia Bowie. Seu filme marinho é exatamente como se um garoto de 12 anos fizesse um filme. E isso é um elogio.
  Desse modo, Wes Anderson, assim como Tarantino, são anti-Von Trier, anti-Almodóvar e anti-Bergman. Eles não querem chocar, fazer um acerto de contas ou se confessar. Eles apenas filmam. Aquilo que desejam.
  Interessante observar que tanto Boorman como Wes amam Kurosawa. Mas olham o mestre de formas diferentes. Boorman ama o autor dramático. Wes adora o visual de seus filmes.
  Eu gosto dos dois: o visual e o drama forte e duro. Mas sei que o futuro é de Wes. Uma doida mistura de arte elevada transformada em Pop e do lixo transformado em objeto de culto.
  Adoro isso!

LANTERNA MAGICA- AUTOBIOGRAFIA DE INGMAR BERGMAN, NO FIO DA NAVALHA

   Bergman mal fala de cinema. E nunca se coloca como algo acima do competente. Então o que ele fala? Que odiava o pai por seu rigor, que odiava a mãe por sua frieza, ele conta que tentou matar o irmão quando era criança, depois quase assassinou a irmã e esbofeteou o pai antes de sair de casa.  Tudo descrito com detalhes. Não é uma leitura agradável e Bergman nada tem de simpático. Mulherengo, abandona suas esposas e mal percebia a presença dos filhos. Como todo problemático, Bergman é completamente um umbigo. Ele fala de suas dores, seus erros, suas falhas, seus traumas. E cansa. Cansa sua falta de humor, cansa o modo como ele ignora tudo aquilo que desejamos saber. Ele fala muito de sua carreira no teatro. Que não é exatamente aquilo que aqui no Brasil mais sabemos sobre Bergman.
   Claro, Bergman escreve bem, e algumas descrições são soberbas. Assim como o modo, pena que breve, em que ele descreve o cinema de Tarkovski, Kurosawa, Bunuel e Fellini ( diretores que filmam como em sonho ). Mas o livro frustra quem como eu tem amor por seu cinema. Ele se mostra um homem frio, rigido, como ele mesmo diz: um sueco.
   O que salta das folhas escritas em ritmo de montagem: a enorme influencia que seu modo radical de ver a vida teve sobre diretores, de Woody Allen, que escreve um belo texto introdutor, a Von Trier. Mas Ingmar foi o criador. Seu cinema dura para sempre. Mas lendo este livro sinto o quanto deve ter sido duro viver a vida de Bergman, e sorrio sentindo saudades dos livros de Huston ou de Wilder, autores que conseguem sair de seu casulo e se anular em favor de uma historia. 
  Estranho, amo muito os filmes de Bergman, mas nunca o ser Bergman.

SEI SHONAGON, DOWNTOWN ABBEY E LLOSA

   Interessante entrevista com Mario Vargas Llosa. Ele tem uma definição do que seja essa moda de séries de tv que é perfeita: São boa diversão. Descansam. Mas nunca são arte. 
   Eu concordo. Tem gente que trata Downtown Abbey, que gosto, como arte. Por favor! Só se voce desconhece arte! É diversão pop. Apenas isso. De bom gosto e nada ofensiva a pessoas "esclarecidas". Nada mais que isso. 
   Llosa destaca Faulkner como o último grande autor moderno. Bem...Faulkner foi um gênio. E sua escrita ainda é a coisa mais complexa dos últimos 70 anos. Ele antecipou o mundo cheio de ruidos e de informação em que vivemos agora. A multiplicidade de pontos de vista e a ausência de uma verdade. Para Llosa só Faulkner pode ser comparado a Tolstoi e Cervantes nos últimos 70 anos. Maybe...
   João Pereira Coutinho cita Evelyn Waugh. É um texto chato sobre crueldade, hipocrisia etc. O que me importa é que ele coloca Waugh lá em cima. Ora, que bom! Será que algum mocinho ao ler isso vai fazer o que eu fazia quando tinha 15 anos? Vai a enciclopédia saber quem foi Evelyn Waugh? Ou será que a preguiça e a falta de interesse venceram?
   Recebo a nova Filosofia, revista mensal da editora Araguaia. Walter Benjamin. O modo de pensar do chinês clássico. O carnaval e Dionisos. Well...Benjamin é o mais atual de seus contemporâneos. Porque? Ele era o mais aberto. Não se dogmatizou. Se abriu para a religião, a ciência, a comunicação, as artes. Chineses pensam em termos de mudança. Pouco usam o verbo "ser". Usam "estar". Desse modo voce nunca é alguma coisa. Voce e o mundo estão em um momento que será sempre uma transformação. 
   Querer conhecer um modo de pensar é começar a estudar a lingua em que esse pensamento de expressa. O fato da gramática italiana ser pautada pela musicalidade dos sons, o fato do francês desejar a absoluta clareza dizem muito sobre o que eles são e de onde vieram.
   Romero Freitas diz que o cinema é uma linguagem e que portanto ele não é palavra, música ou pintura. Ele diz por movimento. Lemos o movimento sem perceber. Se conseguimos narrar verbalmente e explicar racionalmente um filme isso significará que ele é falho. O cinema não pode ser explicado. Ele existe. Romero cita como exemplo dois momentos: o olhar de Monika para a câmera em Monika e o Desejo de Bergman; e  todo o Joana D'Arc de Dreyer. O olhar de Monika diz o que? Ele diz, mas o que é dito? Impossível dizer. Impossível descrever. Nós vemos e sabemos o que ele diz. Mas não podemos dizer. Não podemos porque não é literatura. Não é filosofia. É puro cinema. 
   Flavio Paranhos diz em outro artigo, sobre justiça, que O Sol é Para Todos o comove ao ponto de chorar. É o único filme que lhe causa choro. Somos dois. Atticus Finch é o maior nobre do cinema.
   Saiu e já comprei: O Livro de Cabeceira de Sei Shonagon. Escrito no ano 500 de nossa era, é o mais atual dos livros. Uma concubina observa a vida e a descreve num diário. Tudo o que ela escreve parece que foi escrito hoje. Sei Shonagon escreveu um tipo de blog afetivo 1500 anos atrás. Seu livro é um convite para  revalorizar a vida.
   Editora 34, custa 80 paus. Vale mais. 

DAVID FRANKEL/ GRACE KELLY/ WOODY/ FREARS/ BETTE DAVIS

   TODOS DIZEM EU TE AMO de Woody Allen com Alan Alda, Julia Roberts, Goldie Hawn, Edward Norton, Tim Roth, Natalie Portman
É sempre um prazer ver esse povo dos filmes de Woody Allen. São intelectuais bem de vida, com suas casas bem decoradas, suas roupas confortáveis e seus dramas sob controle. É gostoso ver esse povo espelhar aquilo que a gente pensa ser. Este é dos que mais gosto. Lembro que em 1999, na tv, ele me ajudou a superar uma grande dor de cotovelo. O filme tem belas cenas em Paris e Veneza. O elenco é deslumbrante. E eles cantam!!! As canções são ótimas. E no fim, em reveillon, eles cantam Hooray For Captain Spaulding, bela homenagem aos irmãos Marx. Nota 8.
   UM DIVÃ PARA DOIS ( HOPE SPRINGS ) de David Frankel com Meryl Streep, Tommy Lee Jones e Steve Carell.
O povo da Folha adorou este filme. Eu achei chato de doer! Frankel faz carreira sólida com filmes tipo nada. Fez o Prada, o Marley e agora este. Seu estilo é nojento, taca música pop em toda cena. O cara tá andando no mercado e lá vem vozinha com piano; o cara tá dirigindo e tome voz e violão...um saco! Usar música pop em filme adianta quando o diretor entende que a música é secundária, ela comenta, não carrega a cena nas costas. Ah, o filme fala de um casal de meia idade que não transa mais. Todo o filme são sessões de terapia. Meryl faz caricatura, está nada bem. Tommy está excelente, a hora em que ele se abre é a única cena boa do filme. Típico filme que tenta ser sério e adulto. Erra. Todo adolescente pensa que ser adulto é ser chato e triste. Frankel é um adolescente. Nota 1.
   OS GALHOFEIROS de Victor Heerman com Groucho, Chico, Harpo, Zeppo e mais Lilian Roth
Groucho é anunciado como o grande Capitão Spaulding. Sua entrada é digna do melhor de Bugs Bunny. Adoro este filme caótico! É o segundo da turma, e tem de bônus a adorável Lilian Roth. História? Tem alguma coisa a ver com roubo de pintura. Talvez seja meu filme favorito dos irmãos. Nota DEZ.
   O DOBRO OU NADA de Stephen Frears com Bruce Willis, Rebecca Hall, Catherine Zeta-Jones
Não dá pra dizer que Frears está em decadência, afinal, recentemente ele fez o ótimo A Rainha. Em seu crédito temos ainda Alta Fidelidade, Ligações Perigosas, Os Imorais, Minha Adorável Lavanderia; e meu favorito, The Hit. Mas neste seu mais recente filme, não sei se passou aqui este ano, ele erra feio. O filme não é ruim, é desinteressante. Fala de uma stripper que passa a trabalhar com um agenciador de jogatina. O filme não chega a irritar, Frears sabe dar ritmo, mas nenhum dos personagens importa. São mal escritos. O roteiro é muito, muito ruim. Bruce faz o seu tipo número dois, o "brega meio doido", Zeta-Jones está com um rosto irreconhecível e Hall, filha do grande Peter Hall, um dos maiores do teatro inglês, mostra ser muito boa atriz, mas pouco tem a fazer. O filme é vazio. Nota 2.
   UM BARCO PARA A ÍNDIA de Ingmar Bergman
É o terceiro filme do mestre, de 1947, tempo em que ele ainda aprendia. Bons tempos, um diretor novato podia aprender-fazendo. Bergman só encontrou seu estilo no sétimo filme. Mas aqui já está em semente todo o futuro do estilo Bergman de cinema: mar,  isolamento, conflito com pai, sexo. Neste filme, que em seu tempo jamais poderia ser feito em Hollywood, temos um filho que apanha e bate no pai, esse pai traz a amante para morar com a familia, o filho a rouba do pai. O filme é forte e lembra os amados filmes do realismo poético francês, filmes de Carné, de Vigo, que Ingmar via muito então. Sinto que ninguém sabe filmar praias como ele. Visualmente o filme é primoroso. Nota 7.
   O QUE TERÁ ACONTECIDO A BABY JANE? de Robert Aldrich com Bette Davis, Joan Crawford e Victor Buono
Foi um imenso sucesso nos anos 60, e nos 70 passava muito na tv. Causou um choque em seu lançamento por seu mal-gosto. Hoje parece até elegante. Bette é irmã de Joan. Joan está presa a uma cadeira de rodas. Bette tortura Joan. Motivo? Joan fazia sucesso no cinema dos anos 30, Bette não. O filme é brilhante. Ficamos duas horas presos num misto de horror e admiração, prazer e medo. Aldrich, que logo depois faria a obra-prima The Dirty Dozen, faz miséria. O filme tem ritmo, tem ousadia e um humor hiper negro delicioso. Mas devemos dar vivas a grande, grande, grande Bette Davis. Mal maquiada, velha, suja, ela assusta com sua voz rouca, seu modo bêbado de andar, seus olhos esbugalhados. E melhor, percebemos o quanto ela se diverte em fazer aquilo. É um desempenho fascinante. Se Kate Hepburn foi a única a lhe fazer frente, devo dizer que Kate não conseguia fazer esses tipos tão vulgares. Tudo em Kate parece sempre "alta-classe", mesmo ao fazer gente pobre. Bette não, talvez por não ter a origem "nobre" de Kate, ela fazia mendigas, bebadas e prostitutas como ninguém. Este filme fica com voce. Repercute. Nota 9.
   O CISNE de Charles Vidor com Grace Kelly, Alec Guiness e Louis Jourdan
Na curta carreira de Kelly, este é de seus piores filmes. Em 1910, a mãe de Grace, tenta casa-la com o herdeiro da coroa. Filmado em belo palácio, claro que o filme é bom de se ver. Mas a história é chata, aborrecida, sem nenhuma atração. Guiness está ótimo. E Grace Kelly foi dentre as belas a mais bela das atrizes. Mas...o que fazer com roteiro tão perdido? Nota 2.

FAUSTO SOKUROV, O CINEMA DE ARTE É NOSSA SINA

   Toda forma de arte ao nascer e em toda sua fase mais pura não possui a divisão entre popular e artístico. Shakespeare era assistido por açougueiros e mestres de filosofia, e Haydn compunha para reis e ciganos. A divisão na literatura se dá por todo o século XIX e na música nos fins desse mesmo século. Mas isso aconteceu também com a pintura a dança e até com a culinária. No cinema, como com o jazz e o rock, isso aconteceu em poucos anos. O jazz dos anos 30 era uma coisa só. Duke Ellington ou Count Basie faziam arte ( em alto nível ) mas eram ao mesmo tempo populares. O be- bop faz a ruptura. No rock, Beatles ou Dylan foram simples e soberbos até 1967, e então se fizeram complicados e às vezes fascinantes. Com o cinema a coisa é bastante triste.
  Quando Fritz Lang ou Murnau faziam seus filmes eles não faziam filmes de arte. Eles faziam cinema. Renoir e Clair, Chaplin e Keaton, Dreyer e Ford não viviam em guetos separados com rótulos fixos. Eles navegavam entre o popular e o erudito. Agradavam, às vezes, o operário e o filósofo. Isso se manteve até os anos 60.
  Billy Wilder e Hitchcock jamais pensaram em fazer arte. Eles faziam filmes, aqueles que queriam fazer, e eram filmes "fáceis de ver" e ao mesmo tempo, cheios de sentidos, de pistas, de arte enfim. Mas esses dois campos foram se afastando por toda a década de 50. Essa culpa, se é que é uma culpa, pode ser creditada a Bergman. Mas também a Kurosawa e Buñuel. A crítica e os festivais começaram a tratar esses cineastas como a "realeza" do cinema. Os comparavam a Tolstoi e Proust e de repente, ser simplesmente um "cineasta" passou a parecer pouca coisa. Era preciso ser Bergman, um artista. E infelizmente, muitos diretores geniais como Hitchcock e Huston passaram a tentar ser "artistas". E se deram mal. Eles eram cineastas.
  Esses dois mundos se separaram cada vez mais, mas uma corda fina se esticou entre eles. Os artistas foram se tornando cada vez mais pedantes, os cineastas, cada vez mais cínicos. E alguns, os melhores, tentavam corajosamente, se equilibrar sobre essa corda que une os dois mundos. Fellini fazia isso, como fazia Truffaut, Coppolla e Malle. O que os artistas não percebiam é que Bergman sempre fez isso. E Kurosawa também. Por esse motivo eles são cineastas antes de serem artistas.
  Hoje a corda se transformou numa navalha. Cineastas artistas fazem filmes que não são mais cinema. São instalações, teses sociológicas, exibicionismos, experiências com imagens. E cineastas fazem filmes que procuram ser o mais cinemáticos possível, ou seja, ação e som que são apenas ação e som. O popular se faz hiper-popular, o artístico se faz como "filme de festival". Não se misturam. Claro, alguns poucos abnegados, que são inspirados pelo passado do cinema, tentam reatar os dois mundos. Tarantino, Soderbergh, Joel Coen, PT Anderson, Almodovar... procuram unir o popular e a arte. `As vezes acertam.
  Adoro A ARCA RUSSA de Sokurov. Fausto é um dos filmes mais chatos desta década de filmes chatos. Nem Von Trier consegue ser tão bocejante. O filme de Sokurov exala em cada fotograma uma afirmação: -Isto é ARTE. Se eu fosse Paulo Francis eu diria, "O mundo Jeca que nos deu Bjork e José Saramago chega à Russia".
  Tem até que ideias boas o tal filme. E não pense que o mundo do filme é o mundo de Goethe. É nosso mundo. Fausto em Goethe deseja o saber. Ele quer conhecer o segredo de tudo. Quer ser Deus. O Fausto de Sokurov, de 2012, quer ser feliz. Ele quer dormir, comer e amar. E ter dinheiro, poder. É um Fausto muito menos fascinante, sem coragem. O Fausto de Goethe foi o modelo para o homem moderno, um Titã à procura do saber. O Fausto 2012 é um deputado de Brasilia.
   O filme, como em Goethe, tem uma visão gnóstica do mundo. Deus existe e criou a vida, mas todo este universo é obra de Mefistófeles, o anjo negro. Se Sokurov não fosse tão artista, ele faria Mefisto como um sedutor. Mas ele pensou que isso seria pop, e fez dele um monstrengo fedido. Porque? A beleza é muito diabólica. Welllllll.....
   Há uma cena de beleza transcendente no filme ( que me levou às lágrimas ), é um longo close silencioso de Margarida. A luz a invade e ela se torna um anjo. Se Fausto pudesse ser salvo ele teria sua beatificação naquele momento, mas ele faz o contrário, estupra Margarida e faz dela uma puta. Em Goethe isso simboliza a destruição do bem pelo conhecimento, mas também pode ser a destruição da natureza pelo homem. Margarida é natural, Fausto é inatural.
  Mas de que adianta o filme ter um momento de tanta beleza se temos de caminhar horas de tédio até alcançar esse cume? Em A Arca Russa temos duas horas de incessante prazer, e o filme tem tanta profundidade quanto Fausto. Ou mais.
   Bem, de qualquer modo este filme tem uma bela função. Serve para que aqueles caras que odeiam e desprezam bons filmes pop ( westerns, comédias, romances ) sejam obrigados a passar por seu grande obstáculo: Hey, voce que se acha um intelectual só por ter adorado Clube da Luta ou Peixe Grande, saiba que aquilo é cinemão, popular como Homens de Preto ou Avatar. Isto é que é a tal arte para poucos. E então? Gostou? 
  Quanto mais entendo de cinema mais tenho a certeza de que nada foi melhor que o cinema dos anos 30.

CONVITE PARA JANTAR. ADIVINHE QUEM VEM...

   Paulo Francis era fã de Bergman. Ele dizia que o sueco era o único que às vezes conseguia atingir a altura da literatura. Mas ele amava também o cinema mais popular. Se divertia imensamente com ....E O VENTO LEVOU e as doces bobagens de Doris Day. Falava que Hollywood sabia fazer lixo que não ofendia a inteligência. Amava Peter Sellers e o inspetor Clouseau.
   Mas o que desejo aqui destacar é a resposta que ele deu a Nelson Motta sobre PULP FICTION. Paulo até gostou de Pulp, mas fez uma pergunta muito esperta a Nelsinho. "-Você convidaria algum daqueles personagens para jantar?"
   O sentido da pergunta não é moralista. Nem mesmo uma coisa do tipo: eles seriam divertidos? A questão é a seguinte: Seria interessante jantar com eles? Eles teriam algo a dizer?
   Francis era assim. Perguntava aquilo que parecia simples, mas que ia ao fundo da coisa. Porque agora eu penso....
   Não seria fantástico jantar, calmamente, com o aristocrata empobrecido de A SALA DE MÚSICA de Satyajit Ray? E os personagens de AMARCORD? Jantar com eles poderia mudar sua vida!
   Penso no prazer de um faisão e conhaque com charutos ao lado do Henry Higgins de MY FAIR LADY. Nos dias que eu teria de conversa com o diretor em crise de OITO E MEIO. O Gregory Peck de TO KILL A MOCKINGBIRD, o Paul Newman de GOLPE DE MESTRE.
   Eu não sei se são esses personagens fascinantes que definem um grande filme, mas eu adoraria jantar com o Michael Douglas de GAROTOS INCRÍVEIS ou o Clint Eastwood de CORAÇÃO DE CAÇADOR. E detestaria estar numa mesa com o cara de GRAN TORINO ou aquele de DIRTY HARRY.
   Alguns atores têm uma quantidade imensa de personagens "convidáveis". Cary Grant deve ter mais de 30. Mas pensando bem, dá pra unir as duas paixões de Francis numa coisa só.
   Não há nenhum filme que tenha uma maior quantidade de personagens "convidáveis" que FANNY E ALEXANDER, de Bergman. Seria uma dádiva dos céus jantar longamente ( Natal? ), com aquela familia inteira. Melhor ainda, passar longas férias com eles. ( E por falar em férias, imagine passar um verão com todos os personagens de Monsieur Hulot...um paraíso!).
   Mas devo dizer que eu, acima de tudo, iria adorar poder receber para jantar, em mesa cheia de doces e vinho do Porto, o professor feito por Victor Sjostrom em MORANGOS SILVESTRES. Teríamos uma conversa sobre a memória, o tempo e o sentido de recordar. Falaríamos então sobre nossos pais, as mulheres e a estrada. Esse seria meu primeiro convidado. E de certo modo tenho o recebido desde quando o conheci.
   Paulo Francis matou a charada.