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OLHO DE GATO-MARGARET ATWOOD

Melhor que "Lago Sagrado" ? Talvez.
Para Atwood, o tempo é questão central da vida, e aqui ela nos mostra que a dor da infância é a única que permanece. Elaine cresce no subúrbio de Toronto, viaja com seus pais, felizes e pouco convencionais, para as matas canadenses, tem um admirável irmão e amigas como todas as amigas aos nove anos são : cruéis. Cordelia é a mais amada e a pior das três amigas, uma líder egoísta e narcisista. Lendo a primeira parte deste longo volume, nos pegamos apaixonados por Elaine. Ela é um patinho manco, uma desaptada selvagem, uma menina. Somos testemunhas da terrível dificuldade que é a de se crescer, existir, escolher, conviver. O texto é poético, leve, belíssimo em sua descrição de lugares, objetos e roupas antigas, mas o desespero é constante, a solidão abissal.
Ela cresce e acompanhamos sua adolescência e sua vida na faculdade. Vem o primeiro casamento, a filha, a maturidade. Elaine se torna uma pintora, uma insegura mulher madura, uma viajante entre pensamentos e resquícios. Vaga pelo feminismo sem nunca chegar a ser feminista, como não se sente confortável no meio da arte. Percebe que jamais deixou de ter nove anos e que jamais deixou de ser atormentada e seduzida pela melhor amiga daquele tempo : Cordelia.
As primeiras duzentas páginas, que tratam da infância, dos 7 aos 13 anos de Elaine, são simplesmente magníficas. Cada parágrafo brilha como as bolinhas de gude que ela adora, cada capítulo é cheio de vida, de encanto, nos conduzindo a nossas próprias lembranças de nossa própria infância. Apesar dela ser menina, canadense e criança dos anos 40, me peguei em comunhão profunda com toda lembrança, toda alegria e todo medo de Elaine. É magia total.
O livro se banaliza conforme ela cresce. Nunca se torna fraco, mas sentimos falta do mundo do início. Mas tinha, precisava ser assim ! Pois o personagem sente, de forma nunca assumida, o mesmo que o leitor : um fascínio, difícil de ser aceito, pelas coisas da meninice.
No final o livro volta a crescer, e Elaine percebe que o que ela sempre tentou foi deixar os nove anos para trás, esquecer. Mas num avião, finalmente, ela entende. Que a velhice pode ser uma benção, que ela pode nos conceder a paz de não mais se preocupar com aparência, boa educação, sexo. Que ela pode nos dar a liberdade de dar uma banana para o mundo. Mas que essa velhice só seria completa se Cordelia estivesse a seu lado.
Eis a grande melancolia : é preciso completar o círculo, levar algo ou alguém com você, uma testemunha de quem você realmente é, um companheiro de trajeto. Elaine perdeu Cordelia, e Cordelia se foi para sempre.
Uma dor fina, incômoda, constante, se desprende desse livro. È a dor que ela sente. A dor de quem vê demais e questiona muito. Elaine é menina/moleque, moça/desajustada, senhora/esquisita; tudo nela é vazio, e a vida nela é plena. Amamos aquela criança que jamais muda dentro da mulher. Torcemos por ela. E terminamos a leitura entendendo melhor nossas mães, nossas namoradas ou nossas irmãs. Não é pouca coisa o que Atwood nos dá. Sua mente é gigantesca.

margaret atwood, tchecoslováquia, o amor verdadeiro

Ainda repercute em mim o livro de Atwood. Ele é tudo aquilo que o filme de Sean Penn poderia e deveria ter sido. É aquilo que Jheremiah Johnson secretamente é, e aquilo que Vanishing Point não poderia ser. Penso no sagrado.
O amor verdadeiro é sagrado. Pois se tudo o que é sagrado é intocado, o amor é intocável. Nós construímos um mundo à parte com o amor. Uma redoma o protege do mundo vulgar, frio, mesquinho, e vivemos em contato com o eterno, o sagrado, dentro dessa redoma. Mas é necessário um enorme cuidado : qualquer mentira, qualquer brutalidade destrói esse idílio. Macula sua necessária pureza. O amor então, após essa mancha, pode continuar, mas seu caráter sagrado se perdeu. Jamais será reencontrado. A relação sobreviverá como nostalgia do paraíso.
O sagrado necessita ser secreto. Uma coisa que é sómente sua. Nessa relação de voce com aquilo, será atingido o todo. Haverá uma ligação com tudo que existe ou existiu através de um contato muito íntimo, particular e sem código. Conto uma história que lí há alguns anos :
Quando o muro de Berlin caiu, foram à Praga e lá entrevistaram Vaclav Havel ( para quem não sabe, herói da resistencia tcheca contra os comunas. Escritor e primeiro presidente da nova república ). Havel contou que nos anos mais negros da repressão, ele, Kundera e Forman se reuniam no porão da casa dele. Um contrabandista conseguia discos americanos para eles e então eles os colocavam para tocar. Era um ato de resistência. Mas havia um disco que era tão livre, tão arrojado, tão etéreo que a relação deles com esse disco era SAGRADA. Tratava-se do primeiro disco do Velvet Underground.
Havel contou essa história para Lou Reed, quando os dois se encontraram em Praga, livres. É possível encontrar o sagrado num disco ? É, pois já a vivenciei.
Em 1981 comprei um muito caro e muito raro disco do Velvet Underground. Jamais havia escutado a banda. A conhecia por ter lido um artigo de revista. Nenhum amigo meu havia sequer ouvido falar de tal grupo. Velvet ? O que é isso ? Cheguei em casa e o coloquei para escutar. Alí estava : a coisa mais original, ousada, diferente e corajosa que eu poderia querer. Uma sensação de plena liberdade, de perigosa loucura, de além-do-tempo. Isso ainda não era um ato sagrado. Mas durante um ano voltei toda noite àquele disco. No escuro, geralmente bebendo, sentia que eu era o único cara em todo o mundo que escutava aquele disco. Ele era meu e só meu. Falava comigo. Ensinava coisas que não podem ser faladas. Me fazia transcender minha vida. O Velvet Underground era MINHA CASA.
Mal eu sabia que 3000 caras, espalhados pelo planeta, ouviam ao mesmo tempo o mesmo disco. Sentiam exatamente o que eu sentia. E que esses caras formariam bandas e dominariam o pop mais sério pelos próximos 30 anos... Criava-se o mito de que pouca gente escuta Velvet Underground, mas que os poucos que os escutam se tornam artistas. Eu não me tornei. Mas tive uma relação secreta, íntima com aquelas músicas que jamais foi repetida com disco algum. Houve algo de sagrado alí. O Velvet era uma gruta no meio de um bosque.
Hoje é dificil para uma banda conseguir isso. Ela cai na rede, faz clip, montes de shows e perde seu aspecto sagrado, não profanado, virginal, só para voce. Todos vão tocá-la. Ela será profanada.
Portanto, é impossível se falar daquilo que é sagrado para voce. É impossível ter uma relação sagrada em grupo. Sempre será voce em relação a alguma coisa maior que a vida e o universo.
Já tive essa relação com um livro, um filme, e o tal disco. Hoje é impossível. Tudo é de todos. Todo livro é dissecado, todo filme é acessível, todo disco é pop. Tudo CAI na rede e não SOBE à eternidade. ............................. Mas ainda há uma árvore só minha. Que fala uma língua que só eu compreendo. E que me abre as portas para além daquilo que penso eu ser. Ainda existe um canto na serra. Onde nenhum mal é possível. Lá eu deixo de ser eu. Lá eu sou a serra. Mas até quando ?

o lago sagrado- margaret atwood

As deusas da literatura têm sido generosas com suas seguidoras. Iris Murdoch, Doris Lessing, Muriel Spark, Margueritte Yourcenar, e a melhor delas, Margaret Atwood, têm abrilhantado a literatura destes últimos 30 anos. Atwood é canadense e era ela, ao invés de Lessing, que deveria ter levado o Nobel 2006. É opinião geral : talvez ela seja agora, com a morte de Sebald, a maior escrita deste inicio de século. Sua escrita é seca, curta, direta, pouco saborosa, nada rica. Mas seus pensamentos são profundos, simbólicos e desvendam claramente o que significa ser mulher. ( Ou o que significa não ser homem. )
O Lago Sagrado é seu segundo livro, lançado em 1972, tendo causado muita impressão na época. Alberto Manguel o considera mágico e eu sempre o procurei nos sebos. Atwood tem 4 livros em catálogo, mas não este. Vamos ao tema .
Dois casais de namorados vão ao norte do Quebec. Para procurar o pai da narradora, que sumiu por lá. O namorado, Joe, é um calado escultor fracassado. David é um esquerdista, que vive chamando os americanos de porcos fascistas. A garota de David é Anna, que é obcecada pela aparência, se maquiando ao acordar e usando o sexo como produto de troca. Com elementos tão ralos, Atwood tece uma das histórias mais assustadoras que já lí.
O tema é a volta à natureza, e somos testemunhas da transformação da narradora : ela começa a se tornar uma mulher-selvagem, uma quase deusa-natureza, uma coisa-parte-do-tudo, um ser além-tempo. No começo ela não exita em espetar sapos vivos em iscas para pesca; no final, sentimos que ela é o sapo, o peixe e o lago.
O livro descreve tudo isso com maravilhosa precisão. Nos assustamos porque mudamos com ela, vemos o que ela vê e sentimos sua desintegração. Mas há mais coisas : o livro nos joga na cara a falsa disputa em que o amor se tornou, a americanização do mundo ( fazendo de todos, sem que o percebam "americanos" ), a indiferença com a morte, a voracidade sem sentido. E o fosso que existe entre "americanos" e os não "americanos".
Cito algumas frases de Atwood :
" Tudo o que valorizo nele é físico. O resto é desconhecido, desagradável ou ridículo. Não ligo para seu temperamento."
" Não sou contra o corpo ou a cabeça, só contra o pescoço. Cria a ilusão de que corpo e cabeça estão separados "
" Amor sem medo e sexo sem riscos. Quase conseguiram nos fazer crer que isso fosse possível."
" Ela não podia ser domesticada, comida ou treinada para falar. A única relação possível com ela era matá-la. Por isso matavam as garças e as penduravam em cruzes, como Cristos. Alimento, escravo ou cadáver : opções que os animais tinham."
" Não importa de que país sejam, são americanos. São o que nos espera. No que estamos nos transformando. São como um vírus que ataca o cérebro. Atacam por dentro, quem tem a doença não percebe. "
" E a outra garça, destruída e pendurada numa árvore. Se morrera de boa vontade, consentindo, se Cristo morrera de boa vontade, qualquer coisa que sofra e morra em vez de nós, é Cristo. Se os americanos não matassem aves e peixes, nós seríamos os mortos. Os animais morrem para que possamos viver. Os caçadores do outono matando as corças, isto também é Cristo. E nós as comemos enlatadas ou de outro modo: somos comedores da morte, a carne enlatada de Cristo ressuscitando dentro de nós, concedendo-nos a vida. Mas nós nos recusamos a venerar. O corpo venera com sangue e músculos, mas a cabeça é avara, consome e não agradece."
" Os caixões foram inventados para trancar os mortos. Não permitem que eles se transformem em outra coisa, flores, raízes, sementes."
Nos últimos capítulos deste originalíssimo livro, a personagem abandona tudo que tenha sido tocado pelo homem : toda pegada, todo metal, toda trilha. Torna-se algo entre animal e vegetal, cheia de poder, cheia de mutismo. Esquece das palavras, dos nomes, e magistralmente, prepara-se para retornar, sem planos, sem passado nenhum, sem uma narrativa.
Margaret Atwood não escreveu aqui uma obra-prima. Estéticamente o livro não se sustenta. Mas registrou um testemunho visceral, claro, límpido, daquilo que significa a vida, daquilo que seria um retorno a origem, e do que é ser mulher. Deve ser lido por qualquer homem com um mínimo de inteligência, e por toda mulher que tenha intuído qual sua sagrada missão.