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HOMEM

Feliz daquele que teve um Pai de verdade. Que sentiu a presença, ao lado, do ser que se necessário fosse, colocaria seu corpo diante da linha de fogo para assim proteger os seus. O Homem que sabe usar ferramentas e assim ensina, por exemplo, a se lidar com os consertos da vida. Feliz quem viu sua volta à casa, todo dia, o cansaço no rosto, o pudor de não reclamar. O raro sorriso, e que por isso, ao se manifestar, parece valer ouro. Faz toda diferença ter sentido o calor da mão forte, segurando a sua, pelas ruas do mundo que fascina e não ameaça. O Homem que dá sentido ao kaos, que afasta o medo com um olhar e que te cobra retidão em meio a dúvida. Feliz daquele que viu e conviveu com esse homem.

MEU PAI FAZ ANIVERSÁRIO

Dia 13 de julho, se estivesse aqui, meu pai fará 97 anos de idade. Morreu em 2008, com 82. Não sofreu, de todos aqui em casa era o único sem neurose aparente. Era um homem do tipo que está acabando. Levava um pente no bolso, maços de dinheiro vivo, todas as notas colocadas no mesmo sentido, quatro bolos amarrados com elástico. Ainda me lembro da rapidez que ele tinha em contar dinheiro. Usava sempre camiseta branca por baixo da camisa. Era questão de higiene. Talco nos sapatos, nunca usou um tênis. Aliás, ele nunca saiu a rua sem vestir uma camisa, seja manga curta ou longa. Camiseta nunca. Sua juventude é aquela dos anos de 1940, uma juventude que ainda não tinha o conceito de teenager. -------------- Fazia a barba todo dia, com gilette de verdade, aquela que corta muito ( minhas primeira barbas foram com essa Gillette, aquela que tinha um cara de bigodinho na embalagem. Nunca entendi como ele conseguia se barbear sem se cortar ). Após a barba, lavava o rosto com àgua Velva, o cheiro dela é o cheiro de meu pai. Punha talco no peito e ia se vestir. Eis o modelo de masculinidade para mim. Meu pai fazia ruídos de homem enquanto se vestia na madrugada. E eu ouvia do meu quarto, sempre atento a seus movimentos: o cinto escorregando pela cintura. A camisa enfiada na calça. O amarrar dod sapatos, sempre um nó bem firme, os sapatos engraxados. Verificar a carteira e colocar os maços de dinheiro nos bolsos. Um beijo na minha mãe. Uma olhada no meu quarto, eu fingia dormir. Um arroto alto e ele ia em jejum. Eram 4 da manhã. ---------------------- Ele voltava as 4 da tarde e eu o esperava ansiosamente. Nunca me dei com meu pai, mas ele foi e é o amor da minha vida. Talvez por sempre ter tido um relacionamento fácil com minha máe, meu pai foi na minha vida um mistério, uma saudade e uma falta. E um ciúme, pois ele se dava muito bem com meu irmão mais novo, eles eram realmente amigos. -------------- Meu pai chegava e não falava com ninguém. Ia ao quarto, tirava os sapatos, colocava o dinheiro na gaveta, lavava o rosto, e só então abraçava o cachorro que a tudo observava. Uma cerveja gelada. O almoço. Um banho, sempre barulhento, e deitava no sofá onde lia o jornal e tentava ver TV. Mas adormecia. Por mais de 40 anos esses foram os dias de meu pai, de segunda à sábado, sempre assim, os mesmos gestos. E saiba, ele jamais perdeu o sono ou a fome. Meu pai dormia. Muito. -------------- Minha mãe pedia dinheiro, eu o evitava, meu irmão sabia lidar com ele: brincava. Meu pai reclamava que ninguém sabia falar com ele. Era verdade. Mas ele sabia lidar com isso, dava de ombros e esquecia. Nunca vi alguém com tamanho poder sobre sua mente. Ele dormia quando queria e esquecia o que não lhe fazia bem. Era mais que prático, era quase mágico. ---------------------- Veio para o Brasil em julho de 1950 e encontrou aqui um mundo de paletós brancos e muitas chances de vencer. Portugal era medieval então. Viveu até os 24 anos em vila que ainda não tinha eletricidade nem água encanada. Casas de pedra. Animais morando na cozinha. Minha distância do mundo medieval é de apenas uma geração. Então ele briga com o pai e vem para cá. Vai morar na Barra Funda e depois Caxingui. Eu venho quando ele já tem 36 anos. --------------- Penso o que meu pai pensaria do mundo absurdo e idiota de hoje. A miss Holanda tem um pênis. Fumam maconha nas ruas. As mulheres se esforçam para parecer feias. O clima de rivalidade boba nas ruas. A hiper violência à espreita. O uso desenfreado de palavrões em todo meio. A transformação das pessoas em zumbis incomunicáveis. O despudor do roubo e da corrupção. A derrubada de casas, ruas, praças, avenidas. O fim da tal cordialidade brasileira. Penso que ele não se revoltaria, ele ignoraria. E zombaria. Ele era bom em zombar. Teria o mesmo sentimento que tenho hoje: Este não é meu mundo porque essa gente não é da minha cultura. Mas a vida é a mesma de sempre, embora essa cultura lute para dizer que não, que agora tudo mudou. ----------------- Ah sim, meu pai seria fã do Messi e do Ronaldo, mas perceberia, a copa do mundo provou, que eles são o fim de uma linha. Os jogadores perderam individualidade, Mbappé é um jogador que todo grande time tinha. E não faz muito tempo isso. -------------- Meu pai amava faroestes porque ele acreditava em herois. Ele sabia que sem eles as pessoas perdem direção. --------------- Termino dizendo que meu pai usava um bigodinho fininho, daqueles tipo Errol Flynn, um modelo de bigode que a maioria dos homens usava nos anos 40. Meu pai, como esse modelo de bigode, não teria lugar para o mundo de 2023. E eu sei que é o mundo que perdeu.

MEU PAI ERA UM ESTOICO ( E EU ERA UM HEDONISTA ENVERGONHADO )

Se Portugal tivesse entrado na Segunda Guerra, meu pai teria idade para ter entrado nela em 1944. Ele foi pai aos 36 anos, ou seja, nossa diferença de idade era grande. O mundo onde meu pai viveu até os 30 anos não tinha TV, pouco rádio, sem telefone, quase sem jornais. Em 1950, aos 24 anos, ele pegou um navio e levou 10 dias de mar para chegar ao Brasil. Foi morar na Barra Funda, na época um lugar de fábricas e cortiços. Trabalhou com um primo, bar, prosperou e um dia se casou, em 1961. No ano seguinte eu nasci. No mundo que cresci, um baby boomer, já havia TV, muito rádio. Gosto de lembrar que nasci no ano em que os Beatles lançaram seu primeiro disco, Bob Dylan idem, ano do primeiro James Bond e da primeira Pantera Cor de Rosa. Psicose e Lawrence da Arabia eram os grandes filmes. Foi o ano de lançamento dos Flintstones. E os Rolling Stones faziam shows. No meu mundo a vida hedonista já dava as cartas. A ideia era: seja feliz, seja jovem, consuma sua juventude, viva intensamente. O mundo era vendido como shopping center, lugar das maravilhas, uma alegria ter 20 anos e poder estar vivo. --------------- Mas meu pai não era assim. Sua filosofia era radicalmente contra tudo isso. Na verdade nem era questão de ser contra, meu pai ignorava esse mundo. Ele era um estoico, e o mundo do estoicismo era o mundo de 99% das pessoas de sua geração. Não havia em meu pai nenhum traço da ideia de que o mundo era uma festa, ou de que todos nós tinhamos o direito de ser feliz. Sua filosofia era a de que nós dormimos e comemos e entre essas duas atividades, as mais importantes, nos distraímos com besteiras futeis da mente. Não havia como eu aceitar uma visão de vida tão antiga, daí nossas brigas eternas. Para meu pai, a vida era uma luta sem fim e sem trégua, felicidade era uma abstração vã e contentamento era sim uma ideia possível. Entenda: Felicidade está ligado à completa ausência de dúvida ou trsiteza, contentamento se liga ao repouso satisfeito. Meu pai não tinha neuroses visíveis, sua vida era simples, e apesar de ver o mundo como luta, ele era contente. Comida, sono e uma cerveja eram o que lhe bastava. Felicidade? Isso não existe. ---------------------- Ele estava certo e vejo isso pelo fato, simples, inquestionável, de que em casa ele foi o único "não ansioso". Ele não tinha esse sonho de felicidade, essa auto cobrança de alegria, ele não vivia a obrigação de ser jovem para sempre. Meu pai foi um senhor aos 40 anos, um senhor respeitável aos 50, um velho aos 60. Apesar de sempre aparentar menos idade do que tinha, isso para ele era indiferente. Seu contentamento era outro. Estoico sem o saber, crescido dentro do estoicismo, ele intuia que tudo era caminho para a morte e que a única coisa que contava era viver dentro dessa certeza. Tudo morre e nada dura, portanto a felicidade é impossível. Daí a ansiedade, pois se obrigar a ser feliz é uma luta perdida. Não há felicidade possível dentro de um corpo que morre a cada dia. ------------------- Triste ele? Nem um pouco. Entenda: ele não foi educado para ser estoico, não lhe impuseram isso. Ele era como seu pai, seu avô, seu bisavô, não havia ruptura alguma. A vida é isso e pronto, não se vai contra um fato tão óbvio. Apaixonado por filmes de faroeste, ele percebia naqueles cowboys a filosofia estoica colocada em termos claros: um homem solitário em briga eterna contra seu meio. Um cowboy não quer ser feliz, ele quer se safar ou resolver um conflito. E após vencer não alcança a felicidade. O cowboy fica contente e parte para a estrada. Só. ----------------- Ele também amava Sinatra, um estoico que vendia sonhos de felicidade. --------------- Minha tentativa de ser hedonista me levou ao vazio deseperado. O Paraíso não existe na Terra e ser um amante da alegria juvenil nos leva à burrice parva da busca sem fim. Ansiedade e uma decepção imensa: Me venderam a vida como festa, e ela é só isso?????? --------------------- Hoje eu entendo meu pai. E o entendi na hora certa.

ATRAVÉS DE UM ESPELHO - BERGMAN E SEU DEMÔNIO

Filme de 1961. Temos Harriet Andersson. Que não é mais a menina de Monika e o Desejo. E nem mais o monstro sensual dos anos 50. Aqui ela consegue parecer pesada, densa, terrivelmente grave. O resto do elenco tem Max Von Sydow, como um frio e ao mesmo tempo perdido professor. Gunnar Bjorstrand é o pai, e o filme é dele. Há ainda Lars Passgard, ator que não se firmou na trupe de Bergman, como o irmão de Harriet. Gunnar esteve em quase todos os filmes dos anos 50 do diretor sueco. Este filme, que começa com cello de Bach e imagens de um mar cinzento em uma ilha vazia, fala de loucura. ----------------- Desde a algum tempo nos acostumamos a ver artistas ateus ignorarem Deus. Infantis, eles negam sua existência como ideia central da nossa civilização. Crianças negam aquilo que não entendem. Acreditam que fechando os olhos para uma coisa, ela deixa de existir. Por isso estranhamos que um ateu como Bergman se ocupe tanto com Deus. Ele não crê, mas não nega sua importância. Ele, adulto que é, O discute. ------------------- Harriet acabou de sair de uma clínica. E volta a enlouquecer. Vemos momento a momento sua agonia. E ao mesmo tempo, a reação da família. O marido que tenta manter a cabeça no lugar. O pai que covardemente se afasta. E o irmão, que afunda no sofrimento do amor pela irmã. Em um quarto abandonado, ela começa a ter contato com alguma coisa. Algo que vive por detrás das paredes. ( Fosse um filme de 2021, essa entidade seria um ser de outra dimensão. Nós substituimos Deus por um ET. Tudo para parecer mais cinetífico ). Ao fim do filme ela vê essa entidade e enlouquece. Um helicóptero vem a levar embora. ---------------- Uma aranha. Deus é como uma aranha. O rosto impassível. Os olhos frios e impessoais. A vida é sua teia. Somos aqueles que cairam nela. Horror absoluto. ---------------- O filme está longe de ser perfeito. Há algumas cenas que soam artificiais, forçadas. Mas é uma obra prima. A cena dentro do barco, a barriga da Baleia de Jonas, é uma das coisas mais belas e fortes já filmadas. O desamparo de quem viu Deus. E encontrou Nele nada do que esperava. --------------- Após a partida da filha, o pai e o filho conversam junto a uma janela. Afinal, Deus existe? O pai, numa fala artificial, porém de beleza sublime, diz que o amor que sentimos é uma manifestação da existência de Deus. Que o amor é Deus afinal. O pai parte e o filho, sozinho, diz: EU FALEI COM MEU PAI. Para quem como eu, viveu uma relação de amor profundo e odio ferino com seu pai, essa é uma das mais comoventes falas de toda a história do cinema. Bergman criou todo o filme para essa fala final. A obra se trata disso: dois filhos a procura do pai que sempre se faz ausente. -------------- Desde Freud o valor da mãe tem sido hiper valorizado e nesse processo, o pai foi posto de lado. Se tornou um tipo de ator coadjuvante, um São José apagado diante de Maria. Mas, pelo menos para os meninos, a relação pai e filho é crucial para qualquer chance de alegria e saúde mental. A tragédia de nosso tempo é a ausência do pai, seja ele Deus, pai biológico ou avô. O guia, o protetor, o heroi, o aglutinador. E também o rival declarado, o excitador de vontades, o ponto a ser superado. Sem o pai há um vacuo, vazio a ser preenchido por qualquer coisa. Inclusive uma aranha. ------------------ Só alguém que chegou perto da loucura escreve algo assim. Minha teoria boba de que Bergman nunca sofreu como sua arte nos faz crer, cai por terra. Sim, ele esteve perto da aranha horror. E saiu para nos dizer que FALOU COM SEU PAI. Abraço meu travesseiro e choro sem pudor algum. Nobreza nada mais é que dizer, sozinho e sem testemunhas, perdão meu pai. Onde voce está? Que falta voce me faz. Salve-me. Salve-me. Salve-me. Este filme é uma missa solene. Por isso Bach. Harriet é o médium e seu irmão, um anjo. O marido é um homem comum. E o pai...ah o pai....é o deus que foge, que nos escapa, que se vai. Se isto não é uma obra prima elas não existem.

O FILME MAIS AMADO POR MEU PAI

Ele já havia o assistido na época, no cine Metro, na avenida São João. Agora esse filme ia passar na TV, vinte anos depois. A família se juntou e vimos o tal filme. Dizem que filmes e discos que nos marcam, que têm significado em nossa história, deixam a lembrança não só daquilo que eles são, mas também de onde estávamos quando os vimos, com quem, que hora era, e até do clima da estação. Nessa noite eu recordo da luz na sala, de onde cada um de nós estava sentado, da temperatura da noite, e dos comentários feitos por todos durante o filme. Minha mãe riu muito. Eu, muito criança, mal entendi do que se tratava aquilo, mas senti alegria pelos cenários e principalmente fiquei encantado com as reações de meu pai. ---------------------------------- Meu pai era homem de poucas palavras e reações comedidas. Nada triste, ele era fechado. Era aquilo que na primeira metade do século XX se chamava Homem. Correto, quieto, maço de dinheiro em um bolso, muitas chaves no outro bolso, lenço branco, bigode, cheiro de loção de barba, trabalho incessante. Ele não deixava a guarda baixar. Quando recebeu a carta dizendo que seu pai, meu avô, havia morrido, ele a dobrou, colocou no bolso, e quieto foi para o trabalho. Nunca dizia que uma canção ou um filme era bom, antes dizia: Mais ou menos, ou então, não é ruim. ----------------------------- Mas nessa noite, durante esse filme, ele ria sem guardar pudor. Torcia sem disfarçar. E, lembro até hoje, 45 anos depois, falou coisas como: Eu queria ser irlandês!, Olha o bêbado da aldeia!, Que lugar maravilhoso!. Meu pai coçava o nariz ao se emocionar. E como todo cara muito emotivo, derramava lágrimas discretas, envergonhadas, logo negadas. Nessa noite eu vi tudo isso. Não assisti o filme, deitado no tapete cinza da sala, eu assisti meu pai. -------------------------------------------------- Não há a menor possibilidade de analisar o filme. Ver DEPOIS DO VENDAVAL ( THE QUIET MAN ), é como ver meu pai. Tudo que posso dizer é que a fotografia tem momentos de uma beleza perfeita, idílica, e que a Irlanda de John Ford é tão falsa como é o oeste de John Ford. E isso é um elogio. Ford foi realista em Vinhas da Ira ou O Delator, mas aqui, e em tantos outros filmes, ele cria o mundo como ele deveria ser. Fazer esse tipo de construção pode ser vexatório ou no máximo bonito, mas em Ford é exemplar. Isso porque o que ele cria não é simples fantasia, ele conseguia mostrar aquilo que a média das pessoas queria acreditar. Ele não inventava o western mais bonito ou mais aventuroso, ele nos dava o mais IDEAL. Por isso o encantamento. Voce sabia que não era, mas dentro de voce tinha de ser. Desse modo, este filme mostra como um homem deveria ser, como uma mulher deveria ser, e como a Irlanda deveria ser. Para a geração de meu pai, este DEVERIA SER ainda era um sonho vivo e cotidiano. Para a minha geração esse imperativo tinha o encanto do tesouro perdido. Para a geração atual, este filme parecerá um texto em aramaico. Incompreensível. Esse ideal idílico está morto para eles. Mais que morto, é um cadáver anônimo. Para o mundo de hoje todo idílio passa pela vida em outro mundo. Não é mais possível a felicidade numa aldeia banal em um país banal. ------------------------------------ Para quem Nunca viu um filme de John Ford: Não tem a menor importância o enredo. Ford fazia filmes para poder gravar os amigos-atores comendo, dançando, bebendo e brigando. Seu único interesse era filmar enterros, casamentos, festas, cafés da manhã, pubs e almoços em casa. O resto, a tal ação, era só pra encher linguiça. O exato oposto do filme de hoje, onde tudo que não seja o tal FOCO do enredo, não existe. Ver um filme de Ford é prestar atenção nos tempos mortos, e relaxar nos momentos centrais. Um cara original. Indeed.