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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER - MILAN KUNDERA
Best Seller surpreendente nos anos de 1980, releio o romance mais famoso do autor tcheco e levo um choque: ele é muito mais SÁBIO do que eu lembrava. Constatação: vivemos um dos séculos mais idiotas da história e Kundera parece hoje muito melhor que em 1984. Frases e mais frases, afirmações e afirmações que ficaram fixadas na minha mente. É um dos livros que me formou e talvez seja até mesmo um dos cinco que mais me influenciou. ----------------- O eterno retorno, o tempo circular, as mulheres e seus medos, a vida dos bichos, o amor não assumido, são montanhas de frases que cito e recordo desde então e que eu já não lembrava ter lido neste livro. Kundera é um autor ao estilo de Voltaire, ele narra para ensinar, ele conta uma história para citar frases de sabedoria. Ele usa personagens para nos fazer testemunhar a história de um país humilhado. ---------------- Ler este romance, em momento que tanta gente em meu país é perseguida por não pensar "democraticamente" ( modo hipócrita de se nomear o modo dominante permitido de pensar ), me causa arrepios. Thomas, o médico do romance, é obrigado pelas autoridades a largar sua profissão e sua cidade e se tornar um agricultor. Aqui vejo pessoas sendo obrigadas a desaparecer, se afastarem, partirem para o ostracismo. O que se faz hoje em redes sociais é aquilo que se fazia na Tchecoslováquia em 1968. A diferença é que lá era feito na rua e no trabalho, aqui é feito em um clic. Mel Gibson, Ted Nugent, Donald Trump, estão na mesma situação de Thomas: para o poder dominante e para a história oficial eles não mais existem ( há muitos mais ). -------------- Teresa se adapta, Thomas não. Ele diz ter sido feliz com a vida que viveu, mas sabemos ser mentira. Pode ser uma visão só minha, mas o amor dos dois não me convence. Eles são desesperados e o apego dos dois é como um salva vidas. Ela o agarra e ele vê nela alguém a ser cuidado. Depois a coisa se inverte. Mas eles nunca parecem realmente unidos. O filme, que é ótimo, deixa isso mais claro. O amor dos dois encontra a paz minutos antes do acidente que os matará. ------------ Ou talvez, no momento histórico em que eles vivem, o amor não pode e não deve se fazer consciente. --------- Kundera tem uma escrita que sempre me parece árida, distante, é um prosador controlado. Desse modo, os personagens sofrem uma ausência de espontaniedade. São como bonecos a espera de um despertar. Servem para exemplificar aquilo que o autor quer nos demonstrar. Paulo Francis dizia que Kubrick fazia filmes que pareciam coisa de professor de filosofia alemão. Kundera é o equivalente em literatura. ------------- Mas é um bom professor. Ele tem o que falar. É sério sem ser desesperado e terminal ( como é todo autor sério de 2023 ), sofre mas não demonstra, e está longe de ser niilista. Kundera ainda crê no amor e por isso parece digno, nobre, ereto em sua posição. Houellebecq, autor que admiro, perto dele parece estranhamente inumano, tomado por emoções que não são aquelas que nos fizeram evoluir como espécie. Já Kundera, nascido em 1929, ainda podia acreditar na verdadeira democracia, no tempo, na carne de uma mulher, na doce vida de um cão. Apesar da Guerra, apesar da invasão, apesar do cancelamento, ele sabia que valia a pena. -------------- Na pós literatura do pós humanismo do pós científico mundo de agora, não se discute se vale a pena. Não se discute nada. Se crê. Naquilo que não se deve ver.
MILAN KUNDERA ESTAVA MORTO
Nos anos 80 nenhum autor era mais "in" que Kundera. Ele tinha tudo que a dècada amava: era rebelde, misterioso e vindo de um país sofrido. E sexy também. Eu li muito Kundera nos anos 80 e 90. Seus livros vendiam muito. Mas no século XXI ele saiu de moda e saber que ele morreu causa espanto. Sua morte acontecera fazia muito tempo. ----------------- Eu acho que ele será esquecido. Autores que denunciaram as atrocidades da URSS costumam afundar sob a pressão dos críticos e professores do PC. Havel e Pasternak são bons exemplos disso. O estilo de Milan era frio, distante. Ele na verdade não escrevia romances, ele expunha teses romanceadas. Para a década mais vaidosa do século, a de 1980, seus livros, gelados e disfarçadamente irados, eram perfeitos. Meus amigos diziam: ali estava um escritor que viveu. Que não foi apenas um rato de biblioteca. ---------------- Sempre acho triste quando um artista morre antes de morrer de fato. Para todos que passam dos 80 anos, ele tinha 93, a chance disso ocorrer é imensa. Principalmente agora, tempo que cancela toda opinião que fuja do woke geral. Kundera era anti socialismo e amava mulheres de um modo como só quem nasceu antes de 1950 ama. --------------- Ficam na memória algumas frases brilhantes que ele teceu. Seus livros eram na verdade uma coleção de boas frases. Penso que ele deve ter lido muito Montaigne e Voltaire. Nosso mundo? Cada vez mais deserto.
O EROTISMO, FANTASIAS E REALIDADES DO AMOR E DA SEDUÇÃO - FRANCESCO ALBERONI
O autor é ainda vivo. Tem 91 anos. Jornalista, sociólogo e professor. Lançou este livro em 1986. É um de seus mais vendidos livros. Mas, será que o que ele diz é ainda válido em 2021? ----------------------- Primeiro fato dito por ele: Em todo produto pornográfico masculino, em todo sonho erótico masculino, o homem é sempre um ser que seduz as mulheres por sua simples presença. No sonho do homem, as mulheres oferecem seu sexo sem que ele precise fazer nada. A mulher é, nesse mundo, um tipo de prostituta. Ela abre as pernas apenas porque ele está ali. Na verdade o homem vê a mulher, na pornografia, como uma espécie de homem-mulher. Ela age com a disponibilidade que o homem tem ao sexo. Pois não se engane, homens sonham com sexo sem ritual, sem exigências, sem o sim ou o não. É a mulher quem diz não. É ela quem decide. E em 99% das vezes ele escutará não. ---------------- Mulheres não gostam de pornografia ( ainda? será? ). Costumam rir de cenas pornô masculinas. Acham aquilo tudo tão absurdo, tão idiota que caem no riso. O equivalente ao filme pornô masculino, no mundo feminino, aquilo que as excita, é a novela de TV, a série romântica, o drama romântico, e o romance literário água com açucar. A mulher não espera mais um príncipe, mas no seu sonho "pornô", continua existindo o homem poderoso, o heroi ferido, o misterioso com um passado secreto. Observe que no mundo feminino não excita o que é rápido e objetivo. O que excita é o todo, o ambiente, o enredo, a história que anda e se desenvolve. Mulheres não se excitam com a visão do corpo fazendo sexo. Ela se excita com um cheiro, um toque, um som, e principalmente um enredo. ----------------- Isso porque o desejo masculino é como seu gozo. Ele vem em jatos. O homem se excita, atinge o gozo e então esfria, quer cessar tudo, sumir e repousar. Seu desejo e seu amor são fragmentos, que podem contar uma hsitória, mas sempre em forma fracionada. Homens amam o começo, o início, o conquistar, o conhecer. Seu desejo por infidelidade, que existe sempre, mas nem sempre se manifesta, é o desejo por algo que sempre começa, sempre é novo, pela caça. ---------------- O desejo da mulher persiste. Ela após o gozo continua quente, e após o coito deseja o abraço, o contato, o estar unido. Seu desejo, como seu amor, não é fragmentado, é uma história, um acúmulo, um progredir. Ela não ansia pelo novo, ela quer o seguro. ------------------ Mas o que eles querem? O homem quer um corpo. Por uma mulher bonita ele pode se forçar a ignorar todos os defeitos dessa bela mulher. A neurose dela será compreendida. O ciùmes suportado. Até a falta de inteligência será esquecida. Uma mulher realmente bonita será perdoada por tudo, até pela infidelidade. ----------- Já a mulher ama o poder. Basta observar que mulheres realmente bonitas se casam com quem tem algum tipo de poder ( não necessariamente dinheiro ). O político. O esportista. O milionário. O ator famoso. Mas também o homem mais popular do bairro. O chefe do crime. O palestrante de uma seita. O chefe religioso. A mulher se excita com o homem de poder porque ele tem história, mistério e autoridade. E também porque ele dá à ela algo que mora fundo em sua alma: a segurança contra o estupro. ---------------- Milan Kundera diz em um livro que Homens amam mulheres bonitas. Mulheres não amam homens bonitos. Amam homens que tiveram mulheres bonitas. ----------------- Há na mulher o medo do estupro. Sempre. Por isso o homem que mais a atrai é aquele que parece forte, intimidador, mas que ao lado dela é sempre suave, confiável, paciente. Ele afasta os estupradores, mas jamais lhe ameaça com violência. A aceitação, absurda, do marido violento, é a garantia de ser estuprada apenas por ele, e por mais ninguém. ------------------------ Continuarei a falar do livro em post próximo.
AS DUAS MORTES DE CERTOS AUTORES
Muito mais chata que a notícia da morte de um autor é quando voce percebe que existem autores que morrem duas vezes. Talvez o maior exemplo mundial seja Bernard Shaw. Voce pode não saber, mas até os anos 60 Shaw era considerado o segundo maior autor teatral da história. Apenas Shakespeare era mais encenado que ele. Ganhou o Nobel, viveu quase 100 anos e morreu como um tipo de centro luminoso das letra inglesas. Mas, desde sua morte, nos anos de 1950, sua obre entrou em ostracismo. Não é nem o caso de se dizer que nosso tempo está errado. Na verdade Shaw era novidadeiro. Suas peças, muitas, defendem a liberação feminina, direitos trabalhistas, fim ao sistema de classes, liberdade sexual. Quando esses temas passaram a ser tratados de modo muito mais explícito e feroz por gente como Albee e Osborne, Shaw se tornou passado. André Gide é um caso diferente. Ele foi até os anos de 1960 o gigante das letras francesas. Vivo até seus 90 anos, lúcido, homossexual, foi amigo de Wilde, escreveu relatos honestos sobre o mundo gay, sobre a igreja, sobre a crise da moralidade. Mas, atacado pelos escritores políticos de então, Gide foi chamado de individualista, desinteressado por política, anódino. Seu estilo, refinado, não o ajudou. Ao contrário de Shaw, eu aposto que se ainda houver leitura séria nos anos de 2030 ele pode voltar. Herman Hesse é outro autor que um dia, principalmente nos anos hippies, foi chamado de gênio. Hoje voce só o encontra em sebos. Seus livros sumiram. Nas letras alemãs de 1940-1950, a grande discussão era descobrir quem era maior: Hesse ou Mann. Hoje parece uma heresia essa comparação. Robert Musil tomou o posto de Hesse. Lawrence Durrel é um inglês que morreu nos anos de 1980 e que hoje está criando mofo nos sebos. Ele era muito levado a sério. Livros sobre sexo e demonismo, mas que hoje parecem soft. Passado o escândalo, restou um autor competente, mas que não consegue público agora. Posso falar de muitos outros. Gente de fama intelectual imensa. Tipo Gabriela Mistral, John Galsworthy ou Pearl Buck. Todos com Nobeis. Milan Kundera já foi mega considerado e é claro que após morrer, Sam Shepard caminha ao esquecimento. Esses casos não são como Graham Greene ou Evelyn Waugh. Greene e Waugh tiveram sucesso demais, acima de suas espectativas durante um certo tempo. Mas jamais foram o centro da coisa, como foram Shaw, Hesse e Gide. Se hoje Greene e Waugh não vendem mais como venderam durante três décadas, isso é apenas uma normalização. Sobreviverão ao lado de Nabokov e Bellow como ícones do século XX. Mas a queda moral de Shaw, a maior queda de meu tempo, é incomparável.
ROMANCES DE AMOR
Como fiz vários posts sobre o Amor em música, falo agora de livros, poucos, que trazem memórias de amor.
O primeiro de minha vida foi Tom Sawyer. Sim, isso mesmo, o amor de Tom e Becky, o primeiro beijo. Incrível mas eu lembro do exato momento em que li sobre esse beijo: aos 9 anos, debaixo de bananeiras no quintal de casa. Muito calor. Antevi aí meu futuro primeiro beijo. Só não pensei que fosse demorar tanto.
Depois o namoro de Peter Parker e de Gwen Stacy e então os grandes romances.
David Copperfield com Dora, quando ela morre, a primeira página que me fez chorar ( no quarto, lendo de madrugada ). Em seguida o mais perfeito dos romances sobre o amor, O Morro dos Ventos Uivantes, Heathcliff e Catherine, o amor como maldição, como sina, o amor que é dor para sempre. O máximo do romantismo fatalista, um cataclisma na minha mente e alma. O cenário perfeito ( vento frio em campos pantanosos ) a mulher perfeita e o homem "mal" que esconde sua ferida.
Tudo que veio depois foi menos forte. Jake e Lady Brett no Heminguay de O Sol Também se Levanta, o amor impotente, amor irrealizável em meio a fiesta da Espanha. Os amores nas obras-primas de Stendhal, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, amores irônicos, amores que são como atuações que convencem o próprio ator. E escritos com a maestria do maior estilista.
O amor simples de Kitty e Lievin em Anna Karenina, pois o amor de Anna e Vronsky nunca foi para mim o centro da obra, mas sim o amor de Lievin, que descobre a perfeição na simplicidade de sua mulher. A felicidade nasce após a morte em vida do aturdido Lievin.
Ofélia e Hamlet...Esse amor continua um enigma, pois é impossível saber quem foi Hamlet e porque Ofélia o amava. O desagradável Hamlet.
Os amores dos livros de Jane Austen, tímidos, convencionais, trêmulos e hesitantes. A doce alegria de seus finais práticos, finais que na verdade são elogios ao pragmatismo. Ler Austen é amar suas heroínas e admirar os falsos tolos que são na verdade seus heróis.
Gatsby e sua tragédia. O desajustado que não percebe seu desajuste. O amor como miragem de beleza. Impossível.
Não posso negar a importãncia de A Insustentável Leveza do Ser. Hoje percebo suas falhas, mas na época, anos 80, Tereza foi musa para mim. Aliás, era esse seu nome? Well...Kundera foi por algum tempo um herói.
Estranho....poucos livros me marcaram como 'livros de amor". Falar de Henry James como autor amoroso é absurdo. A questão amorosa é centro de suas obras-primas, mas aquilo é mesmo amor? São personagens tão auto-centrados que fica dificil levar aquele sentimento a sério. Amor? Será? Solidão seria mais correto dizer.
Na verdade meus livros de 'amor" são os poetas. E deles ( Keats, Shelley. Blake, Lorca, Yeats, Rilke ) não vou falar. Estou discorrendo sobre a prosa.
Então nada de Dante e Beatriz.
Volto a Tom Sawyer. O beijo e amor por Becky é parte de um todo. Tom faz estrepulias, foge de casa, recupera dinheiro roubado, briga, se perde em mina abandonada. E ama à Becky cada vez mais. Esse é o roteiro ideal de uma boa história de amor. O arcabouço foi criado a mais de 3000 anos, na Grécia. E não se fez até aqui uma base melhor. O herói que ama e parte, prova sua grandesa e retorna ao amor.
É isso.
RORTY E A DEFESA DA FICÇÃO
Richard Rorty, filósofo morto em 2007, foi dos últimos a ter um pensamento corajoso. Pois em sua filosofia se encontra um dos mais intragáveis tabús para todo filósofo dito sério. Rorty defende o saber poético. Para ele, o mundo deveria ser regido pela imaginação e nunca pela razão. Ele explica.
Toda a filosofia ocidental é filha de Platão. Na verdade, como se diz muito no atual século, toda a filosofia ocidental é apenas comentário de Platão. Ora, Platão tentou e não conseguiu ser um poeta. Viu todas as suas tentativas darem em nada e talvez venha daí a condenação total que ele faz a prática poética. ( Atenção, Rorty nunca foi poeta ). Rorty desconfia dessa opção filosófica. A razão jamais leva em conta tudo aquilo que possa ser subjetivo. Pior, todo filósofo tem apenas um objetivo, ser o dono da verdade, o homem que não pode ser contradito. Nada pode ser mais anti-democrático que um filósofo. A república de Platão é uma tirania onde apenas um pensamento pode existir, o platônico.
O mundo do romancista é muito mais aberto. Ao escrever um texto ficcional, o autor se obriga a tomar contato com vários pontos de vista, várias vozes e várias situações. O verdadeiro ficcionista é quase proibido de ser um tirano. Traz dentro de si uma multidão de pensamentos que se contradizem.
Isso passa para o leitor. O leitor de ficção será normalmente mais aberto e mais receptivo a novidades. Ele toma contato com pessoas e coisas que não são as suas. Ele se deixa ser habitado por personagens amáveis ou odiáveis. Deixa de ser si-mesmo e não se torna partidário do autor ( no máximo será seu amigo ou seu fã ).
Já a filosofia exige atenção e submissão. Voce é enredado no pensamento do autor. Ouve sómente a ele, toma contato com uma única voz, uma única visão. Nada há de livre aqui, Voce o aceita ou o repele, não há meio termo.
Torna-se fácil perceber então o aberto leitor de ficção e o fechado leitor de teses e de afirmações. Um escuta e dá voz, o outro afirma e julga.
Richard Rorty foi diagnosticado com um câncer fatal. Disse ele, pouco antes de morrer, ter encontrado alivio ao desespero apenas na poesia. Religião ou filosofia de nada lhe valeram. Mas a poesia lhe deu um sentido para a morte. E era isso que ele sempre intuira:
Se a filosofia cria homens cheios de si, e se a ficção do romance cria homens curiosos, a poesia cria a compreensão. Nesse terceiro estágio o homem passa a entrar em comunhão com as coisas, não em sentido religioso comunitário, mas em sentido pessoal e solitário. A poesia dá ao homem um entendimento do que seja a vida e a morte intuitivamente, algo que é completamente incompreensível pela via da razão filosófica. O poeta vai além do saber das coisas, ele passa a entender as coisas e a vivê-las plenamente.
A filosofia será sempre parcial e excludente. A poesia é por natureza abrangente. Essa é a sua vantagem. Ela pode unir opostos e apostar em conflitos. Para a filosofia, presa em dogmas da razão, a abrangência é impossível.
Richard Rorty por fim, dizia seguir o pensamento de Milan Kundera. Kundera dizia preferir pensar que o nascedouro dos tempos modernos se deu em Cervantes e não em Descartes. O que explica o mundo são narrativas e nunca as teorias. Narrativas formam nossa auto-afirmação como seres privados e abertos. Teorias nos subjugam. O sonho de Rorty era uma sociedade regida por Walt Whitman ou por Homero e nunca por Kant e Platão.
Toda a filosofia ocidental é filha de Platão. Na verdade, como se diz muito no atual século, toda a filosofia ocidental é apenas comentário de Platão. Ora, Platão tentou e não conseguiu ser um poeta. Viu todas as suas tentativas darem em nada e talvez venha daí a condenação total que ele faz a prática poética. ( Atenção, Rorty nunca foi poeta ). Rorty desconfia dessa opção filosófica. A razão jamais leva em conta tudo aquilo que possa ser subjetivo. Pior, todo filósofo tem apenas um objetivo, ser o dono da verdade, o homem que não pode ser contradito. Nada pode ser mais anti-democrático que um filósofo. A república de Platão é uma tirania onde apenas um pensamento pode existir, o platônico.
O mundo do romancista é muito mais aberto. Ao escrever um texto ficcional, o autor se obriga a tomar contato com vários pontos de vista, várias vozes e várias situações. O verdadeiro ficcionista é quase proibido de ser um tirano. Traz dentro de si uma multidão de pensamentos que se contradizem.
Isso passa para o leitor. O leitor de ficção será normalmente mais aberto e mais receptivo a novidades. Ele toma contato com pessoas e coisas que não são as suas. Ele se deixa ser habitado por personagens amáveis ou odiáveis. Deixa de ser si-mesmo e não se torna partidário do autor ( no máximo será seu amigo ou seu fã ).
Já a filosofia exige atenção e submissão. Voce é enredado no pensamento do autor. Ouve sómente a ele, toma contato com uma única voz, uma única visão. Nada há de livre aqui, Voce o aceita ou o repele, não há meio termo.
Torna-se fácil perceber então o aberto leitor de ficção e o fechado leitor de teses e de afirmações. Um escuta e dá voz, o outro afirma e julga.
Richard Rorty foi diagnosticado com um câncer fatal. Disse ele, pouco antes de morrer, ter encontrado alivio ao desespero apenas na poesia. Religião ou filosofia de nada lhe valeram. Mas a poesia lhe deu um sentido para a morte. E era isso que ele sempre intuira:
Se a filosofia cria homens cheios de si, e se a ficção do romance cria homens curiosos, a poesia cria a compreensão. Nesse terceiro estágio o homem passa a entrar em comunhão com as coisas, não em sentido religioso comunitário, mas em sentido pessoal e solitário. A poesia dá ao homem um entendimento do que seja a vida e a morte intuitivamente, algo que é completamente incompreensível pela via da razão filosófica. O poeta vai além do saber das coisas, ele passa a entender as coisas e a vivê-las plenamente.
A filosofia será sempre parcial e excludente. A poesia é por natureza abrangente. Essa é a sua vantagem. Ela pode unir opostos e apostar em conflitos. Para a filosofia, presa em dogmas da razão, a abrangência é impossível.
Richard Rorty por fim, dizia seguir o pensamento de Milan Kundera. Kundera dizia preferir pensar que o nascedouro dos tempos modernos se deu em Cervantes e não em Descartes. O que explica o mundo são narrativas e nunca as teorias. Narrativas formam nossa auto-afirmação como seres privados e abertos. Teorias nos subjugam. O sonho de Rorty era uma sociedade regida por Walt Whitman ou por Homero e nunca por Kant e Platão.
O IRRACIONAL ( AMOR E BICHOS )
Respeitar um animal NÃO significa imaginar que ele seja como nós. Eles não são fofos nenês amorosos, eles são irracionais, bichos, feras em potencial, mistérios. Seus pensamentos, se os há, são "não verbais", e portanto, inatingiveis, inimagináveis por nossa razão. Mas eles têm sentimentos, sentem medo, dor, fome, solidão. Gostar dos bichos, como eu gosto, é respeitar sua animalidade tola, sua irracionalidade estúpida, sua vulnerabilidade. Portanto tenho pena de quem os veste como dondocas, tinge seus pelos ou lhes obriga a viver em bolsas Chanel. Cães são cachorros, todos ansiam por ser como vira-latas bem nutridos. Amo meus cães por serem eles-mesmos. AMO OS BICHOS POR SEREM COMPLETAMENTE DIFERENTES DE EU-MESMO. É esse o amor desinteressado de que fala Milan Kundera ao final da INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER. O amor de um homem por um cão é desinteressado porque o homem sabe, todo o tempo, que seu amor jamais será retribuido. E mesmo assim, ele ama. Nietzsche teve como ato inaugural de sua loucura o abraço choroso que deu em cavalo, nas ruas de Turim. O filósofo pedia perdão, aos prantos, pelo mal feito a todos os animais. Após essa cena, sim, patética, ele passou cinco anos trancado. Mas o que ele fez ( em alucinação ) nós devemos fazer, conscientemente. Se ainda há algo de digno no homem, se ainda podemos pensar numa trajetória de alguma nobresa em nosso caminho, devemos necessariamente passar pela reavaliação do animal no planeta e do irracional em nós. Se nosso caminho veio das trevas do medo e da intolerância, do racismo e do ódio ao diferente, chegando à aceitação do vizinho e do não-igual, chegará, necessariamente, o momento de começarmos a considerar os direitos do bicho como coisa séria, e NÃO COMO EXCENTRICIDADE DE PESSOAS BOBAS. Pois quando chegarmos nesse momento de ajuste de contas, e é isso que assusta muitos homens risonhos, teremos de sofrer a consciencia do mal perpetuado. Perceber o bicho como ser digno e existente, como um ser existente, trará uma série de insights, de concientizações, de preços a se pagar, o maior deles sendo o remorso. Não confio em pessoas que desgostam de animais. Principalmente daqueles que dizem que deveríamos nos preocupar mais com as crianças ( como se uma coisa excluisse a outra ). O homem que só consegue amar outros humanos tem sempre algo de narcísico em si. Seu amor é dado, com regular sobriedade, a apenas quem lhe é parecido. Um amor domesticado. Amo muito mais aos humanos. Mas amo, e muito, a todos os bichos. Um não exclui o outro, antes o refina, o sensibiliza, lhe dá liberdade.
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER- MILAN KUNDERA
É o vômito de uma derrota. Mas Kundera não escreve vomitando. Ele é autor que escreve sempre sob-controle, sua escrita é estranhamente fria. Isso explica seu imenso sucesso em 1984/85. Em tempo blasé, nada é mais aparentemente blasé que este livro. Suas frases são como objetos de estilo em apto moderno.
Mas é só aparência. Por trás de suas frases distantes há a emoção dilacerante de uma derrota. A derrota da mais linda das revoluções: a primavera de Praga. Movimento libertário ( feito de sexo e arte ) que foi esmagado pelos tanques russos e se tornou no Ocidente uma palhaçada de marketing. A primavera de 68 nada teve de midiática. Foi o sonho de um socialismo humanista. De uma politica não científica. Foi absoluto desastre. Traumatizante derrota.
No livro Teresa é o símbolo do povo tcheco. Ela acorda para a vida tarde demais, é usada e entra em noia. Termina descobrindo a paz de se "cultivar seu jardim" ( como dizia Voltaire ).
A livre Sabrina é o espírito de 68. Ela a nada se prende e bate asas, vai à California, onde assiste a derrota como estrangeira em terra de estrangeiros.
Mas quem é Thomas? Esse médico que se humaniza e parece ser derrotado, mas que também aprende a cultivar seu jardim? Thomas é Milan? Thomas é o leitor? Não importa. Ele é um médico, um homem feito para ajudar, para curar, para servir. A escrita de Kundera é curativa. Neste relato ele se cura e tenta curar almas que se tornaram estéreis.
Há uma frase de antologia: " Se o paraíso é um círculo, onde o tempo não se esvai mas é repetição de prazer, os cães, em sua doce e não-ambiciosa rotina, vivem no Eden do não-tempo." Esse cão é Karenin ( homenagem a Anna Karenina ). Morre com um tumor.
O nome Karenin não é em vão. Este livro tem muito em comum com a obra-prima de Tolstoi ( o melhor livro já escrito? ). A vida de Kitty e Lievin antecipa a vida de Thomas e Teresa. Tolstoi adivinhou a vida possível.
Hoje nada é mais fora de moda que Kundera. Ele não é exagerado. Não é drogado ou sujo. É sempre elegante, distante, preciso.
O filme de Philip Kauffman ( diretor da obra-prima Os Eleitos ) é tão bom quanto o livro. Tem Daniel Day Lewis e Juliette Binoche ( perfeitos ). Quem amou o livro amará o filme.
Mas é só aparência. Por trás de suas frases distantes há a emoção dilacerante de uma derrota. A derrota da mais linda das revoluções: a primavera de Praga. Movimento libertário ( feito de sexo e arte ) que foi esmagado pelos tanques russos e se tornou no Ocidente uma palhaçada de marketing. A primavera de 68 nada teve de midiática. Foi o sonho de um socialismo humanista. De uma politica não científica. Foi absoluto desastre. Traumatizante derrota.
No livro Teresa é o símbolo do povo tcheco. Ela acorda para a vida tarde demais, é usada e entra em noia. Termina descobrindo a paz de se "cultivar seu jardim" ( como dizia Voltaire ).
A livre Sabrina é o espírito de 68. Ela a nada se prende e bate asas, vai à California, onde assiste a derrota como estrangeira em terra de estrangeiros.
Mas quem é Thomas? Esse médico que se humaniza e parece ser derrotado, mas que também aprende a cultivar seu jardim? Thomas é Milan? Thomas é o leitor? Não importa. Ele é um médico, um homem feito para ajudar, para curar, para servir. A escrita de Kundera é curativa. Neste relato ele se cura e tenta curar almas que se tornaram estéreis.
Há uma frase de antologia: " Se o paraíso é um círculo, onde o tempo não se esvai mas é repetição de prazer, os cães, em sua doce e não-ambiciosa rotina, vivem no Eden do não-tempo." Esse cão é Karenin ( homenagem a Anna Karenina ). Morre com um tumor.
O nome Karenin não é em vão. Este livro tem muito em comum com a obra-prima de Tolstoi ( o melhor livro já escrito? ). A vida de Kitty e Lievin antecipa a vida de Thomas e Teresa. Tolstoi adivinhou a vida possível.
Hoje nada é mais fora de moda que Kundera. Ele não é exagerado. Não é drogado ou sujo. É sempre elegante, distante, preciso.
O filme de Philip Kauffman ( diretor da obra-prima Os Eleitos ) é tão bom quanto o livro. Tem Daniel Day Lewis e Juliette Binoche ( perfeitos ). Quem amou o livro amará o filme.
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