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DO ESPIRITUAL NA ARTE - KANDINSKY

   Abstração. Para Kandinsky ela acontece quando um pintor copia uma floresta, um rosto ou uma cena no mar. Pois a realidade é abstraída da pintura e ela finge ser uma floresta, um rosto ou uma cena no mar.
  Concreta. A pintura de Kandinsky não deveria, segundo ele, ser chamada de abstrata. Pois ela nada abstrai, ela é concretamente aquilo que ela é: cor e forma.
  Mas se um pintor tira de uma paisagem seu motivo para pintar, de onde vem o motivo da nova pintura? Segundo Wassily Kandisnky, da alma. Uma pintura concreta reflete a alma de quem a pinta, isso se ela for pintada com verdade e entrega absoluta.
  Kandinsky criou sozinho aquilo que conhecemos como pintura abstrata. Mais radical que Picasso ou Matisse, ele deu a pintura sua liberdade: uma tela é feita de cor e de forma, nada mais que isso. A cor canta uma emoção, a forma dita um ritmo. Diante de seus quadros vemos a verdade.
  Este livro foi escrito por Kandinsky em 1912. Nele ele explica e defende sua arte. E elogia a música. Para ele, toda arte quer ser música. Porque a música é a mais espiritual de todas as artes. Inexplicável e etérea. Ela nada copia da natureza, ela é pura alma. A pintura que ele faz, ao não copiar nada da natureza, se aproxima da linguagem musical por meio de cor e forma. Suas telas cantam.
  Kandinsky é para mim o maior artista plástico do século XX. E penso que só Paul Klee chega perto dele. O russo pintou a música da alma, e o suíço o sonho do espírito.

E O PROFESSOR FALA DO SÍMBOLO.

   E não é que o professor que tanto entende de Freud, de alemão, de holandês, de dinamarquês, também se revela alguém que compreende e consegue fazer o mais materialista dos alunos entender o que seja o "símbolo" ...
   Quando uma obra de arte, seja texto ou imagem, tem um significado oculto, mas que é revelado aos poucos e para alguns escolhidos, temos uma "alegoria". O Paraíso Perdido de Milton é uma alegoria. A Divina Comédia de Dante é uma alegoria.
   Porém, quando uma obra tem uma linguagem, uma imagem, que nem mesmo seu autor consegue a explicar, essa imagem se explica por si-mesma, e acende em cada pessoa um significado particular, aí temos o "símbolo". O símbolo não pode ser explicado. Ele diz uma coisa, simples e secreta, a cada um. Digamos que ele fala aquilo que as palavras não conseguem dizer. Ele se situa além da linguagem e antes da história.
   Baudelaire fala por símbolos. Assim como Rimbaud. Você pode os traduzir, mas a sua interpretação nunca é a definitiva. O símbolo é inesgotável.
   Isso não significa que o símbolo é superior à alegoria. Milton é maior que o simbolista Verlaine. Mas Verlaine rende mais discussão. Whitman nunca é simbolista. Mas o americano é maior que Leopardi, que usa símbolos. ( Aliás, americanos têm uma enorme dificuldade de lidar com símbolos ).
  A religião é toda símbolo. Mas a igreja é alegoria. Ela tenta dar sentido único a coisas inesgotáveis como a cruz, a pomba ou o milagre. Toda a história de Jesus Cristo é um símbolo, portanto atemporal, inesgotável e particular. Não se traduz em discurso, ela é como um suspiro. A igreja a toma para sí e a traduz. Faz do símbolo uma alegoria e mata sua evolução.
  O marxismo fez o mesmo com a história, a psicanálise com o inconsciente, a crítica literária com a prosa. Pegaram o particular e o transformaram em alegoria universal.
  O símbolo é a prova de que o tempo nada é daquilo que achamos saber. Ele flui através do futuro ao passado e reflui ao presente, renasce a cada nova leitura e nega o certo e o errado. Como diz Gregory Wolfe, a arte abstrata, Kandinsky, Klee, são os verdadeiros artistas, porque eles criam aquilo que passa a existir a partir do nada. Quando Klee pinta uma "coisa" ele a cria do absoluto vazio. Ao contrário de Rembrandt ou de Vermeer que nada criavam, na verdade copiavam, genialmente, aquilo que já existia no mundo, artistas com Marc ou Miró inventam símbolos que surgem do nada e com nada anterior se parecem. São criadores de fato, como criadores foram os homens que desenharam mandalas, símbolos celtas ou intrincados labirintos hindus. Nesse sentido, que não julga mérito, julga criação, Cézanne é o primeiro criador a surgir desde o século XV. Entre Giotto e Cézanne todos foram imitadores.
  Entendeu my friend.

O SIMBOLISMO NA ARTE E A RUPTURA ENTRE DOIS UNIVERSOS- ANIELA JAFFE

   Cada época recebe sua dose de liberdade, e nem mesmo o mais criativo dos artistas pode transpor esse limite. Frase de Kandinsky. Ele, o homem que criou a arte abstrata, arte livre que só poderia ter sido criada em seu tempo ( 1910 ) e que antecipou a primeira guerra em quatro anos. Pois todo grande artista é arauto de seu tempo. Ele revela o espírito inconsciente que rege a história. E o que Kandinsky nos disse? Ele exibiu a divisão que passou a vigorar desde então. De um lado a arte realista, toda fincada na solidez da matéria, na realidade unilateral dos sentidos, e do outro lado a arte do inconsciente, toda voltada para simbolos, para a realidade não aparente, busca de verdades misticas, miticas e atemporais. Se até o século XIX ainda se podia encontrar arte realista misturada a arte simbólica ( Cézanne, Gauguin, Turner ), agora a divisão se faz absoluta. Como diz Jung, a ruptura moderna entre mundo exterior e inconsciente se torna abismal.
   Jackson Pollock irá levar isso aos limites do transe. Seus quadros dispensam a consciência, pintura feita em delirio. Estranha e maravilhosa coincidência, as pinturas produzidas pela alma de Pollock são idênticas aos intrincados labirintos da matéria mais microscópica. Na arte abstrata os limites são sempre o infinitamente pequeno e o cosmos em seus limites. Seria nossa mente um espelho do universo?
   O fascínio e o desprezo que a arte abstrata desperta na maioria das pessoas, liga-se muito ao fascínio e ao medo que o inconsciente produz. Há quem olhe para Klee e nada consiga sentir. Como uma porta fechada, suas imagens perturbadoramente simbólicas e arcaicas podem ofender e provocar risos, medo e incompreensão, cegueira, ou a sensação de aventura, que é seu maior tesouro. Klee foi o pintor moderno que mais chegou longe. Seus quadros conseguem fazer o caminho ideal, a consciência conseguindo construir uma ponte segura até o inconsciente. Klee traz de dentro de sua mente as imagens mais básicas do que seja humano. Imagens da grande mente do universo.
   Ao mesmo tempo Marcel Duchamp percebe a dignidade, o espírito, a fala nobre do objeto inanimado. Duchamp salva o objeto desprezado do lixo onde ele estava e o investe do poder espiritual de um tótem. Magicamente ele dá ao lixo o estado de sagrado. A mensagem é clara, Duchamp ao abrir as portas de sua cabeça percebe a vida como condição do mundo. Investe de dignidade a tudo. Garrafas, urinois ou trapos, tudo pode e deve ser vivo. Mas a guerra que chega faz o movimento contrário. Transforma a vida em lixo. Rouba a dignidade do mundo. E cria a grande cisão entre os universos. A dualidade do consciente e do inconsciente, do sólido e do abstrato, da matéria e da alma. Desde então a união se tornou quase impossível.
   Alguns insistem. Schwitters faz uma catedral de lixo. Recolhe papel e latas e constrói uma catedral de 3 andares. Mas agora a abstração tem ares de desespero. De um lado a tristeza e a falta de sentido de um mundo em que só o que é material existe. Onde a vida se torna máquina de repetições previstas. E de outro o espírito acossado pela inutilidade aparente de suas palavras. Como protesto a alma se radicaliza. Pollock pinta sem uso da intenção, é puro inconsciente. O acidental se faz arte. A droga pinta e canta.
   Marc Chagall conserva sua fé. Como fala Sir Herbert Read, Chagall jamais tirou um dos pés da sua infância, da pureza de sua aldeia, das histórias de sua familia, dos sonhos de sua comunidade. Read está certo. Como comentou Jung, Chagall conseguiu manter sempre a união equilibrada entre os dois pólos, ego e inconsciente, matéria e alma. O grande trauma do ocidente, a morte de Deus, nunca o preocupou. Daí a felicidade presente em suas obras. Quadros onde tudo é muito real e ao mesmo tempo onírico. Sem o desespero de Pollock, Chagall conseguiu fazer a alma falar e pintar.
   O grande teórico sempre foi Kandinsky. Eis sua fala..."A importância de todas as grandes obras não repousa nas suas imagens, na superficie, mas sim na raiz das raízes. No conteúdo místico da arte." E ele ainda diz..."O olho do artista deveria estar sempre voltado para seu interior, e seu ouvido para sua voz íntima. Esse é o único modo de dar expressão ao que a via mística pede". Kandinsky descrevia seus quadros como uma visão espiritual do cosmos. Música de esferas, harmonia de cores e de formas.
   Paul Klee, talvez meu artista favorito, acrescentava que essa visão mística só será válida se for construída com alguma estrutura. Eis aí a colaboração entre consciência e inconsciência. "'E missão do artista penetrar o mais fundo possível naquele âmago secreto onde uma lei primitiva sustenta seu crescimento. Que artista não desejaria habitar a fonte central do espaço-tempo? Esteja ele situado no cérebro ou no coração da criação, é de onde todas as funções extraem a seiva vital que as sustenta. Coração a palpitar, somos levados cada vez mais para baixo, em direção a fonte primordial. O ventre da natureza, a chave secreta de todas as coisas".
   Essas palavras são de Paul Klee e nunca li nada melhor sobre a ansiedade criativa, a aventura que acomete todo o artista verdadeiro. O confronto com perigos, lugares sem nome. Anjos e risos de deboche. A aventura de nascer.

CEES NOOTEBOOM E MAIS BENJAMIN E AINDA HEGEL

Estou lendo um autor bem interessante: Cees Nooteboom. É o principal autor da Holanda hoje. Escreve filosoficamente, é bastante materialista, mas é um materialismo em crise. Tenta abarcar tudo o que importa agora: a falência da sensibilidade, a vulgarização da história, a falta de rumo da existência, a memória persistente, o fim de tudo todo o tempo. Sobre o livro que leio hoje, falo depois. Quero antes citar algumas coisas de interesse.
O século XX é o século da ironia. Tudo é olhado com dúvida, com distanciamento. Ora, com ironia não se dá um passo. Se voce não se entregar sem reservas a nada, se voce não tiver fé em coisa alguma, nada será feito, produzido, tentado. A vida se torna um sempre "quase", um talvez, um relativo quem sabe ou outra vez. Mas, estranhamente, o século XX é feito e destruído na Alemanha, país desprovido de ironia.
Alemanha é nação da punição. O alemão está sempre se policiando, se vigiando e se punindo por seus erros. É um povo que ama seu sofrimento: Wagner, Beethoven, Nietzsche, Rilke, Freud e Strauss. A imagem de Nietzsche abraçado ao pescoço de um cavalo e pedindo perdão a todos os animais da terra é a imagem da Alemanha. Ela faz a guerra e sofre a derrota, sempre. Sua ânsia é a vontade de perder. Porque isso?
É um país de nevascas, de vales escuros, de florestas eternamente em névoa, de montanhas isoladas. Tudo na Alemanha era mistério: cavernas, bruxas, bosques, mitos, sangue em abundancia. De toda a Europa é o país que pior se adapta a modernidade, a razão fria, ao tempo sem segredos. Mas, como povo guerreiro, ele corre rumo a liderança, sacrificando sua "alma". Dá-se a irrupção sazonal do inconsciente, do espírito, do que foi negado. Já a Holanda é seu oposto: uma nação sem montanhas, sem cavernas, plana e simples, exposta, anti-segredos, reino da burguesia, dos bancos, do pensamento moderno, onde tudo é reto, claro e sem mácula.
Nooteboom fala ainda dos humanos extintos. Características humanas em vias de desaparecer. Humanos tímidos. Ninguém mais é timido. Todos sabem posar para fotos, criar nomes falsos, sair de casa sozinho. O rubor está sumindo, a mocinha de seio rosado e bochecha rosa, olhando para o chão; o mocinho timido, sonhador, romantico velado, gaguejante. A timidez foi morta pelo mundo do espetáculo, pelo show, pela vida em escritório, pelo cinema americano, pelo rocknroll. O respeito é outro valor extinto. Tudo o que importa é a minha verdade, e se a minha verdade é só minha a sua verdade me é irrelevante. Não respeitarei alguém que deseja ser mais verdadeiro que eu mesmo. Não respeitarei ninguém, pois respeito é negação de si mesmo. Esse pensamento torto, bobo, ridiculo se torna dominante com a tecnologia ( onde tudo é relativo e sem hierarquia ) com o fim da timidez ( timidez que traz a vida interior ). Para o futuro haverá a extinção da verdade, do subjetivismo e da solidão.
Tudo isso nas 130 primeiras páginas de Nooteboom.
Uma citação de Walter Benjamim:
"... é assim que o anjo deve ser representado perante a história. Com esse olhar crispado voltado ao passado ( ele fala de uma pintura de Paul Klee ). Onde nós vemos um encadeamento de fatos que significam nossa história, o anjo vê apenas um momento único de catástrofe absoluta. Esse anjo gostaria de ficar e ressuscitar os mortos, abrir a luz nos escombros. Mas do céu desce um vento irresistível que arrasta suas asas ao porvir. Os escombros, o entulho se agiganta a seus pés alcançando montanhas, mas o anjo precisa voar, rumo ao destino. É a essa tragédia que damos o nome de progresso".
Uma citação de Hegel:
" Voce está num trem bem iluminado. Voce observa por toda a viagem o ambiente e seus companheiros de viagem. Rostos, vozes, roupas, gestos. Voce crê então conhecer a realidade daquele vagão. Então voce pede a outra pessoa para descrever aquele vagão, descrevendo inclusive voce. E descobre que a realidade para ela seria uma aberração para voce. Pois ela não considerou nada do que lhe é mais real. Ela não percebeu seus sentimentos, seus desejos, seu passado, aquilo que voce ama em voce e renega em voce. Ela simplesmente não conheceu a realidade. É por isso que toda a história do mundo é impossível de ser apreendida."
Nooteboom, como todo grande artista, vai mais longe: É por isso que a Verdade não existe.