INFÂNCIA E WORDSWORTH

   Wordsworth teve uma longa vida. 1770 até 1850. Oitenta anos que no século XIX equivaleriam a viver uns 100 hoje. Sua melhor poesia foi feita entre 1790-1820, ou seja, enquanto sua memória ainda estava fresca. Wordsworth não escreve nada sobre sua infância como biografia, mas ele só é poeta quando revive o sentimento de ser uma criança. Mas não pense que ele compactua da moda de então, aquela de que toda criança é inocente. Não. O que o poeta inglês tenta preservar é a sensação de estar vivo DENTRO da vida e não FORA do elan vital. Para Wordsworth a vida só é plena enquanto somos crianças. O hábito mata esse dom. O tempo nos obriga a viver numa eterna repetição,  e essas repetições destroem a memória. Nascemos vindos da divindade. Quanto mais jovens mais podemos sentir essa nossa origem.
  Fazer poesia, para ele, é rememorar. A emoção e o casamento entre criança e natureza, na idade adulta, estão perdidos. Mas calmamente voce pode relembrar e assim reviver, mesmo que a distância e de um modo frio, o que foi aquele encanto natural.
  Wordsworth faz assim dois movimentos na época revolucionários. Primeiro tira o poeta do pedestal do classicismo. Todo ser humano pode ter essa experiência. Pois toda infância vive dentro desse encanto. Segundo fato: Fazer poesia é memória e não arte de pura técnica. Essa é outra pedrada nos clássicos.
  É aceito hoje que todo artista verdadeiro tem acesso à um tipo de espírito da infância. O homem tende a perder esse espírito com a idade. Segundo Wordsworth o que o degrada é a pura e simples repetição. Somos presos numa rotina diária que embota nossa emoção. Horários, estudo, ruídos da cidade, distrações, tudo nos faz ESQUECER. Para ele, a infância é sagrada simplesmente por estar próxima ao outro mundo, o universo de onde viemos. Esse porque é para mim o único ponto discutível do que Wordsworth diz. Para mim o simples fato de sermos jovens cria o encanto. Vemos tudo pela primeira vez, sentimos pela primeira vez. Para esse encanto não é necessária nenhuma memória de outro mundo. Mas, de todo modo, Wordsworth cria uma bela imagem poética. E quem poderá negar essa verdade?
  Desse modo, em nossa vida de adulto, e agora quem fala sou eu e não o poeta inglês, só tem valor poético TUDO AQUILO QUE É ALGUMA RECORDAÇÃO DA INFÂNCIA. Não posso cometer o erro de dizer que minha experiência é a experiência de todos. Mas só consigo habitar o meu mundo de contentamento, paz e sensação de absoluto, quando mergulhado em algum tipo de rememoramento da infância. Ás vezes provo a felicidade total simplesmente por sentir em minha carne uma espécie de calor ou sono COMO DO DA MINHA MAIS REMOTA INFÂNCIA. É como se minha pele ou minha barriga voltasse a sentir o calor de uma tarde de 1970 ou o cheiro de uma fruta sentida em 1968. A sensação é de uma porta que se abre dentro de mim, e então olho dentro daquele mundo outra vez. O que vejo lá dentro não é alegria ou dor, felicidade ou melancolia, é A SIMPLICIDADE ABSOLUTA DE SE ESTAR VIVO. Eu não penso em nada de especial. Nenhum fato dramático é lembrado. O que sucede é somente uma sensação sem história. Um estar aqui. Viver.
  A frase mais famosa de Wordsworth é a que diz O MENINO É PAI DO HOMEM. Isso porque todos nós tivemos um menino antes de ter um homem. Nascemos de um menino, fomos esse menino, ele veio antes e nos abriu as portas. Para não perder todo o encanto da vida, é necessário que esse menino-pai permaneça a nosso lado, mão com mão, sempre.
  Isso me recorda muito as sessões de terapia que tive durante 1986-1989. Quem já fez sabe que 80% das sessões não são proveitosas. Mal nos lembramos delas. Mas que existem tardes em que uma porta se abre. Li mais de uma vez que a linguagem de nosso inconsciente é sempre poética. Nossa mente mais profunda fala e enxerga por poesia. Pois eu diria que ao tocar nosso inconsciente nos tornamos uma criança novamente. Nos tornamos básicos. Puro sentimento. Pura sensação. É aí que mora o pior medo. E a mais bela recordação.
  Wordsworth intuiu isso. Ler esse poeta é sempre uma terapia.