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PIERROT LUNAIRE - SCHOENBERG. NASH ESEMBLE- SIMON RATTLE.
Pleno modernismo do começo do século XX. A voz, de Jane Manning, paira como uma assombração. Música feita de fragmentos que pipocam como meteoros de ilusão. Ouço e sinto que tudo aqui é um ponto de interrogação. A música é não emocional ou pós emocional? De onde vem esse estilo de compor e mais importante: como devo a escutar? Fascina. Mas o prazer existe aqui? Talvez um outro tipo de prazer, pois a vontade de ouvir mais uma vez existe. É preciso penetrar nesta música, como? eu não sei. Schoenberg ainda é guia da música dita moderna, cem anos passados. Diziam que ela anunciava as guerras mundiais. Não. Ela anunciava nosso tempo. Aparente desordem que esconde ordem absoluta. Sim, há seus clichés: não há como ouvir isto sem pensar nos filmes expressionistas de então. Voce vê os postes com sombras negras e as ruas com pessoas sinistras. Desconfiança. E paranoia. Sim, é a trilha sonora da neurose, a velha neurose clássica, pesada, soturna, freudiana. Minhas neuroses soavam exatamente assim. Caminhar com frio nas noites de 1980, na avenida Paulista, era assim. Isso percutia na minha mente. Exatamente Schoenberg, que eu nunca ouvira até então. --------------- Necessário.
SINFONIA 9 DE GUSTAV MAHLER, SOB A REGÊNCIA DE ESCHENBACH COM A SINFÕNICA NDR.
Mahler não é fácil. Sua obra, hiper valorizada hoje, dá enfase à orquestração e nunca à melodia. Isso nos aliena. Precisamos de tanta concentração para a penetrar que acabamos por nos cansar. A Nona, mais de hora e meia de música, é uma massa pós romântica que o tempo todo parece ir mergulhar num wagnerismo século XX, mas escapa se fazendo universo de células sugestivas. De tudo que ouvi de Mahler, é a mais difícil e por isso confesso ter sentido tédio, um tédio digno de...Mahler. ----------------- Ele não comunica, é música que nasce e caminha da alma do artista para dentro da mesma alma. Ela como que cozinha nas profundezas do ego e não lança um anzol para fisgar outro coração. Eu sei que no mundo erudito de 2024, criticar Mahler parece heresia. Mas sou o que sou, e digo que dificilmente irei escutar esta obra novamente.
TOMMY, NA VERSÃO PARA ORQUESTRA DE 1972
2021, o ano que passei ouvindo música erudita mudou meu modo de escutar os sons. Entenda, eu ouço Liszt ou Mozart desde os 15 anos, mas em 2021, a coisa chegou mais ao fundo. Tanto que após esse ano citado eu tenho imensa dificuldade em escutar música muito simples ou mal tocada. Bem...então vamos à Tommy. --------------- Voce conhece a versão original, de 1969, maravilhosamente semi acústica e com ataques de bateria vibrantes. Talvez conheça a trilha do cinema, no geral bem pior que a original, apesar de Sally Simpson e Sparks estarem melhoradas em 1975. Mas provavelmente voce desconheça a versão luxuosa, lançada em caixa com libreto de 1972. Saiba que ela atingiu o segundo posto nas paradas inglesas e a versão de I'M Free exitente aqui chegou a tocar no rádio do Brasil. ---------------------- Em 1972 o mega produtor Lou Reizner pegou a partitura de Tommy e convenceu Pete Townshend a autorizar a versão sinfônica da obra. LP e CDs são dificeis de achar, mas ontem o comprei e logo escutei. Eu esperava uma coisa divertida e brega e me deparo com uma obra divertida e maravilhosamente linda. ----------------- Primeiro o som. Logo de cara voce tem um choque. O disco foi gravado em quadrifonico e isso lhe deixou um ataque que mesmo em cd se mateve algum vestígio. A orquestra soa límpida, poderosa, imensa. Sim, quem conhece música erudita percebe a extrema simplicidade que a música POP tem. Numa peça clássica, qualquer uma, notamos que a orquestra é usada em sua totalidade, o ilimitado poder de seus sons é explorado. Não aqui. Como acontece com trilhas de cinema, a melodia é simples e a orquestra faz seu trabalho sem qualquer esforço. But....simples sim, porém belíssimo!!!!! Amazing Journey, Sparks, Welcome, têm aqui suas melhores versões. elas crescem e atingem uma riqueza magnífica. O elenco tem Ringo Starr fazendo o jogador, um John Entwistle assustador cantando uma versão de terror assustador de Fiddle About. Stevie Winwood, do Traffic, faz o padastro, e Rod Stewart, no auge da fama, canta Pinball Wizzard. Aliás, era para Rod fazer Tommy, mas Roger Daltrey, que não punha fé no projeto, voltou atrás e pegou Tommy, graças a Deus, Rod é ótimo mas Tommy é de Roger forever. --------------- Qual Wizzard é melhor? Elton no filme ou Rod com sinfônica? Empate. São tão diferentes uma da outra que é impossível comparar. ---------------- Maggie Bell, grande cantora da época faz a mãe e Marry Clayton, a cantora negra que em Let It Bleed cantou Gimme Shelter com Jagger, humilha Tina Turner. Acid Queen com Clayton é uma das coisas mais belas já gravadas. -------------- Eu tinha certeza que o desastre viria com a faixa Sally Simpson, minha música favorita na versão em filme 1975. Cantada por Pete e com guitarra de Clapton, ela é imbatível. Como transpor açgo tão rock para uma sinfônica? Seria ridículo!!!!! Mas...funciona!!!!!! Como? Pete canta a melodia exatamente como no original de 1969, mas o acompanhamento se faz uma outra coisa. A orquestra não tenta imitar uma banda de rock, ela teve um novo arranjo a seu dispor e o que ouvimos é soberbamente lindo. Eu postei a versão de 1975 e a orquestral. As duas são perfeitas. ---------------- Após ouvir este Tommy minha admiração por Pete é ainda maior. Quanto prazer em escutar isto!!!!!
O QUE ANDEI OUVINDO
Sem ter essa intenção, tenho, nos últimos anos, tido estilos musicais que dominam minha atenção. 2021 foi um ano de música erudita e após a passagem desse período alguma coisa mudou no meu gosto musical. Eu simplesmente não tenho mais paciência, ou interesse, em música muito simples.
Simples seria a palavra certa? Talvez fosse melhor dizer "música pobre em termos de arranjo".
Desse modo, bandas como The Jam, White Stripes ou Arctic Monkeys perderam muito de sua atração. A melodia não tem surpresas, a harmonia é banal e os arranjos são óbvios. Mais ainda, tecnicamente são músicos sem habilidade.
Me tornei um chato? Com certeza.
Assim, em 2022 eu passei 90% do tempo ouvindo coisas que antes eu nem tentava ouvir. Sim, falo de Gentle Giant, Yes, Jethro Tull ( que banda fascinante é o JT ), Genesis, e que tais. ELP não, pois o ELP é realmente ruim. E acima de tudo, RUSH, um grupo que me arrpendo de não ter escutado a vida toda.
Junto à isso, descobri, ainda em 2022, a alegria de grupos cheios de beat e técnica refinada, gente como Little Feat, Allman Brothers, Jeff Beck, Robin Trower, Funkadelic, Bootsy Collins, The Meters.
Então veio 2023 e ao ouvir o album Headhunter, de Herbie Hancock, mais uma porta se abriu para meus ouvidos. O jazz elétrico. Um mundo novo para mim, feito de ritmo absorvente, timbres insuspeitos e uma enorme quantidade de técnica sublime. Mergulhei fundo nesse universo e me diverti muito.
Claro que escutei muitas outras coisas, inclusive heavy metal e eletro, mas o jazz ocupou mais de 70% do que ouvi.
2024...o que será que vou escutar? Comecei o ano com Serge Gainsbourg, Charles Trenet e Aznavour. Será um ano francês?
Veremos.....
MICHEL DELALANDE - TE DEUM, SUPER FLUMINA, CONFITEBOR TIBI DOMINE. LES ARTS FLORISSANTS- WILLIAM CHRISTIE
Com marcação forte de percussão e orquestra comandada pelo trompete, logo nossa alma se eleva e percebemos: mais que música religiosa, o que ouvimos é arte ARISTOCRÁTICA. ---------------- Nada pode ser mais distante de nosso pobre mundo miserável de 2023 que a arte aristocrática de 1690. Na vulgar música do século XXI, a única regra é causar sensação e assim, tendo por alvo o que é mais comum à massa, ganhar notoriedade ao ouvido de milhões. A música pop, mesmo a mais sublime, e voces sabem que amo o POP, sempre teve por alvo os ouvidos de milhões, a diferença é que um Sinatra ou um Elton John, criados dentro de uma escola que prezava o gosto e a alegância, tinham pudores e assim revestiam o seu POP com sedas de gosto refinado e disfarces bem tramados. Era um POP com sombras de arte e rimas de poesia popular, porém bem informada. Agora não. O popular é assumidamente vulgar. Não há mais vergonha alguma em ser grosso. ---------------- Na música aristocrática o alvo não são os milhões de orelhas das ruas, antes, as orelhas mais bem formadas, as orelhas que são ouvidos. Delalande não canta ao milhão porque para ele esse milhão nem mesmo existe, ele compõe para o rei ( Luis XIV e Luis XV ) e acima de tudo para Deus. O resto não importa. ------------------- É música extremamente bem feita, que segue todo um código, leis, regras, mandamentos. Isso a faz perfeita. Sim, ela nunca surpreende pois não quer ser "nova", estamos longe do tempo de Beethoven, é música que quer ser "digna". E ela é. -------------------- Quando a arte deixa de ser aristocrática, com o romantismo, e se torna "popular", muita coisa genial assoma, e no meu tempo, há o jazz, o cinema e o rock, talvez os pontos finais da arte POP. Mas o pós POP, aquilo que nasce após o rock, a TV e a internet, é arte que se assume vulgar, suja, desarrumada, repetitiva, tola, banal. E porque não? Analfabeta. O orgulho em ser Popular se tornou orgulho em ser iletrado. Se antes o artista POP era formado em literatura leve, música de cinema e o folclore do blues, do soul ou do samba, agora ele cresce em meio aquilo que já é diluição da diluição. É como se em vez de vinho ele bebesse água com refirgerante e nos desse refrigerante com mais refrigerante e bastante açucar. --------------------- Delalande é tão distante deste nosso mundo que parecerá surpreendente. Mas creia, ele é antigo como uma missa. E é uma benção aos nosso ouvidos. Para ele, orelhas não existem.
SCHOPENHAUER
O que é uma Nuvem? Quando voce a olha ela pode ser cinza, branca, laranja, rosa. Ela pode ter milhares de formatos. Mas a Nuvem será sempre a mesma: conjunto de gotículas no céu. Sua cor e sua forma são apenas momentos no tempo e no espaço. A nuvem, todas as nuvens, são sempre a mesma. O que importa, sua ESSÊNCIA, não muda. O que a Nuvem é, ela é para sempre. Eis a explicação que faz Schopenhauer para o Mundo das Ideias de Platão. As ideias são o mundo essencial e se abstrairmos o tempo e o espaço podemos entender o que são as realidades eternas. --------------- O mesmo vale para um rio, uma Montanha, e uma Pessoa. Elimine o tempo e o espaço de Antonio. O que ele será? Um Homem. Como eu e como voce. Essencialmente. Sua essência humana é imutável, constante, eterna. Podemos então dizer que o homem de 1.200 DC ou o homem de 2023 são idênticos. Retire coisas temporais como modo de falar, de vestir, retire o lugar, e voce terá o mesmo ser em sua essência. E esse nunca mudou e nem irá mudar um dia. Continua sendo uma pessoa que come, dorme, sonha, tem medo, reage ao medo, ataca, mata, deseja, faz sexo, ama, sente ciumes, inveja, tem filhos, mente. Tem um pai e uma mãe, crê ou descrê de Deus. Inventa. Faz guerra e paz. Defeca. Xinga. Anda em grupos. Foge das feras. Fica doente e morre. Tudo isso pode ser feito num castelo ou em frente a um computador, vestido com uma toga ou como drag queen, não importa nada esse momento no tempo e no espaço, em essência nada mudou, é o mesmo Ser nas mesmas condições. ------------- O vento muda a forma da nuvem, mas ela é ainda uma nuvem. O espaço faz o rio virar cachoeira ou inundar, mas é ainda e sempre um rio. ------------------- Demorou muito para que eu lesse Schopenhauer. Isso porque ele é um filósofo tão fora de moda neste século como é Nietzsche ( ser fora de moda em tempos medíocres é na verdade um ótimo sinal ). Se Nietzsche é fora de moda por advogar o individualismo radical, Schopenhauer é deixado de lado hoje por dizer que a tal mutabilidade da vida é uma ilusão. E em tempo que adora se sentir dono de seu corpo e de sua alma, dizer que nada muda é irritar profundamente os deslumbrados do querer é poder. -------------- Ah sim, Schopenhauer dizia que a Vontade é a única coisa que move a vida, que faz ela acontecer e existir. Mas não se deslumbre, essa vontade é impessoal. Vontade inconsciente, irrefreável, irracional. Persistimos na vida. Por que? Não importa. A Vontade move as estrelas. Por mais que Desejemos ser saudáveis, bons ou belos, a Vontade faz de nós aquilo que somos: Humanos. Era por isso que Freud tanto amava Schopenhauer. Substitua Vontade por Libido ou Desejo e voce terá a base de todo Freud. Somos todos dominados pela Vontade. Nietzsche chamaria de Vontade de Poder. ------------------------ Faça um exercício. Olhe para algo. Digamos uma mesa ou um livro. Elimine de seu olhar a consciência da utilidade desse objeto. Esqueça sua história. E principalmente abstraia a Relação que voce tem com ele. Voce não gosta ou desgosta daquilo. Não o conhece. Não sabe para quê ele serve. Pois sua utilidade, sua relação com voce é apenas uma contingência no tempo. Abstraindo tudo isso o que voce vê naquele Livro ou naquela Mesa? Sua essência. Um livro. Uma mesa. Como todos e todas são. Pois aparências mudam, mas não muda aquilo que aquilo é. -------------- Vamos mais ao fundo? Eu estou na escola que estudei em 1974. Mas hoje é 2023. Quase 50 anos mais tarde. Em 1974 eu tinha 12 anos. E as meninas não falavam palavrão. Usavam saia xadrez. Meias brancas. Hoje, 2023, elas falam palavrão e eu sou um velho. Elas usam calças rasgadas e chinelos. Perdem a virgindade aos 12 anos. Mas se eu olhar para elas e abstrair o que sinto, esquecer a minha história de vida, seus movimentos no tempo, sua superficialidade espacial, o que verei? Irei perceber que a Luana de 2023 é a Marcia de 1974. O mesmo medo. A mesma vaidade. O olhar e o tom da voz. A presença e o andar. A Essência. Mudou a gíria, roupa, o costume social, mas não aquilo que elas são: Humanas. Humanos jovens. Elas crescem. Comem muito. Sentem curiosidade. Não querem e querem ser adultos. Brincam. Riem. Pulam. E sentem desejo pelos meninos. ---------------------- Sendo mais radical. Se eu olhar para a mulher que hoje amo, e abstrair dela nossa história, a relação que tenho com ela, chegarei a essência dessa mulher. E entenderei que ela é a mesma que amei aos 20 anos, quando ela nem mesmo havia nascido. Em toda mulher que amei havia a mesma essência: o feminino que ansio possuir. Quem amei foi a mulher. --------------------- Há um momento em que Schopenhauer tem um insight magnífico. É quando ele explica o porque de nossas lembranças sempre parecerem tão boas e o passado se revestir de cores agradáveis para 99% das pessoas. Principalmente a infancia. Diz o filósofo: Na memória conseguimos sem esforço ver as coisas fora de tempo e sem relação conosco. Ao recordar uma tarde do passado, quando tínhamos 12 anos, não pensamos na utilidade daquela tarde, não queremos obter nada dela, o que vemos é uma tarde, voce nela, e um ato que nela aconteceu. Conseguimos então observar aquela cena, aquele passado, em sua essência, pois por ser passado nada queremos lá fazer ou mudar. Sentimos que o passado era melhor porque abstraimos o tempo e o espaço dele e podemos viver a essência daquilo que lembramos. E viver na essência é ter paz. ------------------------ Mudando de tema, saiba que Schopenhauer foi o primeiro filósofo a considerar a Música como a maior das artes. E ele explica o porque: Se a vida é Vontade, viver é estar sempre preso a um ciclo onde queremos-obtemos-queremos de novo-obtemos e queremos mais uma vez...sem fim. Se conseguimos sair desse ciclo sentimos tédio e do tédio vem o desespero. Se não saímos do ciclo, e quase ninguém sai, sentimos a eterna insatisfação. Pois bem, a Música é a única arte que nos alivia desse ciclo. Pois sua construção é o próprio ciclo. A música é COMO A VONTADE. E então, no texto, Schopenhauer passa a descrever como se escreve e se desenvolve uma peça musical. A construção de um desejo, a satisfação desse desejo, a repetição, a satisfação. O ciclo musical refletindo a condição essencial da vida de todos nós. Ela cria um caminho, um desejo, o resolve e então faz com que ele retorne. A música está tão inserida em nossa essência que é a única arte que pode ser usufruida diariamente sem com isso se desgastar. Queremos ouvir a mesma canção milhares de vezes, todo dia, ação que não acontece com um livro ou uma escultura. A música não nos cansa. Isso porque ela caminha ao nosso lado. Há nela o desvelar do que é superfluo e a revelação da verdade. ( óbvio que ele falava de Beethoven, e eu não sei se um funk de 2023 fala algo que não seja temporal e espacial ). ------------------- Schopenhauer amava a filosofia hindu e na sua ideia de essencia há muito de budismo. Tendo vivido no tempo de Goethe e de Beethoven, o filósofo encontrou fama apenas nos últimos dez anos de sua vida. Ele abriu caminho para a segunda onda do romantismo e deu espaço para a hiper valorização do músico como artista maior ( após sua morte teríamos o advento de Wagner e de Liszt ). Para encerrar, se voce pensa em ler Schopenhauer, aviso que como a maioria dos filódofos, sua escrita não é artística, portanto não agradável. Mas vale à pena. O fato de 2023 evitar sua leitura mostra o quanto este nosso tempo procura viver na aparência e jamais na essência.
ARTE HOJE
Não vá pensar que arte é como ciência. Se a produção científica avança, isso é inquestionável, a arte não. Medicina ou astronomia avançam e estão cada vez mais sofisticadas, corretas, exatas. Já na arte isso não se verifica e a ideia de progresso artístico não faz sentido. Ou melhor, ele existe, mas não atrelado ao tempo. Penso isso como produto da morte da cantora Astrud Gilberto, a mais chique cantora que o Brasil produziu em toda sua história. E a mais bonita também. Astrud, com sua voz afinada, suave, discreta, é o ponto máximo da linhagem de cantoras brasileiras. Ela pode ser igualada, jamais ultrapassada. Com Astrud, mandamos para os USA seu então marido, João Gilberto e ainda Tom Jobim, Eumir Deodato, Dom Um Romão, Laurindo de Oliveira, e mais um grande etc. Hoje mandamos, ou tentamos enviar aos USA gente como Anitta, Seu Jorge e Carlinhos Brown. Progresso? Onde ? ------------------- Por mais que eu ame a arte de Klee ou Kandinski, não se pode falar que eles são um avanço em relação à Rembrandt ou Caravaggio. Assim como a literatura de Stendhal ou de Sterne não é menos evoluída que a de Faulkner ou Nabokov. Se na ciência a história é uma escada, onde cada degrau significa um passo rumo ao alto, em arte a história é um caminho numa floresta, onde descemos e subimos, encontramos flores e trevas, e jamais temos como saber se aqui ou lá é mais "alto" ou "elevado" que onde estávamos ontem. --------------- Artes que dependem bastante da técnica, de meios científicos de apoio, tendem a enganar melhor. Um filme feito em 2000 terá, talvez, som e imagem melhores que aquele de 1930. Isso dará ao filme mais recente um brilho de papel de embrulho, uma face maquiada com mais apuro. Porém esse brilho não vem da arte, vem da ciência envolvida na produção industrial do filme. A arte do cinema vive no roteiro, na atuação dos atores, na edição, no modo como o diretor une todas as ideias, unifica o grupo numa coisa coesa. Isso independe da ciência ou tecnologia industrial do filme. Não há como dizer que o ganhador do Oscar de 2023 é mais evoluído que aquele que venceu em 1966. Ou 1945. O que se pode dizer é que o ganhador de 2017 é pior filme que o de 1951, ou que o vencedor de 1930 é bem pior que o de 1995. Não há uma linha que trace a evolução do cinema, mas há uma linha que traça a evolução, óbvia, da conservação de alimentos ou do tratamento da sifilis. Plebeus, gente que não pensa muito, tende a misturar tudo e ver em um disco ou livro de 2023 algo muito mais apurado e bem feito que um disco ou livro de 1960. ---------------------- Astrud e sua voz são pontos culminantes de um tipo de arte: a canção pop. Ela equivale à uma nave que voe à velocidade da luz ou a uma vacina contra o câncer. Um ponto evolutivo máximo. O que veio depois dela, Maria Bethania, Gal Costa, Rita Lee, Simone, são pontos mais baixos, involuções. História da arte não é uma estrada para cima, é um labirinto. Ninguém irá usar um remédio para infecção de 1950, assim como não se viaja mais com navios a vela. Mas a pessoa que exige o máximo e o melhor irá visitar uma capela italiana com afrescos de Giotto, mesmo eles tendo sido feitos a mais de 700 anos. Assim como eu prefiro um solo de guitarra de Jeff Beck à um de Satriani. Quando morre um grande artista sua arte morre com ele. Quando morre um grande cientista aquilo que ele fez é continuado por quem o estudou. É isso.
AUX ARMES ET CETERA - SERGE GAINSBOURG, LE REGGAE
Tive minha fase de ouvir reggae. Em 1983, muito sol, muito Peter Tosh. Mystical Man, Mama Africa, são os albuns que mais ouvi do cantor da Jamaica. Sempre gostei mais de Peter que de Bob Marley. Tosh me parecia mais bad boy. Marley era muito "john lennon" pro meu gosto. E a banda de Tosh era melhor. Tinha Sly Dunbar na bateria e Robbie Shakespeare no baixo. Pra voce entender, eles são tão bons que Bob Dylan os chamou para gravar em 1984. --------------- Em 1979 o mega irriquieto Serge Gainsbourg resolveu fazer um disco de reggae. E chamou a banda inteira de Peter Tosh para isso. Nos vocais de fundo botou as cantoras do Bob Marley, Rita Marley inclusive. Ouço agora esse disco pela primeira vez. É talvez o melhor disco do gênero que ouvi na vida ( pode me xingar, tou nem aí ). Serge fez aquilo que Tosh nunca fez: liberou a banda. Não há um só disco de Tosh que tenha bateria de Sly em tanta evidência. Ela está lá no alto, solando à vontade, o mesmo acontecendo com o baixo de Robbie. É quase um disco de dub music. Ecos, repetições, sons esquisitos, paradas, acelerações, retomadas, é o tipo de reggae que o Black Uhuru fazia então. Serge se antenou com o que havia de realmente novo em 1979 e faz com que as tentativas de Stones ou Stevie Wonder com o gênero pareçam tímidas. O francês teve a inteligência de ser apenas uma voz, ótima, em meio ao bando de jamaicanos. Democrático ao extremo. Que grande, grande disco! ----------------- Posto duas faixas mas poderia postar as doze. Sucesso em seu país, o fato dele não ter sido nem mesmo lançado nos EUA ou por aqui atesta a ignorância preconceituosa contra a música pop da França. É um disco tão bom que não faz feio ao lado dos grandes discos desse grande ano de 1979. Ouça.
MARIA CALLAS, LA TRAVIATA VERDI
Adoro barítonos e menos tenores. Com as vozes femininas tenho problemas, às vezes me irritam. Mas não Maria Callas, talvez a maior das cantoras. Sua voz é diferente. Ela flutua em registros que às vezes parecem ser de um adolescente, às vezes de uma soprano das mais agudas. Sua voz anda por todos os caminhos, todas as nuances. E sempre dentro de um controle absoluto. Ela não parece excessivamente emocionada, nunca, desse modo não me irrita como certas sopranos que dão a sensação de estar, sempre, à beira de um colapso emocional. Seja em erudito ou no POP, eu não aprecio cantores descontrolados. Posto isso, La Traviata, obra prima da primeira fase de Giuseppe Verdi, é uma das mais fáceis e populares das óperas e digo fácil não como demérito mas como a qualidade de comunicar. Orquestra, coro, vozes solo, tudo contribui para um crescer que não decpciona, que vai ao ponto, ao apogeu. Verdi é um mestre da melodia, do cantante, da doçura sem pieguice, do heroico sem fanfarra. Cada momento nesta obra é uma canção em si mesma, acabada e polida, e ao mesmo tempo, cada momento é um pedaço de um todo. Há unidade. Há drama. E há, acima de tudo, música. Na hitória da Dama das Camélias, a cortesã que morre por amor e dor, tudo é solar. Uma tragédia ao sol. ----------------- Maria Callas foi e é a mais famosa das estrelas do canto. Para quem é jovem, Callas era tão conhecida quanto Pavarotti, a diferença é que ela nunca precisou cantar POP com Bono ou que tais. Foi casada com o mega milionário Aristoteles Onassis. Era uma época, anos 60, em que milionários ainda pareciam cool. Onassis a abandonou por Jackie Kennedy, a viúva do John Kennedy. A dor de Callas foi devastadora. Morreu cedo. Menino, eu já tinha esse nome, Maria Callas, como algo tão familiar quanto Paul MacCartney ou James Bond, aqueles nomes que voce ouve muito quando é criança e depois os entende quando vira adolescente. Atriz em filmes de seu amigo Pasolini, ela nasceu para ser diva trágica. E sua vida foi espelho disso tudo. A voz, mágica, ilimitada, não espelha, graças aos deuses, toda essa tragédia. Ela a usa como instrumento musical e nunca como grito de catarse. Era uma clássica em sua arte e não uma romântica. Para o romantismo havia sua vida pessoal. --------------- Amantes de música nunca perdoaram Jackie O por destruir o coração de Callas.
O NASCIMENTO DA MÚSICA OCIDENTAL. ORFEU- CLAUDIO MONTEVERDI
Não exagero com esse título que postei acima. Monteverdi absorveu o que pode da música anterior a sua época e aprefeiçoando violino e violoncelo, enriquecendo a orquestra, criou aquilo que entendemos como "nossa música". Ouvir sua obra tem sabor de coisa antiga, muito antiga, o que é delicioso, mas ao mesmo tempo percebemos que há ali um esforço por renovação. O modo como as vozes são usadas e acompanhadas, a harmonia, é já a nossa. --------------- Orfeu é uma ópera de 1607. Contemporânea de Shakespeare portanto. E ao contrário de tanta música da época, Orfeu se ouve hoje não como "obrigação" histórica, mas como prazer. Ela ainda emociona. Ela é de uma beleza cristalina, simples, profunda, dolorosa sem jamais ser deprimente. É uma obra prima. Os temas instrumentais são breves, porém inesquecíveis. Remetem sempre à clareza. Monteverdi escreve música como poesia, o que ele quer dizer é dito dentro de uma métrica exata. Lembramos e sentimos estar diante de obra antiga, mas ao contrário da música medieval, não se trata de uma beleza monótona, e sim de obra viva. As vozes cantam melodias criativas, a emoção não parece distante. É clássico, felizmente não existe aqui o exagero de emoção do romantismo, estamos longe desse momento. É emoção de "cortesão", emoção educada. A música de Monteverdi é uma aula de elegância, de apuração refinada, de bom gosto ao extremo. ---------------- A gravação que ouço, recente, tem por maestro Claudio Cavina. Vozes de Mirko Guadagnini e Emanuela Galli. Sem falhas. Usam-se instrumentos de época, o que neste caso é bom. Usar instrumentos antigos em Mozart ou Beethoven sempre parece forçado, mas usa-los em música de 1607 me parece correto. Uma orquestra moderna aqui daria à música espírito de obra sem tempo ou momento histórico. Ela parece ser e é de 1607. E anuncia o parto daquilo que nos emociona em sua arte. ---------------- Tenho me educado para entender e apreender o sabor da arte da ópera. Não é uma coisa natural para minha geração. Fomos a primeira geração educada para apreciar a música de 3 minutos ou o LP dividido em momentos breves. Ao contrário do que crê a maioria, o prazer é um aprendizado. Confia-se demais no instinto, se crê que a arte, como o sexo, é um prazer natural, que existe ou não existe em cada um de nós. Não é assim! A fruição, o gosto, o amor ao prazer da arte e da cultura são aprendidos, educados, treinados. ( E falemos a verdade, o sexo também se aprende ). Então, já que a vida é breve, que se aprenda aquilo que é o topo dos prazeres mentais e espirituais. E a música é um dos mais completos. Ouvir Monteverdi é um dos ápices dessa educação. E eu estou chegando lá. É lindo.
UMA QUESTÃO DE SWING E DE MOOD....CHARLES MINGUS +++++++ MINGUS AH UM, UM DOS 5 MAIORES DISCOS DA HISTÓRIA
O disco, de 1959, histórico, abre com BETTER GIT IT IN YOUR SOUL, e tudo se torna beat. A bateria swing e corre como numa noite asfaltada de chuva e sexo. Dannie Richmond o batera. Mingus, gênio, era um cara que sabia usar naipes de sopros como ninguém mais. Eles escorregam levando um ritmo alucinado. Mingus e seu baixo, como deve ser: lá no fundo, empurram a coisa toda. E há o piano: uma repetição de acordes em um break diabólico de danado! Tudo é velocidade e eu sinto que a vida pulsa dentro do meu coração e da minha alma e de tudo ao meu redor. Sim baby, eu sabia que era um disco histórico, mas não achei que fosse tão tão tão BOM ! ------------------ Alguém grita ao fundo. -------------- Uma balada depois, sensual como é toda música escrita com a verdade. Música é sexo, mas às vezes ela é impotente. Não aqui. Mingus devia transar bem pra caramba. Uma faixa agitada em seguida que traz aquele tipo de solo de bateria que só o jazz tem: curto e vital. Aula de batida. Os pratos têm vida. Mingus escreve preguiça como ninguém mais. Sabe tipo um cara acordando de ressaca? No centro de NY ? Carros da janela lá embaixo e frio pra cacete? É isso. Ou então uma loira pelada indo tomar café. Mingus escreve isso e sempre com esse ritmo africano que vem direto dos colhões. Acelera. Lento. Acelera. Lento. Que coisa foda!!!! --------------------- O pianista é Horace Parlan Jr. e os sopros, muitos, têm John Handy, Booker Ervin, Shafi Hadi, Willie Dennis e Jimmy Knepper. ---------------- Bird Calls é um chamado de pássaro no mato, quase um desafino que se torna jazz esperto. Fables of Fabus é dança, um walkin ritmado na Quinta Avenida ou um grupo se movendo numa boate secreta. Mingus quebra o ritmo que poderia ser de Duke Ellington mas que com Mingus é outra coisa. Ouça esse acorde dissonante, essa batida na caixa invertida, a súbita aceleração do ritmo, o bass que sobe e desce todo o tempo, o tropeço geral que lembra Monk mas é Mingus. Todos os solos de sax são exatos, nem longos nem curtos demais. ------------- Sexy e safo, can you dig it? -------------------- Qual foi o cara que descobriu que aquele instrumento tão desajeitado poderia ser a alma do ritmo do jazz? O contrabaixo é a adrenalina que faz pulsar e eis Mingus solando afinal. Pena que é tão pouco.... Pussy Cat Dues...é o que voce imaginou: uma gata se estica sobre o tapete. Eis o som que ela merece: trombone com surdina, enrolando-se nela. O blues mais blues do disco. A faixa mais tradicional entre todas. Talvez porque uma pussy cat seja sempre e será pra sempre isso que aqui se escuta. Um MIAAAAAUUUUUU em forma estendida de jazz. ------------------ Afinal, Jelly Roll fecha o disco. No final, a origem, ou uma das origens. ( Que disco perfeito e que delícia de disco ). Voce sabe, a invenção do jazz e seu desenvolvimento é um tipo de milagre. Quando se cria o samba ou a rumba a coisa é muito forte mas a raiz africana está bem presente nesses ritmos. Mas o jazz..... ele não parece samba e nem música europeia! Ele tem o ritmo e a alma da Africa mas ao mesmo tempo é tão harmonicamente e melodicamente sofisticado como são Ravel ou Strauss. E além! O jazz criou um universo que seria inimaginável no tempo de Chopin ou de Brahms. E dentro desse novo universo, desse big bang, nasceram coisas como Kind of Blue e este Ah Um. Obras primas tão distantes do batuque tribal ou da sinfonia concertante como Mercúrio está longe de Alfa Centaurus. Mundos em si que parecem terem paridos a si mesmos. Charles Mingus foi um gênio, como foram Duke e Miles e Monk e Trane. Ah Um é uma obra prima, mais uma, do jazz. E é sexy pra carai.
A ALEGRIA DA VIDA
Somente uma sociedade que ainda crê na alegria produz um cara como Herb Alpert. Caso voce não saiba, entre 1964-1968 ele colocava seus discos no primeiro lugar, batendo Beatles, Elvis, Sinatra, Motown, Bee Gees e Stones. Seu segredo? O dom de produzir POP na margem, se colocando exatamente na confluência de Burt Bacharach-jazz-soul-easy listening. Tenho memórias felizes desse tempo. Apesar de ter apenas 6, 7 anos de idade, tudo que recordo de feliz tem trilha de Herb Alpert. Aqui no Brasil tentam fazer crer que o período 68-71 foi um horror, para 99.99% da população foi feliz demais. Nunca antes, nunca depois, a economia cresceu tão depressa e nas ruas o que via era um bando de gente descobrindo o prazer de consumir. Era a entrada no século XX, com 70 anos de atraso. No meu bairro, Caxingui, na época um fim de mundo, entre 1970-71, se instalou esgoto, luz nas ruas, asfalto, um supermercado, e surgiu uma quantidade incrível de gente com novos Fuscas na garagem. Tudo isso era um salto imenso. E a música que dava clima para as camisas rosas do meu pai e as minissaias xadrez da minha mãe, era feita por Herb Alpert. ------------------- Se era assim neste fim de mundo, imagine como era o espírito nos USA e Europa. Sim, jovens saíram às ruas contra o Vietnã, sim, Negros lutavam contra o racismo, mas observe seus rostos. Saudáveis. Nas ruas cheios de fé. Certos de um mundo melhor. Cheios de planos. Jovens, mas também adultos. Em 1968 estamos plantando toda a merda de 2023, mas ao mesmo tempo somos totalmente diferentes de 2023. Somos dois mundos. O antes e o depois. ---------------- Encontrar nas paradas de sucesso algo remotamente parecido com Herb é hoje impossível. Algumas bandas fofas, nos anos 90 e 2000 tentaram o imitar. O som de Herb se tornara cool. Mas era fake, extremo fake. E em 2023 o que vemos é histeria, não alegria, pornografia agressiva, nunca sedução, e desespero, não revolução. O mundo que produziu esse som se foi. Morreu em algum momento de cinismo absoluto entre 1979-1982. ------------ Ouça, por exemplo, o tema de Cassino Royale. São apenas 2 minutos e meio, mas quantas ideias há nessa melodia e nesse arranjo. E todos, todos os sons apontam para cima, são leves, espertos, alegres, cheios de vida. Cada toque na bateria, cada timbre de sopro, tudo remete a luxo-calma e saber viver. A música, composição de Bacharach, é elegante, correta, perfeita, e ao mesmo tempo uma surpresa. Imagine como foi a escutar pela primeira vez, em 1967... ( No ano de Sgt Peppers foi Herb Alpert quem mais vendeu nos USA ). Ainda hoje quando estou feliz e me sinto alinhado, é uma música como Spanish Flea que vem à minha mente. ------------------- Para encerrar, a questão que coloco é: há possibilidade de uma Páscoa espiritual do mundo? As pessoas voltarão a ser otimistas, confiantes, amorosas, chiques, centradas? Afinal, passamos por momentos terríveis em 1929 e durante a Guerra de Hitler. Sinto dizer que penso que não. O que ergueu a moral em 1945-1970 foi um crescimento econômico como jamais houve antes. Pela primeira vez em toda a história do mundo, gente de 15, 16 anos não precisava trabalhar e uma porção imensa da população tinha o que comer. Isso foi mágico, incrível, uma mudança que as gerações seguintes mal conseguem imaginar. Não se morria aos 22 de tanto trabalhar. Não se morria de fome na Europa e América. Mais, a molecada de 18 tinha grana na mão pra gastar. Daí a cultura jovem. Daí a revolução. Herb Alpert era a trilha careta de quem ganhava grana, mudava de vida mas não mergulhava nas drogas. ------------ Penso que não haverá renascimento igual porque a causa profunda de nossa falência é exatamente o excesso de facilidades. E ninguém, nem eu e nem voce, vamos querer voltar a lutar pela vida. O simples aumento de caixa não salvará nossa alegria. Mais sexo ou mais drogas também não. ---------------------- Ouça o que postei de Alpert e tente sentir o que descrevi.
LADY SOUL, SONGS IN THE KEY OF LIFE, OS DOIS MAIORES DISCOS DA HISTÓRIA? SERÁ?
Já aviso que prefiro Bootsy. O funk de Bootsy Collins é muito mais cheio de groove e bem menos artístico. É safado. Muito safado. Mas vou falar de dos discos de Aretha e de Stevie Wonder. --------------------------------- Em 1976 era uma delícia ligar o rádio e ser envolvido pela alegria de Isnt She Lovely. Sim, ela tocava de meia em meia hora, o disco de Wonder foi o mais vendido do ano, ano que foi um dos melhores da história ( não vou citar os discos de 1976, são muitos e em vários estilos ). Mas Songs, album apontado recentemente como o segundo melhor disco da história, desbancando Dylan e Beach Boys, tem muito mais. Stevie Wonder, no auge de seu poder, aos 26 anos, nos dá jazz-rock, soul, funk, blues, POP, latin soul, tudo embalado em letras políticas e amorosas. Sir Duke, Ordinary Pain, Wish, são faixas e faixas que se tornaram referência para a cultura black. O album saiu em dois vinis e mais um EP com 4 faixas, hora e meia de absoluta genialidade. Stevie levou os Grammys do ano, e sim, os anos 70 não foram anos "apenas" de Led Zeppelin, Elton John e Bowie, foi a década de Stevie Wonder, um cara que todo ano levava todos os prêmios dos USA. Eu não acho que Songs seja o segundo melhor disco já gravado, mas entendo que ele pode ser o melhor. Há aqui um profissionalismo, uma competência, criativdade, que assombra. ----------------- Há um momento na vida de um artista em que ele dá seu máximo. Uma obra onde ele diz tudo. E que anuncia o esgotamento de sua alma. No rock e no POP vimos isso em albuns como Abbey Road, Exile on Main Street, London Calling, Sex O The Times, Physicall Grafitti, todos são discos que mostraram o auge do artista e ao mesmo tempo, de certo modo, esgotaram sua criatividade. Songs é o grande momento de Wonder, e após esta obra, ele não mais subiu até um local tão elevado. Caiu. Teve momentos que lembravam que ele era o grande Wonder, mas eram apenas lembranças. ----------------- Lady Soul, de Aretha Franklyn, é considerado hoje o maior disco da história. Preciso dizer que muito disso acontece por ela ser negra e mulher. Aretha é um talento mágico, mas sua condição humana ajuda. Isso é óbvio. Como mulher e negra, suas concorrentes seriam Billie Holiday e Ella Fitzgerald, mas as duas são puro jazz, Roberta Flack e Whitney Houston não têm sua força. Lady Soul é um grande disco gravado com grandes músicos no esquema da velha Stax. Tem até Eric Clapton solando numa faixa blues. E acima de tudo tem a voz de Aretha, a melhor voz feminina do POP. É um belo disco, mas jamais o melhor da história. Como todo disco da Stax ( e da Motown pré anos 70 ), ele parece e é muito mais uma coletânea de singles que um album. São grandes músicas POP de 3 ou 3 minutos e meio, mas no geral nunca sentimos estar diante de um grande LP, uma grande obra, um album ambicioso ou coeso. O disco de Stevie Wonder é, sem dúvida, uma obra ambiciosa e plenamente realisada, enquanto o disco de Aretha é um disco POP, uma coletânea de canções maravilhosas, mas não um album. ---------------- Quanto aos antigos "melhores discos da história", Highway 61 ou Pet Sounds...bem....deixo que voce julgue o que é maior ou melhor. -------------------------- Eu vou ouvir Bootsy.
A DESTRUIÇÃO DO CÉREBRO HUMANO
Voces devem saber que tenho um relacionamento, longo, com uma mulher mais jovem que eu, de outra geração. Uma das diferenças que ela tem comigo é o ato do beijo. Ela não gosta, eu adoro. Para mim, o beijo é tão importante quanto o coito ( que palavrinha feia ). Para ela, beijar é perda de tempo, que se vá logo ao finalmente. Essa diferença era para mim uma particularidade dela, mas penso que mais que isso, é uma característica de toda uma geração. ------------------ Recebo ontem um texto onde se diz que na minha geração o tempo médio de atenção musical era de 30 segundos. Agora são 8. Músicas atuais, hits, não podem ter introdução e o refrão deve chegar em no máximo 5 segundos. Melhor ainda, muitas começam pelo refrão. Outras são apenas um refrão. O som deve ser próprio para fones, ou seja, hiper comprimido, e a música deve ter hooks, exigir a atenção a cada 4 segundos. É uma formula matemática e é assim que se compõe hoje. Pega-se esse molde e se coloca uma letra feita de sons e não de frases. ------------------- Comecei a ouvir rádio em 1974. Claro que ouvia antes, em 74 eu já tinha 12 anos, mas foi em 1974 que comecei a procurar o que ouvir. O grande hit de então era Don't Let The Sun go Down on Me, de Elton John. E penso em uma pessoa de 18 anos tentando escutar essa canção agora. Uma longa introdução de piano, dúzias de frases poéticas e só após um minuto e meio entrava o refrão. O ouvinte acostumado aos sucessos de 2023 deve ter a sensação de estar ouvindo algo tão exigente como Mahler ou Bruckner. Todos os sucessos de 74, de The Love I Lost à Sundown possuem belas introduções, um refrão longo e letras com narração. Cinco minutos de atenção. Era o que exigiam. ------------------ Um pensador brasileiro disse que para se ter a profunda experiência espiritual que a música erudita dá, é preciso se concentrar por todo o tempo que ela dura. Se voce se distrai ela se torna apenas um ruído a atrapalhar o ouvido. Eu sei disso porque na maioria das vezes eu me distraio após dez minutos de audição. Nas vezes em que consegui me manter atento, a experiência sempre foi muito significativa. ----------------- Creio não ser preciso que eu cite filmes e séries de TV como construções que hoje também usam uma fórmula matemática para conseguir obter sucesso. Estes dias eu assisti O Belo Brummel, um filme de 1952 que com seus diálogos longos e sua falta de ação física não conseguiria ser suportado por mais de dois minutos por alguém da geração 2023. --------------------- A mulher jovem com que me relaciono ainda consegue assistir um Hitchcock de 1955 e se sentir emocionada, ainda ouve um LP inteiro, adora ler um livro que não seja constituído apenas de ações chocantes ou frases "úteis", mas ela é diferente de mim, muito diferente. Sua atenção é flutuante e sua concentração inexiste. Suas habilidades são ligadas à velocidade. Seu mundo é feito de objetividade, uma objetividade que eu jamais tive. Por ser inteligente, ela ainda consegue acessar o lado humano de seu cérebro, e mesmo tendo sido treinada a não parar muito tempo em nada, ela tem uma sensibilidade que pede por profundidade e revelação. Muitos ainda são assim. Mas nossa humanidade está morrendo. --------------------------- O que diferencia o homem do bicho sempre foi o tempo. Nós lidamos com ele, o esticamos, o dominamos, o transformamos em ferramenta. Nossos beijos, bichos não beijam, eles cruzam, são a tentativa de prolongar o êxtase e nos concentramos em atos "inuteis" na tentativa de obter uma revelação. Um animal pode ficar horas concentrado a espera de uma presa, mas é apenas isso, por séculos e por toda uma população, todo urso fez e fará a mesma ação. E quando perdemos o dom de usar o tempo perdemos nossa particularidade. Voce deixa de beijar ao seu modo e passa a transar como em qualquer filme pornô. Voce não mais tira da audição de Pink Floyd ou The Band uma coisa só sua, mas passa a ter a mesma experiência, vazia, que todos têm ao ouvir o novo hit mundial da cantora POP de sempre. ---------------- É o espírito da manada, maldição anti individualista que faz com que conversar com João ou Pedro seja idêntico a conversar com Tiago ou Ivan. As mesmas crenças, os mesmos medos, os mesmos desejos. Não à toa a palavra "erotismo" é agora considerada de profundo mal gosto, coisa de velho gagá. O erótico traz ao jovem a ideia de coisa lenta, sem sal, absurda, broxante. Se os filmes mainstream não possuem nenhum erotismo hoje, isso se deve ao fato de que ninguém mais tem paciência para Eros, se querem excitação eles usam o mais hard pornográfico. E na pornografia, filosofia única do mundo de 2023, voce goza em dois minutos. Mais que isso "enjoa" e voce perde o tesão. Observe que no funk se fala em sentar, comer, foder, jamais se beija, se abraça, se deseja. Antes do desejo já se faz o final. ---------------- O futuro, ele será anti humano.
ACONTECE OUTRA VEZ: IN A SILENT WAY, MILES DAVIS
Gravado no dia 26 de fevereiro de 1969, sim, em um dia, IN A SILENT WAY é mais uma aterradora obra prima elétrica de Miles. Na época, puristas de jazz torceram o nariz, hoje ele é unaminidade, é um ponto alto da vida do gênio Miles Davis. Aos 42 anos de idade, cercado de jovens cheios de futuro, Miles nos dá o mais simples dos discos, composto de apenas 4 ou 5 riffs que se repetem em looping enquanto os músicos tecem breves e pacatos solos. Músicos? Se por volta de 1958 Miles lançava Coltrane, Cannonbal Adderley e Sonny Rollins, aqui estão presentes todos os nomes que farão o jazz dos anos 70: Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Joe Zawinul, John McLaughlin, Tony Wilians. Cool, sempre extra cool, Miles deixa que os outros brilhem. John McLaughlin, guitarrista que Jeff Beck considerava o melhor da história, é o solista que mais se destaca. Vindo do blues inglês, muito jovem, meio desconhecido, ele começa sua carreira no jazz neste disco. Daqui ele iria para o estrelato na sua Mahavishnu Orchestra. -------------------- No futuro toda nossa música será feita de modo individual. Um programa de AI, com seus dados, irá compor música só para voce, ao seu gosto. Mas, caso ainda haja espaço para música "em geral", Miles Davis será o cara a ser estudado quando se falar em música do século XX. Em meio a Bartok, Cole Porter, Beatles, Hendrix ou Rap, Miles Davis é o centro irradiador do espírito da época. Irriquieto, fértil, suave e demoníaco. --------------- Neste disco, há um momento, breve, em que Tony Willians se solta. Estranhamente a bateria é contida por quase todo o tempo, ela marca o beat de modo discreto. Então ela quebra essa regra e bate mais forte. Imediatamente meus pelos do braço se erguem e minha cabeça começa a balançar. Como em Agharta o duende se faz presente. Miles conseguiu de novo, tudo preparado para esse momento: transe. -------------- São quatro temas desenvolvidos em grooves que usam riffs curtos e simples de baixo e bateria. Três teclados rodam transitando entre e dentro desses riffs e a guitarra sola dando beleza à coisa. Os sopros, Shorter e Miles solam pouco e quando solam criam paz e equilíbrio na coisa toda. É um quase funk, um tipo de soul jazzístico. É como uma miragem. A música surge incorpórea e se desfaz em sopro. Sim, é uma viagem, mas não é música doida ou psicodélica, há controle aqui, precisão, o som é limpo, refinado. O duende surge apenas quase ao final, no momento em que Tony Willians ergue as baquetas e bate mais forte. Sublme é a palavra. ----------------- Alguns meses atrás eu falei que Agharta é o maior disco já gravado em qualquer estilo de música. In a Silent Way chega muito perto disso. E talvez seja melhor.
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