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O AFRICANO- LE CLÉZIO

   Tolstoi dizia que a maior surpresa que um homem pode ter é a chegada da velhice. Não sei, para mim ela tem chegado lentamente. Talvez pelo fato de amar coisas antigas ela me seja mais confortável, mas mesmo assim dolorida. Surpresa para mim, a maior da minha vida, foi uma foto 3/4 que tirei a três anos. Tirei numa dessas máquinas automáticas e fiquei chocado ao ver o resultado: aquele não era eu! Aquele rosto, aquele olhar, a boca, aquele era meu pai !!!
  Le Clézio começa este livro assim: " Todo ser humano é resultado de um pai e de uma mãe. Pode-se não amá-los, não os reconhecer, pode se duvidar deles. Mas eles aí estão, seus rostos, suas mãos, suas atitudes... " No livro, escrito em 2004, o autor vê fotos e pensa a história de seu pai.
  Francês nascido nas Ilhas Maurício, faz-se médico e vai clinicar na África. Nigéria, Camarões, o pai anda. O continente que se apresenta, como diz Le Clézio, não é aquele de Huston ou de Heminguay, é a terra de Karen Blixen, lugar cheio de gente, não de feras, continente humano, crianças, doenças, feiticeiros, fome, e de risos, conversas, danças, paisagens, da liberdade sem fim. O pai se apaixona, corre rios, sobe montanhas, único europeu entre africanos. Os nativos o aceitam, é o homem que ajuda. Apesar das amputações que ele opera, das mortes, da falta de tudo, faz-se um idilio, que é completo com a mãe de Le Clézio. O casal vive em cabanas na chuva, em raios que desabam. O autor é concebido na África. No fim da gestação a mãe vai à França ter o filho, o pai irá depois.
  A mão da história intervém: é 1940 e a França é invadida. O pai não pode ir. Tenta chegar a Europa pelo Saara, fracasso. O filho só será conhecido em 1948, oito anos mais tarde. Durante esses anos a África muda. A lenta agricultura, a indolência do tempo se parte. As companhias da Europa caem sobre a terra, as tribos conhecem a ganância, guerras, lutas. O pai se torna amargo, angustiado, aquela terra não é mais sua.
   Conhece o filho, enfim. São estranhos. O pai é rigido, disciplinador, severo, fechado.
   É 2004 então. E Le Clézio agora compreende o pai. Pode sentir o que ele sentiu. O horror da miséria, a África sendo destruída, a volta a França, nação que não é a de seu pai. Ele percebe que no rigor havia o desencanto, que na disciplina ele o educava. O pai morre em 1982. No bolso ele levava uma Vida de Jesus. Le Clézio pensa.
   O mundo cospe na África. Brinca com ela. Ele conta a história tenebrosa de Biafra, o maior inferno que a Terra viu. Recorda seus amigos africanos, as brincadeiras na terra, os cupinzais, as formigas, o pó. Chega a uma conclusão idêntica a de Chesterton: A criança nunca vive em mundo de fantasia, ela vive no absoluto real. Um cupim era um cupim. O ver, sentir, o presente é o cupim e nada mais que o cupim.
  Le Clézio leva a África dentro de si. Vive a meninice sempre. Todas as operações feitas pelo pai, todas as crianças que ele viu morrer, tudo está vivo nele. Mais, ele é aquilo que seus pais viveram antes dele, ele é a chegada do pai ao continente, ele é as Ilhas Mauricio, ele é o pai e a mãe.
  Curto, simples, pequeno, triste.

RAGA, LIVRO DE J.M.G. LE CLÉZIO

Primeiro ele narra uma viagem. Uma familia de ilhéus numa das maiores aventuras da saga humana: piroga no oceano, perdida, indo de ilha a ilha. E a nova terra, a praia.
O livro, curto, eu o li em uma manhã de frio, é delicioso. Deliciosamente interessante, porém é de dor que ele fala. Crimes cometidos pela Europa sobre a Oceania. Hediondos.
Mas antes Le Clézio anda pela ilha. E percebe a angústia sempre presente nessas ilhas que turistas tolos chamam de "paradisíacas". Nunca foram um paraíso. Nunca. A história desses mundos é de fugas: fugir da fome, fugir dos vulcões, fugir dos inimigos. Se aventurar ao mar, descobrir nova ilha. E depois a maior da dores, a chegada de navios brancos, a captura de seus filhos, de suas mulheres, a escravidão. Le Clézio anda pela ilha com uma missionária católica, e vê nela a primeira pista de um novo mundo num novo século... Qual mundo?
Antes do novo ele narra as lendas. A fertilização do mundo, a sexualização da vida. Lendas que são surpreendentes. Terra que nunca foi de ninguém, ilhéus que sempre viram a terra como dona da vida, o homem como companheiro da terra, parte dela e não seu dono. Mas a vela branca do navio europeu é vista ao largo, e a fuga se faz. Para dentro da mata. Os europeus tomam posse da terra, dos corpos e dos deuses, é a chegada do eu.
Homens que se jogam fazendo "o gol " ( o nome é esse, nós o chamamos de bugee jump ), mulheres que trançam esteiras. Pássaros que anunciam a vida. Estrelas. E o mar, sempre o mar.
Mas agora é hoje e Le Clézio sempre narra de hoje, não se perde no passado. E constata o futuro das ilhas, o futuro da Terra, deste planeta. Um novo cristianismo mestiço, uma nova forma de ver a vida.
E é pela língua que a coisa se anuncia ( meu professor de linguística adoraria este livro ). Línguas miscigenadas, criolas, que são não um erro mas sim uma vingança. Línguas como o foram um dia o francês e o português, línguas que eram reações de tribos contra o opressor romano ( o latim culto ). O final do livro é uma antecipação desse futuro: eles são hoje a vitalidade que fomos um dia. Eles têm a curiosidade de quem é novo. Tudo querem ver, tudo provam, e principalmente, tudo misturam. Misturam músicas, adicionam temperos, fazem uma sopa de línguas. O futuro é mestiço ( sempre foi ). Porque o francês é um mestiço ( de romanos, celtas, normandos, bretões ), o português é um mestiço ( de romanos, íberos, celtas, suevos e árabes ), mas são mestiços já esquecidos de suas origens, o sangue impuro acomodado em não-memória, em não-sonho. Mas nas ilhas, na Oceania, como no Caribe e como na África, a mestiçagem é viva, é agora, nasce. E eles se espalham pelo mundo, porque têm viva na mente a dor da opressão, porque têm a violência na alma, porque precisam vingar a injustiça.
Sim, há uma violência latente nesses lugares. Que é uma reação e nunca uma ação. Seus avôs foram massacrados, raptados, estuprados, sua cultura foi apagada, seus deuses ofendidos, sua cara foi amordaçada. Nunca houve dor maior no mundo. Não foi a dor ( terrível ) da guerra, pior, foi a dor da aniquilação. Exemplo: em 1910 na África do Sul ainda se organizavam expedições de caça ao negro. Na Austrália, de caça ao aborígene. Forma européia de vencer o tédio...
A reação violenta está na língua, cheia de termos crús, estúpidos, agressivos. A reação está no modo como eles viajam, viajam com o intuito de voltar, de explorar o explorador. Eles foram dizimados, são violentos e resistentes. Pois seus deuses voltam e o que desejam é lembrar.
Mestiços, povos que amam provar tudo e que assim amam a tecnologia, as novidades, a moda, mas que ao mesmo tempo impregnam tudo de deuses, de manhas, de ritos e de mistérios. Lêem as linhas do tempo. Resistem.
Franceses e portugueses foram massacrados um dia. Foram escravos e perderam sua religião, sua terra. Mas não souberam resistir, se renderam. Essa dor nos foi roubada. Mas não eles, sua dor é deles, é mantida e é celebrada. Identidade.
O futuro de toda nação passa pelo saber ser mestiça. Os aborígenes, ( assim como os negros e os outros povos misturados ), quem diria, são o futuro da vida. Se eles deixarem de resistir estaremos mortos.
Pequeno grande livro.

HOUELLEBECQ, O ÚNICO

Michel Houellebecq é o cara. É o único escritor que realmente escreve sobre aquilo que o mundo é agora. Seu mundo é meu.
Para ele, nós apenas comemos, dormimos, transamos, trabalhamos e morremos. Mais nada. É um mundo sem heróis, sem deuses, sem qualquer transcendencia, reduzido ao nada.
Saiu um texto sobre ele na Folha de 3/10. Eu conheci Michel através de Iggy Pop. Sim, Iggy gravou um disco inteiro sobre Houellebecq. Iggy pensa ser ele o cara. Em mundo cada vez mais árido e vazio, só podia ser um francês o cronista deste tempo de mierda.
Partículas Elementares e A Possibilidade de Uma Ilha. São seus livros ( por enquanto ). Não se engane, voce vai ouvir falar muito dele ainda.
Mas não pense que eu o considere Grande.
Não lava os pés de Saul Bellow ou de Sebald. Mas o problema é que Sebald e Bellow estão mortos. Assim como Updike. Dos vivos, Le Clezio tem um estilo melhor, Roth é mais elaborado e criativo, e Coetzee é muito mais "escritor". Perto desses caras, Michel é tosco.
Porém é sua a escrita do século que nasce e já está gasto. A ruindade de Houellebecq é a ruindade da França/Europa/Terra de agora-já. Um desencantado fedendo a fumaça e a calor sudorífico. A água evapora, e com ela a poesia. Abrimos mão de tudo o que é subjetivo. A alma se vai com isso.
É tempo de Michel Houellebecq.

EM BUSCA DO OURO- J.M.G. LE CLEZIO

Leitores ( críticos inclusive ) tendem a dar uma excessiva importancia ao Nobel. Vai daí que ao não contemplar seu autor vivo favorito, façam um escandalo, como se seu ídolo houvesse sido ofendido. O prêmio não garante imortalidade, pois apesar de ter premiado imortais como Yeats, Eliot e Mann, o Nobel ignorou Borges, Joyce e Proust ( dentre vários outros ).
Esculhambaram a escolha de Le Clezio. Eu mesmo, na época, teria optado por Updike ou Roth. Bem... o prêmio já premiou gente bem pior. Recentemente temos Toni Morrison, Derek Wallcott ou Dario Fó.
Vamos ao livro, o segundo que leio de Le Clezio ( que é famoso e adorado na França ).
Nascí numa casa grande. Com um longo corredor. Longo o bastante para sevir de lugar para brincadeiras. Havia um porão também, escuro, úmido e cheio de aranhas. Lá eu sonhava em tardes muito quentes. Um imenso quintal, cheio de árvores e bichos. Me deitava ao sol e brincava de olhar nuvens passando... Um dia essa casa foi largada, deixada, e com ela todo o mundo ao redor também. Mundo de caranguejos, cobras, sapos e tardes longuíssimas com nada para fazer. Um mundo muito vivo, rico, que criou poetas, doidos ou vadios.
Ao lado desse universo existia o planeta oceano. As idas à São Vicente, que naquele tempo tinha ainda um clima de lugar distante, calmo, do mar. Um mundo de peixe fresco, camarões, chuvas assustadoras, da Serra do Mar... Esse é o mundo de onde eu vim. "Em busca do ouro" fala à esse universo.
Este livro de Clezio fala de um menino. Que perde sua casa de sonho e cai na vida do mar. Onde, adulto, ele procura um tesouro que lhe possibilite a volta ao mundo perdido. No livro existe alguma coisa de Conrad, mas é um Conrad menos viril, mais simples. Há também um pouco de Naipal, mas visto do lado europeu, não o lado nativo ( o narrador vive no oceano Índico ). A escrita é direta, em primeira pessoa, concisa, mas sem deixar de ser bastante emotiva. Fácil de ler, flui como maré, apesar de se perder um pouco no miolo da história. Mas o principal, que me faz querer escrever, é o fato, agora nítido, de que é necessário ter algum tipo de experiência pessoal para se usufruir, com profundidade, a verdadeira arte. Sem o sentimento de "doce saudade e amarga decadência " é impossível usufruir este livro. Sem amar o oceano, os pássaros e o sol, é inviável ler este texto. Sem o dom de sonhar e querer enxergar além do aparente, não há como compreender Clezio.
Não é assim com tudo que travamos contato ? Como apreciar o cinema de Visconti sem refinamento e senso estético ? E de onde vem isso ? De sua própria biografia, daquilo que voce viveu antes de ver o filme. Como compreender Fellini se voce não possui um pequeno poeta dentro de voce ? Ou usufruir de Bergmann sem ter mergulhado no sentimento de morte e dor da vida ? Só rebeldes com poeira nos olhos e uma moral a defender compreenderão a profundidade de Ford ou Hawks e somente quem viveu uma luta feroz, interna, entenderá do que Kurosawa está falando.
Aqueles que somente compreendem o que é fútil, pobre, óbvio, não viveram, ou viveram pouco.
O livro de Le Clezio me trouxe essa confirmação. Não é pouca coisa. Talvez o Nobel tenha acertado.