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PORQUE VOCE NÃO GOSTOU DE CIDADÃO KANE ( E DE TANTOS OUTROS FILMES )

Vejo Cidadão Kane pela terceira vez. Na primeira vez eu odiei. Na segunda percebi porque ele é famoso. Ontem adorei. Kane é vítima de sua fama. Ninguém vê um filme que é chamado de maior filme da história sem se decepcionar. ----------------- Quase todos os filmes que tinham a fama de obras primas me decepcionaram na primeira vez. O processo é perverso: Voce assiste esperando uma epifania, voce assiste comparando com seus filmes favoritos, querendo que a tal obra prima te emocione muito, que te abra janelas. Isso não acontece. Voce fica com raiva. Fim. -------------- Os únicos dois filmes que não me decepcionaram foram Oito e Meio e Fanny e Alexander. Vi os dois já sabendo de sua fama e senti estar diante daquilo que deles falavam. Já filmes que hoje adoro, filmes famoso e considerados históricos, como Morangos Silvestres, O Atalante, Sete Samurais, só me conquistaram na segunda assistida. Vistos uma vez e livres da imensa expectativa, eles se mostraram como são. Lindos. ---------------- Rastros de Ódio e Vertigo foram amores a primeira vista, mas foram vistos como bons filmes, apenas isso. Quando os vi nos anos 80 eles ainda não tinham a fama mitológica que têm agora. ------------------ Aliás diretores como Ford, Hawks, Hitchcock demoram a ser apreciados como devem. É preciso primeiro tirar deles a capa de elogios e de análises exageradas. Devo ainda dizer que a primeira vez que vi The Red Shoes achei quase insuportável. Hoje é meu filme de cabeceira. -------------------- Kane começa com os cinco minutos mais bonitos da história. Greg Tolland, o fotógrafo genial, filma a grade do portão de Xanadu. Funde com a fachada. Com vários takes. E faz desse início uma aula de expressionismo. Detratores dizem que Welles roubava o crédito de seus colaboradores, mas nunca vi um diretor colocar o nome do diretor de fotografia em destaque tão grande. Nos créditos finais o nome de Tolland está ao lado do diretor. -------------- Kane é importante por dois fatores que não são pouca coisa: Usa tudo que o cinema tinha inventado até então e antevê tudo que seria feito depois. E traz o diretor como interesse central do filme. Pela primeira vez não se via um filme pela história ou pelo ator, se assistia com a expectativa daquilo que Welles iria criar na cena seguinte. E ele não para de inventar. O filme inteiro é uma invenção. ---------------- Por fim, em tempos de fake news, é urgente ver um filme que fala do poder da imprensa. Kane cria fatos. Kane constroi famas. Há uma frase definitiva: O que eu colocar em manchete passa a ser o assunto mais importante. Não importa se for relevante ou não. ------------------------- Melhor filme da história? Talvez.

SIGHT AND SOUND, NOVA LISTA DOS 50 MELHORES FILMES

   Um amigo me envia a nova lista da revista inglesa Sight and Sound, nela os 50 melhores filmes da história do cinema. Pela primeira vez Kane não é o primeiro ( é o segundo ). Tentativa de ser diferente? Não sei. Kane está longe de ser meu filme favorito, mas ainda é o mais influente. Porque? Porque em duas horas ele exibe TODOS os tipos de cinema, todos os estilos, tanto do passado, como daquilo que se faria desde então. É por esse motivo que Kane é o filme de quem conhece e compreende o cinema. Ele recapitula e antecipa o próprio cinema.
   Mas quem venceu desta vez? VERTIGO de Hitchcock. E já aviso, ele é um de meus mais amados filmes. Faz tempo que Vertigo vem crescendo em todas as listas. Ele se beneficia do dvd. As novas gerações se surpreendem ao vê-lo, o adoram. Ele toca nos temas que são mais relevantes em 2012: solidão, real e imaginário, compulsão sexual, fetichismo e sadismo. Tudo isso com a técnica perfeita do gênio inglês. Vertigo ser o number one não surpreende ninguém. Ele é magnífico.
   A lista, como já disse, é influenciada pela voga do dvd. Filmes que eram famosos como lenda, ao serem vistos em casa, confirmam ou não sua fama. Vendo a lista em seu todo, três diretores sobressaem como renascidos em revisão: Tarkovsky, Ozu e Dreyer. Três filmes de cada um deles se colocam entre os 50 e o russo tem muito destaque. Devo dizer que dos 50 só não assisti um, História do Cinema de Godard, aliás vivemos um tempo godardiano, sua obra é bem representada.
   A lista nada tem de Tarantino, Woody Allen, Joel Coen, Clint ou PT Anderson. Os diretores em atividade representados são Wong Kar Wai, Lynch, Bela Tarr, Scorsese e Kiarostami. Estão longe de serem meus favoritos.
   Mas é uma boa lista. Apesar de não dar o destaque a Bergman que eu daria ( temos Persona em 18 e só ), vemos Ozu em terceiro, Murnau em quinto e Rastros de Ódio de Ford num belo sétimo lugar. Fellini está em décimo e Os Sete Samurais de Kurosawa é o 17. É bacana ver Bresson e seu Balthazar entre os topo 20 e meu querido L'Atalante de Vigo em 12. 
   Listas nunca são como voce gostaria, mas esta não me causa revolta ou hilariedade. Sóbria, essa a palavra que a define.
   1 VERTIGO - HITCHCOCK
   2 KANE - WELLES
   3 TOKYO STORY - OZU
   4 A REGRA DO JOGO - RENOIR
   5 SUNRISE - MURNAU
   6 2001 - KUBRICK
   7 RASTROS DE ÓDIO - FORD
   8 CÂMERA - DZIGA VERTOV
   9 JOANA D'ARC - DREYER
   10 OITO E MEIO - FELLINI
   11 POTEMKIN - EISENSTEINE
   12 O ATALANTE - VIGO
   13 ACOSSADO - GODARD
   14 APOCALYPSE NOW - COPPOLLA
   15 LATE SPRING - OZU
   16 AU HAZARD DU BALTHAZAR - BRESSON
   17 OS SETE SAMURAIS - KUROSAWA
   18 PERSONA - BERGMAN
   19 O ESPELHO - TARKOVSKI
   20 CANTANDO NA CHUVA - DONEN
   21 L'AVVENTURA - ANTONIONI
   22 O DESPREZO - GODARD
   23 O PODEROSO CHEFÃO - COPPOLLA
   24 A PALAVRA - DREYER
   25 IN THE MOOD - WONG KAR WAI
   26 RASHOMON - KUROSAWA
   27 ANDREI RUBLOV - TARKOVSKI
   28 MULLHOLLNAD DRIVE - LYNCH
   29 STALKER - TARKOVSKI
   30 SHOAH - LANZMANN
   31 O CHEFÃO II - COPPOLLA
   32 TAXI DRIVER - SCORSESE
   33 LADRÕES DE BICICLETA - DE SICA
   34 A GENERAL - KEATON
   35 METROPOLIS - LANG
   36 PSYCHO - HITCHCOCK
   37 JEANNE DIELMAN - AKERMAN
   38 SANTANGO - BELA TARR
   39 OS INCOMPREENDIDOS - TRUFFAUT
   40 VIAGEM À ITÁLIA - ROSSELINI
   41 PATHER PANCHALI - SATYAJIT RAY
   42 SOME LIKE IT HOT - WILDER
   43 GERTRUD - DREYER
   44 PIERROT LE FOU - GODARD
   45 PLAY TIME - JACQUES TATI
   46 CLOSE UP - KIAROSTAMI
   47 A BATALHA DE ARGEL - PONTECORVO
   48 LUZES DA CIDADE - CHAPLIN
   49 CONTOS DA LUA VAGA - MIZOGUCHI
   50 HISTÓRIA DO CINEMA - GODARD
        Devemos lembrar que filmes recentes tendem a cair sempre de posição, assim que seu impacto vai se extinguindo. Dificilmente veremos Lynch em listas futuras. O tempo é sempre o melhor juiz de toda arte. Vencer a passagem do tempo é o grande mérito.
        Como vivemos em tempos pouco imaginativos, Bunuel fica de fora. Assim como a elegãncia de Visconti ou de Resnais. Não são bons anos para requinte ou para delicadeza.
        Destaquemos a definitiva consagração de Ozu e os vários criticos discípulos de Godard se fazendo notar. Toda escolha reflete o momento em que ela é feita. O modo de filmar godardiano é hoje muito valorizado. Esta lista confirma isso.

FRAGMENTOS, MÚLTIPLAS LINGUAGENS, CORTES TEMPORAIS, IRONIA... PORQUE CIDADÃO KANE É O QUE É, O MAIS MODERNO E O MAIS VAIDOSO DOS FILMES

Orson Welles foi um gênio. Esse foi seu legado, foi seu brilho e foi sua maldição. Pois ele era maior que o meio. Seu gênio foi do tipo renascentista, ele fosse nascido no século certo teria sido um Wagner ou um Leonardo. No tempo e no lugar em que nasceu, tornou-se um pastiche de si-mesmo. O cinema era pouco para ele, a tv era nada para ele, a vida lhe foi asfixiante. Foi um menino prodigio que tocava Mozart aos 3 anos, que se apresentava como mágico profissional aos 5 e que com 15 anos já excursionava com seu grupo teatral pela Irlanda. Aos 18 causou escândalo na Broadway com seu Macbeth negro e aos 19 era famoso em todos os USA graças ao rádio, midia que ele revolucionou. Aos 21 já era um mito do cinema. Aos 30 era um velho acabado.
Cidadão Kane é inacreditável. Nunca ninguém foi tão genial em seu primeiro filme ( !!!!!! ). Primeiro filme.... A impressão que o filme dá ainda hoje é das mais modernas possíveis: ele é feito de fragmentos, de estilos que se chocam, de tempos que se atropelam e de uma verdade que é sempre inescapável. Imaginar o que deve ter sido ver este filme em 1941, o choque que causou, o espanto e a inveja que fez nascer...
Todo o cinema feito até então está explicitada aqui: os primeiros minutos, dos mais belos da história, são puro Murnau e Lang. A câmera que voa, as fusões que dançam, o jogo com espelhos, as imagens deformadas, a fluidez...
Mas todo o filme é feito dessa liberdade extrema. Cada cena tem um estilo de cinema próprio. Há coisas do policial noir, do cinema poético francês, da fábula e da montagem russa, do épico de John Ford. Tudo Welles pega e usa a seu modo, e tudo ele destrói.
Não há trama cronológica, certas cenas parecem de documentário, a câmera treme e segue os atores, algumas falas são improvisadas, algumas são estilizadas. Ele cria, sem se perder, um frenesi de criatividade, uma fragmentação estética que espelha a própria condição da vida moderna: incerteza e fluidez sem fim.
É conhecida a riquesa das imagens deste filme. Rostos imensos cortando o foco, cenas de fundo vivas e ricas, a tela se enche de detalhes, de movimento e então se congela e se crispa em drama puro. Mas há mais: Welles, irriquieto, usa coisas operísiticas, usa o humor, usa tudo que o cinema permite e tudo que ele viria a ser. Godard, Altman, Scorsese, Coppolla, Todd Haynes, Paul Thomas Anderson, Tarantino, Lumet, De Palma, Kubrick, Cassavettes... tudo está contido em cenas de Kane, ele anuncia o futuro, condensa o passado, brinca com o meio, faz dele o mais mágico dos brinquedos.
Mas de toda essa riquesa, nada impressiona mais hoje em dia que a beleza de suas imagens. Gregg Toland se esmera em cada take, se doa por ter recebido, finalmente, liberdade para ousar o que quisesse. E ousou. Sombras, focos distorcidos, câmera baixa, sets tortos. Kane esgota tudo o que pode ser feito em cinema. Filmes melhores podem existir, filmes tão ricos e com tamanha complexidade de detalhes e ideias, não há.
Falar sobre os bastidores, tão ricos quanto, do filme, deixo para quem assistir os excelentes extras do dvd. O que enfatizo é que Kane é inesgotável. É por direito o filme que mais despertou vocações de cineastas ( e de criticos também ). Para quem ama o cinema é seu Hamlet e seu As Meninas ( de Velazquez ). Tudo o que Orson fizesse depois só poderia ser decepcionante. E esperto como ele era, sempre soube disso. Kane foi sua jóia e sua maldição.