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UMA COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS.

   Leio em seguida a Ilíada este livro de 1440. É um choque absoluto. E serve, muito, para expor o que mudou entre esses dois mundos tão opostos.
   A Imitação de Cristo foi, no começo do livro impresso, um best seller. Todo cristão deveria o conhecer de cor, e toda Europa era então cristã. Poderíamos dizer inclusive que o século XV foi o último século do cristianismo como união europeia. Em seguida viria Lutero.
   Thomas de Kempis nasceu perto de Colônia, na Alemanha. Foi padre agostiniano e morreu aos 91 anos. Seu mosteiro ficava na Holanda e lá ele era responsável por receber os noviços. Seu livro, sucesso desde sempre, ensina a seguir os passos de Cristo. Pode ser resumido em 3 preceitos:
1- Devemos viver dentro de nós mesmos, pois é lá que Deus fala conosco.
2- Devemos estar prontos para a dor, pois viver é sofrer.
3- Devemos negar a vaidade. A humildade é o que nos leva ao caminho.
   Na Ilíada existe dor. Ao contrário do que pensam os anticristãos, a vida na Grécia era tomada pelo medo. Os deuses vigiavam o mundo e esses deuses eram imprevisíveis. É estranho ver que nenhum deles tem uma ética. São deuses imprevisíveis e temperamentais. Tudo o que o homem pode fazer para os agradar é homenageá-los com sacrifícios e templos. Cada dia e cada manifestação da natureza pode ser um presságio. O homem da Ilíada vive assustado e em guerra.
  No cristianismo há uma negação de tudo isso. O cristão conhece a Lei de Deus. São regras claras e se não forem seguidas, voce é livre para as negar, as consequências não virão aqui e agora, elas cairão sobre o homem no futuro. Agradar a Deus é negar o mundo da natureza, é viver dentro de si, isolado do mundo. Não se assuste com esse "negar o mundo". Pode haver caridade, mas o centro dessa fé é a busca por Deus dentro de si mesmo. E Ele se encontra na negação da vida e na negação do eu. Eis a grande mudança: na Grécia e no mundo antigo, o herói é aquele que tem um ego imenso. São vaidosos, arrogantes, violentos, se impõe pela força. Aqui, a partir de Jesus, o herói nega seu próprio valor. Ele é apenas mais um, o último dos últimos. Não tem força física, não tem vaidade, na verdade a odeia, não se vê como nada mais que um pecador, um trapo, um ser feito para padecer. É um tipo de herói não heroico, um herói inconsciente, um herói que se manifesta em bondade e altruísmo por graça de Deus e jamais por mérito próprio.
   Esse cristianismo se perdeu. Mas foi hegemônico por 1000 anos ( de 500dc à 1.500 mais ou menos ). Com a ciência o homem sai de dentro de si e passa a valorizar o olhar sobre as coisas. Conhecer deixa de ser entrar para seu centro e passa a ser ir ao mundo e o explorar. Esse o credo dos últimos 500 anos.
   Um belo livro este.
  

LENDO A ILÍADA ( FINALMENTE )

   Compro em um sebo uma versão do livro de Homero. Capa dura, com ilustrações, tradução de Carlos Alberto Nunes, edição de 1962. Felizmente a tradução é em versos e devo dizer, é belíssima!
  Poetas já falaram que foi Homero o maior dentre eles. Por ter sido o primeiro, ele está ao lado da fonte de onde brota o impulso de cantar. Agora, conseguindo o ler, quase concordo com isso. A leitura flui como rio e sinto um prazer imenso enquanto leio as descrições de batalhas, presságios, cenários, dúvidas. Tudo surge com ares de sonho, de algo que sempre esteve ali. Para nós, cultos do ocidente, ler Homero é como escavar uma raiz.
  Os guerreiros guerreiam, os deuses tramam, matam-se bois, invocam-se deuses, mais guerra, muitas mortes, descrições de vísceras. Mundo onde se come carne, se raptam mulheres, se guerreia e se sacrifica bois aos deuses. Mundo onde o humano e o divino estão completamente unidos. Os deuses estão conosco todo o tempo, e tudo o que fazemos e sentimos é por eles ditado. Deuses que são como nós, as mesmas falhas, as mesmas paixões. Única diferença: deuses não morrem.
  Dizem que a Ilíada era tudo que um grego precisava saber para viver. Eles decoravam o poema e o usavam para se guiar na vida. Penso eu que 2.600 anos mais tarde, a Ilíada nos ensina a morrer. Há algo naquela profusão de mortes que faz dela um ato mais que natural; uma parte certa e nobre da vida.
  E você se pega dentro do canto, pois ela era cantada, você se pega súbito contemporâneo de Heitor, de Ajax, de Glauco. Um tipo de hipnose se faz. Palavras longas passam a ser faladas com facilidade, nomes gregos são conhecidos como vizinho, sua mente encontra um tipo de ritmo, a Ilíada se torna terapia. Eis nossa raiz, guerra-deuses-morte-sacrifício. Eles vivem em ação, atos que estão concatenados a outros atos. A vida dessa Grécia, antes de Platão, antes da filosofia, é uma vida que flui sem parar, flui em ação não segmentada, flui em fluxo contínuo.
  Há algo de tolo de minha parte em falar de Homero. Infelizmente Homero é hoje tema apenas de filólogos, linguistas, antropólogos...Sou tolo por falar da obra apenas como leitor, apenas como alguém que tira prazer da leitura. Pois me surpreendo ao conseguir ler sem esforço, naturalmente, musicalmente.
  Não sei o que mudou em mim. Antes nada entendia e logo desistia. Mas agora...será mérito da boa tradução?
 

ESTAMOS CHORANDO A BEIRA MAR

   Nunca tivemos tanto. Temos roupas, temos comida e remédios. Um homem assalariado, comum, tem hoje coisas que seriam impensáveis em 1950. Não falo de celulares ou PCs, eu falo do básico. Mas, estranhamente, nunca fomos tão "sem nada". Sigo o raciocínio de Olgária Mattos e da poesia de Kaváfis, perdemos a liberdade e a criatividade, com isso perdemos a viagem.
   As coisas existem em certa proporção e para ter uma nova coisa é preciso perder uma outra. Troca-se. Nossa fartura ocupa o espaço de outras coisas que se vão. A liberdade de nada ter trazia a liberdade de poder partir sem olhar para trás. E essa liberdade, mesmo que apenas sonhada, trazia consigo o dom de sonhar e de tentar. A criatividade. Temos coisas e não sabemos o que fazer com elas, ou pior, não sabemos também o que fazer sem elas. Nunca fomos tão dependentes do trabalho de outros. Não conseguimos sobreviver a sós. Precisamos de celulares, de carros, de protetor solar e de enlatados. A sós ao lado de um rio morreríamos de fome e com dor de barriga não saberíamos que chá fazer.
   Nossas crianças perdem o dom de imaginar. Não sabem mais inventar brincadeiras e construir brinquedos. As mãos perdem sua magia e com elas se vai a criação. Adultos, não mais temos um ideal e ficamos passivos a espera de alguém que nos dê ou venda uma invenção. Nova. Nunca tivemos tanto e nunca tivemos tão pouco.
   Jamais iremos saber cultivar, domar, fazer, ser outra vez? Coisas sagradas se tornam jogos ou brinquedos. Sexo é hoje um brinquedo e a guerra um jogo. A morte uma cerimônia vazia de sentido e o casamento uma chatice sem porque, uma lingua que esquecemos da tradução. Esquecemos. Vamos apagando da memória o que significa familia, amor, religião, arte, beleza. E então falamos sem pensar que tudo isso é um nada sem sentido. Na verdade não conseguimos lembrar do sentido, não entendemos mais essa linguagem. Nossa memória se ocupa de outras coisas... do que mesmo?
   Perder a lembrança de familia ou de religião seria aceitável se fôssemos felizes sem elas. Mas não é o que ocorre. Terapias, drogas, armas e vicios provam o contrário. A vida tem se desvalorizado. Dizer que uma vida é "mistério sagrado" parece hoje uma bobice.
   Vivemos um tempo em que até mesmo a poesia é não-poética.
   Ulysses lutou dez anos em Tróia. E levou outros dez para voltar para casa e para sua esposa. Nessa volta ele foi amante de uma feiticeira e viveu com ela na mais linda das ilhas. Nessa ilha tudo havia e nada era ruim. O mais lindo sol, o mais lindo mar e a ausência de dores e de doenças. Sexo, comida, prazer. Mas toda noite, escondido, Ulysses ia à praia e chorava. Ansiava por partir. Voltar à feia, pobre e triste Ítaca.
   Então um dia Ulysses parte. Sem saber se irá sobreviver a viagem, sem saber quanto tempo irá gastar no mar, ele se vai e abandona a ilha da felicidade. Ulysses se lança a dúvida, ao precário, e volta a ser ele-mesmo. De volta a aventura, ele readquire sua criatividade, sua independencia e suas opções. Mais que tudo, ele espera...Espera retornar, Ulysses é feliz, Ulysses volta a ter fé, ele espera e confia.
   Veja bem, Ulysses volta a ser feliz mas não a ser contente. Ele foi contente na ilha, no mar ele é sério, ele é feliz.
   Não é preciso que eu diga que vivemos na ilha. E que Homero teve a intuição divina da armadilha que o futuro nos preparava. Estamos contentes. Estamos chorando a beira mar.

O HERÓI COMO SER FELIZ, A ODISSÉIA- HOMERO

A melhor coisa que voce adquire ao ler é tomar a consciencia de que o modo como o mundo existe hoje não é o único possível. Mais que isso, já fomos completamente diferentes. O modo como pensamos, sentimos e vivemos é apenas uma etapa na história da vida. E veja bem, não estou dizendo o que pensamos, estou dizendo COMO pensamos. Falemos da Odisséia.
Obra da Grécia arcaica, ela não tem autor. Na verdade, a obra é uma coleção de canções, uma espécie de repente/rap que era passado de voz para ouvido por gerações. E sempre acompanhada por cítara, e talvez, dançada. Narra as aventuras de Odisseu, herói grego que tenta voltar para casa após a vitória sobre os troianos. Mas o deus Poseidon não quer que ele volte. Enquanto isso, em sua casa, Penélope, sua esposa, deve rechaçar pretendentes e seu filho Telêmaco tornar-se um homem. Esse é o tema contado muito superficialmente. Mas do que trata o épico e o que ele nos diz hoje?
Nos mostra um mundo tão distante do nosso que se torna quase incompreensível. Primeiro fato: A escrita já existe, mas ainda não é dominante. Ou seja, o que se fala ainda é mais importante. O pensamento, por ser falado e cantado e não escrito e lido, está livre, solto. Ele ainda não está preso a caracteres e a léxico. O que eles falavam era como água e não a rocha imutável que veio a ser.
Segundo: Tudo é exterior. A introversão não existe. O homem existe como ação e não como reflexão. Mais que isso, a vida interior ainda não foi inventada. É estranho dizer isso, porque cremos que vida interior é um atributo nato ao humano. Mas não, ela é criada pela cultura, a subjetividade não nasceu como nasceram o desejo ou a guerra. Os poetas líricos ainda não haviam se voltado para dentro de si-mesmos analisando os sentimentos, e o teatro ainda não fora criado, o homem ainda não se via como ator em drama vivo. O homem então era um ser aberto para fora, ele olhava a vida e reagia a ela. Interessante notar que mesmo a beleza física, tão valorizada nessa época, é vista pelo outro e nunca por si-mesmo. Ninguém fica se glorificando por sua beleza, são os outros que a idolatram.
Terceiro: Tudo tem um sentido. Em cada coisa que ele vê há uma razão, mesmo que essa razão lhe seja oculta. Nada é gratuito, tudo tem um fim. Deuses regem tudo o que acontece, e Deuses são como homens, vingativos, ciumentos, cruéis, impulsivos e sexuados. A noção de pecado não existe como a conhecemos, o que existe é a ofensa ao deus. E tudo pode ser um deus. O bicho na mata, o vento que sopra, o estranho na rua, cada coisa na vida pode ser manifestação de um deus. Portanto, para esse grego, tudo deve ser respeitado, homenageado, e mais: a cortesia é lei. Quem bate a sua porta deve ser abrigado, ele pode ser um deus lhe testando.
Quarto: A morte não é o fim, mas todos vão para o Hades, um tipo de inferno/purgatório. O que o grego mais deseja é uma morte honrosa e principalmente o não-esquecimento. Nada é mais desonroso que passar pela vida e não ser recordado após sua morte. Mas não a fama pela fama, e sim a lembrança da honra. Para o grego de então ( muito antes de Platão ), cada geração que nasce é a confirmação do brilho da geração original. Meu bisneto abrilhantará meu nome.
Nesse contexto temos a história de Odisseu. E a arquitetura de sua aventura é até hoje o caminho de toda aventura ocidental: o mar/estrada, a tentação, a queda, o amadurecimento e o retorno a casa. Herói feliz por ser herói que jamais se questiona, o mundo em que ele vive é seu mundo, ele é esse mundo, esse mundo é feito para ele. A mente ainda não tem a pretensão de crer que ela pode tudo entender e cada ação não tem preço ( questionamento ).
De certa forma, toda vez em que nos vemos desejando um mundo mais simples, sem complicações, estamos com a nostalgia dessa Grécia arcaica. Mundo que jamais voltará, pois expulsamos os deuses de nossa vida, desalojamos esse seres de seu Olimpo, tomamos para nós o peso da vida, criamos a subjetividade, a liberdade. Ler hoje A Odisséia é perceber que nossa mente, nosso mundo, nossa fé é apenas uma possibilidade, um modo de viver. Odisseu iria rir de nossos medos e ridicularizar nossa pretensão. Para ele todos nós seríamos quase bichos, porque se o que para nós define o humano ( razão e linguagem ) nos basta, para ele essa humanidade é definida por engenho, coragem e respeito aos deuses. E coragem, habilidade e respeito ao sagrado ( vida ) tem faltado em todos nós.