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Great Expectations



leia e escreva já!

DOIS FILMES PERFEITOS

   Falo de cara: Voce não vai encontrar dois filmes em preto e branco com fotografia mais fantástica. GREAT EXPECTATIONS e OLIVER TWIST são dois filmes que David Lean fez no começo da carreira, 1947 e 1948, e ambos são considerados as mais brilhantes adaptações de Charles Dickens já produzidas para a tela. ( E não há autor mais adaptado que ele ). Guy Green é o nome do genial diretor de fotografia e Oswald Morris o camera man. Green se tornaria diretor de cinema nos anos 60 e Morris venceria Oscar no futuro. Seria o fotógrafo favorito de Huston.
  Jamais esqueço os primeiros minutos dos dois filmes. Em ambos há uma mistura de medo e beleza, horror e estética sofisticada, som e sombras que anunciam tudo o que virá a seguir. Grandes Expectativas é considerado mais perfeito, eu não consigo escolher. No primeiro se conta a história do menino pobre que enriquece graças à uma doação anônima. No segundo, todos sabem, é a história do menino de rua, Oliver. O que vemos? Rostos acima de tudo. Rostos expressivos, fortes, caricaturais, faces que contam uma narrativa, rostos de gente de verdade, sujos, marcados, vivos, muito vivos. Ao redor desses rostos temos os cenários. Labirintos de barracos em Oliver, a mansão cheia de teias e pó em Expectations. Lean usa o expressionismo alemão nos cenários e na luz, mas de um modo muito maior, mais rico, detalhista. Janelas, pisos, escadas, velas, andrajos, canecas, garrafas.
  Expectations é quase surrealista. Há nele o espírito dos sonhos. Já Oliver é um filme de horror. Tudo assusta, tudo causa medo. Os atores são brilhantes. John Mills, Francis Sullivan, Martita Hunt, Robert Newton, Jean Simmons...e também essa força da natureza Alec Guiness.
  Reli recentemente a auto bio de Guiness e o livro de Kenneth Tynan sobre ele. Na bio o mais bonito é a conversão religiosa de Guiness. Ele se torna católico num processo detalhista e lento. Fora isso, Alec Guiness, um eterno disfarçado, fala sobre quem ele conheceu e não sobre si mesmo. Tynan diz que ele foi o primeiro ator moderno da Inglaterra. Ao contrário das estrelas Olivier, Gielgud e Redgrave, Guiness fazia um papel, não se exibia, se escondia atrás do personagem. Laurence Olivier ( assim como Anthony Hopkins e Daniel Day Lewis ) é sempre Olivier fazendo Hamlet, Olivier fazendo Shaw, Olivier fazendo comédia. Alec Guiness não. É o personagem sendo feito por um ator. O Fagin que ele faz em Oliver Twist é um milagre de criação. Ele não tinha 35 anos ainda. Veja o que ele fez.
  Eu vi Oliver Twist pela primeira vez aos 11 anos, na TV, com meus pais. Jamais esqueci o choque. A cena da morte de Nancy se gravou na minha mente como a coisa mais violenta e revoltante que já assisti. Revisto, após tantas cenas gore em tantos filmes mais novos, ela ainda choca. Por que? Pelo uso que Lean faz do cão berrando, da cara de Newton e do porrete. Não vemos nada, mas imaginamos. Ele nos faz ver sem ter visto. Por isso fica gravado em nós.
  É preciso ver os dois filmes.

MARIA ANTONIETA É UM APURADO RETRATO DE 1999.

Não é um filme feito em 1999. Ele é deste século. Mas Sofia Coppolla faz um dos mais perfeitos retratos da geração que tinha 20 anos em 99. Mas vamos por itens...
Um dos mais exaustivos problemas em estudos literários, e que serve para tudo mais, é o fato de que jamais vamos saber o que significava ler Dante em 1400 ou assistir Wagner em 1860. Nós somos, em nossa parte mais profunda e básica, os mesmos homens de 1400 ou de 1860, mas jamais saberemos o que era SER um homem desses tempos. Sabemos o que um leitor de Dickens queria, temia, pensava, mas não sabemos "como ele se sentia lendo Dickens". Aquilo lhe era engraçado, triste, perturbador, tolo, mero passatempo, inesquecível...não há como saber. Basta dizer que um livro que voce leu aos 15 anos não é o mesmo aos 40 anos. Voce é o mesmo leitor. Mas sua experiência de leitura é outra.
Sofia Coppolla foi esperta. Um dos grandes problemas das adaptações literárias e dos filmes históricos é que os personagens se tornam "limbo". Não são figuras da época retratada porque não sabemos como elas andavam, falavam ou riam. E não são de nosso tempo, pois isso pareceria "tolo". ( Game of Thrones é um exemplo desse limbo ). Sofia teve a sacada de fazer da princesa da Austria uma menina de 1999. Isso faz com que o público de hoje SINTA o que seria ser uma princesa em meio a um ambiente hostil. Ninguém no filme tem atitudes ou gestos de 1780. Eles falam, agem e pensam como nós. O rei Luis é apenas um boa vida velho, o herdeiro real é um nerd virgem e a princesa é uma patricinha gastadora e de bom coração. Eles, os verdadeiros, eram desse jeito...Impossível saber como eles eram. Então, já que tudo na história oficial é uma convenção, que se faça aqui mais uma convenção.
Kirsten Dunst mereceria o Oscar do ano. Ela consegue ser crível em um papel impossível. Seu rosto de maravilhamento e de deslumbramento é sublime. Ela quase não atua, o que sempre, como Cary Grant dizia, é o mais difícil. Atuar, super atuar é simples. Dar um show de atuação, maquiagem e trejeitos, isso é muito mais fácil e óbvio que atuar "quase" como se não se atuasse. Quem subiu em um palco sabe disso. Dunst faz isso. O filme é uma linda oferta para ela. A gift.
Muito se falou da beleza estética do filme e do fiasco que ele foi. Nem isso e nem aquilo. Hoje ele está se tornando cult e a beleza não se compara aquela de Ophuls. Quem já viu um filme histórico de Ophuls sabe que a beleza de Coppolla é simples. Nunca suntuosa.
A crítica atual é tão mal preparada que chega a dar desgosto. Ninguém percebeu que toda vez que a princesa acorda e tem seu ritual da manhã, a música que toca é a mesma de ALL THAT JAZZ. A peça de Vivaldi. Só faltou ela dizer "Showtime!", como faz Joe Giddeon no filme genial de Bob Fosse. Esse é o paralelo genial de Coppolla. Giddeon fuma, bebe, transa muito e se arrebenta. Ele é o cara de 1960-1970, o cara do século XX. Quando no futuro olharem esse século todos os historiadores dirão que foi um século onde todos eram Joe Giddeon: Loucos. O que Maria Antonieta diz, e por isso a mesma música, é que ela aposta que este século será visto no futuro como um tempo parecido com Versalhes 1780. Luxo, futilidade, festas, inocência infantil e consumo. Jogo, drogas e risos em MEIO À RUINA TOTAL. Algum crítico notou isso...Não lembro de ter visto.
A revolução francesa venceu. Nosso tempo é o tempo que ama a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Poucos percebem que elas são miragens e que sempre vão ser. Isso porque a liberdade não existe, pois somos limitados pela natureza, a igualdade nunca pode ser completa, pois nascemos diferentes e desejamos diferente, e a fraternidade é uma mentira. Somos naturalmente competitivos. Mas, nunca tanta gente viveu bem. O mundo ocidental tem uma fartura que não foi sonhada em tempo algum. E disso o filme também trata. Pois 200 anos de capitalismo moderno fez dos ricos pessoas menos ricas ( ainda ricas demais, mas muito menos que os ricos de antes ) e fez dos pobres pessoas com um estilo de vida inimaginável em 1780. ( Falo do mundo que contava em 1780 ). Milhões de pessoas vivem hoje a vida de Maria Antonieta. Jogo, droga, festa e sapatos novos. E inocentemente ajudam os pobres lhes dando brioches.
Por fim, o filme começa com Gang of Four. Uma obra prima do rock de esquerda dos anos 80. Isso faz voce esperar um filme sobre a revolução. Mas é um blefe. A trilha sonora, maravilhosa, é sobre melancolia. Pois junto às festas, há todo o tempo a sombra cinza da tristeza que flutua. Muito anos 80. Muito 1999. Muito hoje. Nada 1780. ( Incrível como para a geração nascida nos anos 60 a trilha sonora é tão importante quanto o filme em si. Culpa dos maravilhosos hits feitos entre 1963-1983 ). A trilha tem Sioussie, Cure, New Order, Bow wow wow e até Adam Ant. É um clipão chic dos anos 80. Muita gente disse isso. Mas provo aqui que é mais, muito mais.
Enjoy it!

AS AVENTURAS DO SR. PICKWICK- CHARLES DICKENS

   Uma das maiores tragédias da história literária é o fato de Charles Dickens ter descoberto sua consciência social. Quando ele lançou Oliver Twist o estrago estava feito. Ele continuou, claro, a ser um grande autor, cânone da literatura inglesa ( mas não da irlandesa ), gênio criador de personalidades, inventor de rostos e de enredos. Sim, Dickens é tudo isso. Mas o fato é que o Dickens que escreveu Pickwick é uma das felicidades para todo leitor. Um soberbo humorista. Um satirista na bela tradição de Fielding e de Sterne.
   Os Pickwick Papers foram escritos em forma de seriado, como fascículos. Depois veio o lançamento em livro e foi essa obra que fez a fama de Dickens. É um autor que ainda não se enche de lágrimas ao falar de crianças injustiçadas e das misérias de Londres. Ele descreve a lama das ruas, as estalagens obscuras, a imensa Londres labiríntica, mas tudo num viés de humor.
   Quantos tipos ele sabe criar! Em cada página surge um novo personagem, mais uma história, outro clima. Ás vezes surge o horror, às vezes o melodrama, mas logo tudo é satirizado pela presença de Pickwick e seus amigos.
   Pickwick é o chefe de um clube. Seus membros saem pelos arredores de Londres em busca de aventura. Não são aventuras como as de um herói ou de um guerreiro. São aventuras de quatro homens gorduchos e de meia-idade da burguesia inglesa de então. Eles se envolvem em pic-nics, noivos fugitivos, jantares suntuosos, caçadas, excursões aos lagos. E muito mais. Nessas discretas aventuras surgem viúvas vaidosas, ladrões sorrateiros, párocos glutões, virgens fofoqueiras... Pickwick ouve suas histórias, deliciados as podemos ler.
   O bom livro tatua-se em nós. Li Pickwick a treze anos. Andei relendo-o agora. E surpresa! As cenas vão se reavivando em mim. Penso: "Então era neste livro que estava essa corrida de carruagens! Era aqui que falava esse malandro que lembra personagens de Monty Python!" Quem leu guardou sem saber que guardou. Tatuou.
   Pena que o livro termina. Livros assim deviam continuar para sempre. Porque amamos a companhia de sua gente. Queremos tê-los como amigos. Segredo do grande autor ( e dom maior de Dickens ), as personagens nascem e moram em nossa casa.
   Bem- Vindo Sr, Pickwick !

EXATAMENTE COMO A VIDA REAL

   Uma coisa que me dá o que pensar: porque as pessoas percebem tanto mérito em filmes e livros que "são exatamente como a vida real"? Qual o mérito em se criar algo que nada mais é que uma cópia daquilo que a vida já criou? O máximo que uma obra realista pode atingir é saber olhar bem.
   Mas posso unir isso a mania de biografias e posso ir ainda mais longe e ir até os reality shows. Do extremo realismo às biografias e ao reality show o caminho é o mesmo, a via que declama em alto e bom som que só o que é "a verdade" tem valor e pode ser util.
   Quando um autor como Dickens cria mais de dez mil personagens, todos "irrealistas", o que ocorre? Dickens está negando a vida e criando gente que nada tem a ver com o real? Ou seria o contrário?
   Toda obra excessivamente realista tem algo de hospitalar. De quase sem vida, quando não, de morto. O escritor recolhe dejetos, fatos "´já acontecidos", e portanto, passados, e os fixa em linhas ou imagens. O mesmo ocorre com as biografias. Sempre passam a sensação de serem testamentos ditados por um moribundo. Um testemunho vindo do leito, leis cheias de "verdade". Que verdades são essas? Desde quando dizer a verdade é ser verdadeiro?
   Quando um autor poderosamente imaginativo cria personagens, lugares e ações, ele cria "a vida". Esse escritor, digamos Dickens, repete a criação que a natureza opera, do nada ou do vazio, cria personalidade. O movimento é o oposto do realismo, da reportagem ou da biografia. Neles voce participa da memória de um fato terminado, morto. No artista original, voce toma parte na criação presente, na liberdade de dar vida e sentido a uma narração.
   Nos acostumamos ao pequeno, ao pouco ambicioso. Autores criativos são vastos e me parece que eles assustam aos pequenos leitores de hoje. A criação deles é vasta demais, exigente demais, complexa demais. Mas é Chesterton que me alerta para o fato principal: autores como Dickens ( e Rabelais, e Swift ), são alegres demais.
   Eles trazem o dom da fertilidade, da fecundidade. Tocam o papel e criam, e criar vida é sempre um ato de alegria. Seus livros pulam, uivam, dançam, dialogam, dão prazer e dão ideias.
   Pessoas educadas ( ou domesticadas? ), a crer que "arte" seria um espelho da vida, e que vida seria tédio e atos minúsculos, jamais conseguirão tolerar os exageros de sentimento, apetite e de criação de Dickens ( e Balzac, e Cervantes ).
   Um artista sempre foi Prometeu. Um homem ladrão, que com o fogo na mão tentava dar luz e calor para a humanidade.
   Hoje, reduzido a um tipo de repórter do vazio e do não-ocorrido, ou um retratista do já terminado, um jornalista-divulgador da "verdade", ele carrega fogo apagado, impotência fria, tristeza de quem não sabe mais fazer viver, criar, inventar, ser feliz.

história de duas cidades-charles dickens

Foi instigado por Nick Hornby que resolvi ler mais um Dickens. Uma História de duas Cidades se passa nos anos 1775/ 1793; é portanto, um livro que Dickens escreveu já como história do passado. Primeiro fato : Ninguém é tão cinematográfico quanto ele. Descreve de um modo tão magistral todo ambiente, que o visualizamos com detalhe. Mais que ver, penetramos na Londres e na Paris daquele tempo. Fato dois : Sua técnica de narrativa é tão cinemática que Dickens chega ao requinte de criar o corte e a ação simultânea. Suas histórias não têm fio central. Mudam de ambiente, mostram ações paralelas, vão e voltam. Eu já lera, não lembro onde, esse fato : Dickens como inventor do cinema.
Henry james e Proust escrevem melhor que ele. São mais ricos, fluidos, preciosos. Stendhal e Tolstoi são mais profundos, mais incisivos psicológicamente falando. Mas todos eles devem muito à Dickens. Ele cria e aperfeiçoa a trama novelesca, o drama social, o melodrama familiar, a moralidade da vingança. Só neste volume, um dentre muitos, são dez personagens centrais e mais uma dúzia de secundários. Todos muito bem caracterizados, com voz própria, reações coerentes e função na história. E que história !
Trata da pré-revolução francêsa. Como começou, no que deu. Parte dessa narrativa se dá na pacata Londres, pátria do bom-senso, da praticidade, da riquesa; e parte se dá na Paris antes e durante a revolução, cidade imunda, da desigualdade, da escravidão, da miséria e do esbanjamento. Dickens não toma partido entre as cidades. Elogia Londres e critica a França, mas sabemos que ele amava a Paris de sua época ( 1850 ) e criticava os esquecidos da revolução industrial. Ele aponta as crueldades da aristocracia francesa, tola e incapaz de disfarçar sua fortuna, ( como sempre fizeram os ingleses ), mas também aponta os absurdos excessos cometidos em nome do povo e a onda de vinganças e delações da revolução. ( Delações sem provas- que ocorrem em toda revolução ).
Sua escrita é gigantesca. Charles Dickens não teme nada. Conta tudo, pinta todo cenário, vai fundo nas dores, na crueldade, no romance. É pop como uma boa novela, e é sofisticado como um gênio do Nobel. Cria a consciência vitoriana da Grâ-Bretanha e molda a sensibilidade inglêsa, presente até hoje em livros, filmes e canções. E acima de tudo: ele entretém. E muito. É fácil ler Dickens, é fácil ser absorvido, torcer, querer mais.
Seus livros são frutos nobres do momento em que o jornalismo vivia seu grande boom. O país via o analfabetismo encolher ( a níveis que o Brasil só veria mais de cem anos depois ), e a mania da leitura se instalava. Os livros eram publicados em capítulos, no jornal, e só ao final da série saía em livro completo. Portanto, ele tinha a obrigação de manter o interesse, número à número. Dickens foi o 24 horas, o Lost de seu tempo.
Só espero que nossos descendentes, por volta de 2160, ainda leiam Dickens. Já 24 Horas...