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MY FAIR LADY. A TRILHA SONORA EM CD. PORQUE A LÍNGUA IMPORTA.

Muita gente diz ser impossível escolher seu disco, livro ou filme favorito. Não acho. Em cinema, tenho uns cinco ou seis filmes que trocam de posição entre meus favoritos. Mas são sempre esses cinco ou seis. MY FAIR LADY está sempre entre os seis e às vezes é o primeiro. É o filme mais feliz que já vi. Depois que comprei o dvd, em 2004, o assisti pelo menos uma vez por ano, geralmente perto do Natal. Foi assim em 2004, 05, 06...até 2017. Eu sempre assitia MY FAIR LADY para entrar no clima de fim de ano, para ser feliz. Não o assisto desde então, 2017, ano em que meu irmão morreu. O fato de não conseguir o rever diz muito sobre o que essa morte significou. Não estou luto, não vivo deprimido, me sinto razoavelmente feliz muitas vezes, mas o mundo de MY FAIR LADY é tão bonito, tão isento de violência, tão CIVILIZADO, que a dor amarga que senti não pode ser misturada à essa obra prima do cinema ( Talvez isso explique porque a atual geração não aceita filmes como este. Eles reprimem a beleza desde que nascem ). ------------- A primeira vez que assisti o filme foi bem antes de ter o dvd. Começo dos anos 90, na TV. E como acontece com todo filme que entra no clube dos favoritos, foi paixão à primeira vista. O filme tem tudo o que mais prezo na vida. Ele cria um mundo tão perfeito, tão "como o mundo deveria ser", tão civilizado, leve, elegante, engraçado, romântico, que voce se deixa ir longe, voce voa. Hoje ouço o cd com sua trilha sonora. A música é de Frederick Loewe, nome central na Broadway e no East End, e as letras são de Alan Jay Lerner, simplesmente o melhor letrista popular dos últimos 70 anos. As melodias são sublimes, mas as letras são uma obra prima de construção. Se voce entende inglês ficará extasiado com suas rimas e a quantidade de vocábulos usados. É trilha culta. É chique. É adulta, very adulta. --------------- No filme meu momento favorito é a famosa Rain in Spain, mas em disco nada supera Rex Harrison em I'm Ordinary Man. Paulo Francis assistiu MY FAIR LADY no palco, em Londres, 1958. Deus meu! Que mundo melhor era esse! Francis escrevia na Folha e tinha uma página inteira para falar que Rex Harrison inventara o modo "falado" de cantar ao fazer o papel de Professor Higgins nesta peça. Em Ordinary Man, Rex Harrison declama com música seu amor à vida de homem solteiro, longe das mulheres. A canção tem uma sessão gentil, suave, onde ele descreve sua rotina solitária, deliciosa, e em ritmo agitado ele conta como são as mulheres. É uma festa de se ouvir. --------------- Bernard Shaw escreveu a peça original, Pigmaleão, e o filme baseado na peça, MY FAIR LADY, é bem melhor que a obra de Shaw. Shaw foi solteiro toda a vida. Bem humorado, ele foi figura central na cultura inglesa entre 1890-1950. Hoje está meio esquecido ( Francis o venerava ). Talvez seja sua misoginia que o prejudique. ( Shaw era socialista, seu ostracismo não se deve a política ). O filme, como a peça, trata do amor à língua. Higgins prega a preservação da linguagem culta, refinada, correta. Fica claro que aquele que domina a língua domina o mundo. A decadência, o empobrecimento da língua traz e reflete o fim de uma cultura. Esse é um tema muito atual. A "guerra" mundial hoje é pelo controle da língua, da fala, da comunicação. ------------------------- Com regência de Andre Previn, poder escutar a dicção de Rex, a língua inglesa falada em modo correto, que não é aquele empolado da BBC, ver os modos gentis e viris desse grande ator, é um prazer inesquecível. Este é um cd a ser guardado no coração.

AS DUAS MORTES DE CERTOS AUTORES

Muito mais chata que a notícia da morte de um autor é quando voce percebe que existem autores que morrem duas vezes. Talvez o maior exemplo mundial seja Bernard Shaw. Voce pode não saber, mas até os anos 60 Shaw era considerado o segundo maior autor teatral da história. Apenas Shakespeare era mais encenado que ele. Ganhou o Nobel, viveu quase 100 anos e morreu como um tipo de centro luminoso das letra inglesas. Mas, desde sua morte, nos anos de 1950, sua obre entrou em ostracismo. Não é nem o caso de se dizer que nosso tempo está errado. Na verdade Shaw era novidadeiro. Suas peças, muitas, defendem a liberação feminina, direitos trabalhistas, fim ao sistema de classes, liberdade sexual. Quando esses temas passaram a ser tratados de modo muito mais explícito e feroz por gente como Albee e Osborne, Shaw se tornou passado. André Gide é um caso diferente. Ele foi até os anos de 1960 o gigante das letras francesas. Vivo até seus 90 anos, lúcido, homossexual, foi amigo de Wilde, escreveu relatos honestos sobre o mundo gay, sobre a igreja, sobre a crise da moralidade. Mas, atacado pelos escritores políticos de então, Gide foi chamado de individualista, desinteressado por política, anódino. Seu estilo, refinado, não o ajudou. Ao contrário de Shaw, eu aposto que se ainda houver leitura séria nos anos de 2030 ele pode voltar. Herman Hesse é outro autor que um dia, principalmente nos anos hippies, foi chamado de gênio. Hoje voce só o encontra em sebos. Seus livros sumiram. Nas letras alemãs de 1940-1950, a grande discussão era descobrir quem era maior: Hesse ou Mann. Hoje parece uma heresia essa comparação. Robert Musil tomou o posto de Hesse. Lawrence Durrel é um inglês que morreu nos anos de 1980 e que hoje está criando mofo nos sebos. Ele era muito levado a sério. Livros sobre sexo e demonismo, mas que hoje parecem soft. Passado o escândalo, restou um autor competente, mas que não consegue público agora. Posso falar de muitos outros. Gente de fama intelectual imensa. Tipo Gabriela Mistral, John Galsworthy ou Pearl Buck. Todos com Nobeis. Milan Kundera já foi mega considerado e é claro que após morrer, Sam Shepard caminha ao esquecimento. Esses casos não são como Graham Greene ou Evelyn Waugh. Greene e Waugh tiveram sucesso demais, acima de suas espectativas durante um certo tempo. Mas jamais foram o centro da coisa, como foram Shaw, Hesse e Gide. Se hoje Greene e Waugh não vendem mais como venderam durante três décadas, isso é apenas uma normalização. Sobreviverão ao lado de Nabokov e Bellow como ícones do século XX. Mas a queda moral de Shaw, a maior queda de meu tempo, é incomparável.

PYGMALION- GEORGE BERNARD SHAW

   Bernard Shaw foi até os anos 60 tão representado quanto Shakespeare. Brecht, Shaw e Maugham. Esses eram os autores mais encenados, ao lado de WS, claro. WS enterrou a todos eles e continua popular como sempre. Maugham cansou, Brecht se tornou antigo e o que aconteceu com Shaw?
   O irlandês ( que detestava a Irlanda ) George Bernard Shaw foi a mais popular figura cultural da Inglaterra entre 1890- 1950. Viveu muito, nasceu na época de George Eliot e Meredith e viveu até além da segunda-guerra. Fabianista ( o fabianismo era a versão light do socialismo, made in England ), vegetariano e anti-casamento. Shaw escrevia panfletos e peças de teatro, fazia conferências e lançava modas. O mundo queria saber de suas opiniões, todos observavam sua vida. Morreu solteiro, famoso, nobelizado, cheio de sucessos no palco ( e no cinema ).
   Quando comecei a me interessar por livros ( na época das caravelas eu acho.... ), Shaw era tão famoso que mesmo tendo 11 anos eu já queria lê-lo. Ele era importante como são hoje Virginia Wolff e Karen Blixen. Paulo Francis o tinha como mestre e guia, pois Shaw era um tipo de metralhadora giratória. Suas palavras fustigavam e ofendiam e ele dava palpites sobre tudo. Mas subitamente ele saiu de moda e há quem agora o ignore.
   Bem, talvez seja uma época de bolhas de sabão a nossa, e não das granadas de Shaw.
   É famoso o diálogo dele com Isadora Duncan.... Por volta de 1920 os dois eram o homem e a mulher mais admirados do mundo. Então Isadora propôs que se casassem. O filho teria a beleza dela e a inteligência dele. Shaw recusou dizendo: "Temo que ele tenha minha beleza e sua inteligência"...
   Pigmalião, ou Pygmalion, é a peça que deu origem ao musical MY FAIR LADY. E lendo o texto vejo que o libreto do musical manteve 90% da peça de Shaw. A grande mudança é no final. A peça termina em aberto, o musical dá um final quase feliz ( e anti-feminista ). Eu prefiro o musical, mas a peça é fácil de ler e sempre divertida. As falas correm.
   O enredo é muito conhecido. Henry Higgins é um professor de fonética. Numa noite de chuva, à saída da ópera, ele conhece Elisa Doolittle, uma florista de fala vulgar. Aposta com amigo que conseguirá mudar a dicção da florista e assim enganar os snobs de Londres, que acreditarão ser ele uma Lady. Tudo isso ocorre numa Londres maravilhosamente vitoriana.
   No filme toda a atenção é para Elisa. Audrey dá seu grande show. Na peça há uma ênfase na dúvida: Higgins tem o direito de tirar Elisa de seu meio social? A educação de Elisa abre seus olhos para um mundo maior, mundo que ela não conhecia. Mas Elisa não tem o dinheiro para viver nesse mundo descoberto. Esse o drama. De que vale a educação sem a oportunidade? Educação sem avanço social e´ apenas frustração. Elisa sente isso na carne.
   Shaw continua atual. Educamos gente que jamais poderá viver no mundo que eles aprendem a conhecer e a admirar. Uma bela e intraduzível peça.
   PS: Há uma tradução que transforma ã giria de Elisa em carioquês do morro e Higgins num falador do português correto. Não funciona. Hoje a lingua correta não mais distingue a Lady da florista. Além do que não há como levar a sério um professor que distingue a lingua da Tijuca da do Leblon e da Urca. No original Higgins fala dos acentos de Fulham, Chelsea e Newcastle, acentos que são pronunciados. Elisa é uma cockney, Higgins fala o inglês da BBC. Intraduzível.