BIG SUR BY HENRY MILER + ABBEY ROAD AND LET IT BLEED + UMA CONVERSA COM UM STALINISTA + RILKE

-------------------- Big Sur foi escrito por Miller nos anos 40 e não fala de sexo e nem de drogas bebida ou tudo aquilo que os leitores teen de Miller procuravam até os anos 90. Ele se mudou para o sul da cidade de San Francisco, o Big Sur, uma região selvagem e deserta então, e nos conta como é morar lá. O livro, muito bom, é um elogio da solidão, da percepção que nasce com a observação atenta da vida e das coisas. Não chega a ser ZEN, mas o que Miller diz me agrada porque eu vivi tudo aquilo que ele narra, então eu sei do que se trata. Mas não pense que seja um isolamento radical. Miller mora num barraco, feito por ele mesmo,com dois filhos, câes e tem vizinhos, vizinhos que moram longe, que também amam a solidão, mas que o encontram de vez em quando. Ele aprende a se virar, a construir uma fossa, um chuveiro, moveis, a viver sem eletricidade. Quanto aos vizinhos, o foco do livro é falar deles. ------------- São pessoas interessantes. Gente que largou tudo e foi viver por lá. Alguns são artistas, todos são diferentes, excêntricos talvez, mas jamais malucos. Miller descreve eles, relembra conversas e nos conta suas sensações ao observar o tempo, o mar, as montanhas, uma folha seca no chão. Quando não cai em seu emocionalismo, que eu odeio e por isso não leio os Trópicos, Miller escreve bem. Ele descreve, ele pensa, ele diz. Felizmente neste livro ele se perde em emoções adolescentes poucas vezes. É um adulto falando. E como tal ele conta coisas que interessam. ----------------- Miller já era cult então, por isso recebe visitas de fãs que o acham lá. Ele tenta fugir, mas não há como. Vão a procura do escritor louco cheio de sexo, encontram um quase monge solitário. Com os moradores do lugar ele é simpático. São conversas sobre o clima, sobre consertar uma porta, sobre a escrita, sobre pintura. São companheiros. ----------------- Quanto mais voce usa esse seu celular mais distante da ONDA DO MUNDO voce está. Explico. Miller crê que ninguém cria nada, que há um criador que cria através de nossa mente. Somos antenas. Para acessar essa criação é preciso alguma solidão, silêncio, quietude. Sacou? Uma geração, inclusive eu, que vive conectada não tem chance alguma de entrar nessa onda mental. Daí a pobreza vexatória de nossa arte hoje. São criações de carne e de nervos, não de alma. ------------------ Em 1977, ano em que provei a quase solidão total, ganhei os discos Let It Bleed e Abbey Road. Os escutei diariamente por meses. Como dizia Rilke, voce só entra numa obra de arte quando dorme-vive-é inteiramente dela. A somoridade cristalina de Abbey Road e sua mistura de tragicidade com alegria criativa marcaram minha alma para sempre. Assim como a rebelde sexualidade arrogante de Let It Bleed. Eu morei, sozinho, em cada sulco daquele vinil. Não foi uma experiência estética ou sensual, foi um degrau espiritual conquistado. Minha pergunta é: quem tem uma experiência musical assim no Spotify? -------------------- Rilke diz em certo momento que livros emprestados não lhe tocam como aqueles que são dele. Pois a leitura completa só se dá em livros que têm seu cheiro, suas marcas, convívio físico entre leitor e obra. É preciso que o livro faça parte de voce. -------------------- Reencontro um velho amigo. Mais um. Ele me leva à um café chique, caro, exagerado. Não nos víamos fazia mais de 10 anos, muita coisa para se dizer. Mas.... Ele começa me contando de uma amiga negra, modelo, que só consegue trabalho na Suiça, aqui não. " Porque o Brasil é racista não é?". Depois ele me fala de um amigo que transou com um travesti, e que por isso, está sofrendo a terrível culpa cristã. Então ele fala de sua esposa, que está ganhando muito menos do que merecia, porque o Brasil é machista. Nesse ponto já entendi que aquilo não era um reencontro, ele apenas queria saber meu "grau de direitismo", como eu reagia a esse quase interrogatório. Me corrigiu várias vezes, "Não diga favela, é ofensivo, não diga gay, é machismo..." Então ele pagou a conta, alta e injusta, e disse que eu sou O CARA. --------------------- Fiquei triste. Eu sabia que ele faz parte do mundo dos Liberais Chique, mas pra mim isso é só um rótulo, ele é muito mais. Ou era muito mais. ------------- Nada das conversas sobre livros e sol, nada de mulheres bonitas e saudades, nem uma frase sobre a alegria de se rever um amigo. Apenas os assuntos minúsculos, ensaiados, aprendidos em jornais podres. Ele me pareceu morto. Vazio. Um boneco que nada percebe. --------------- Minha namorada riu. Ela trabalha com moda e diz que uma negra estilosa arruma muito mais trabalho que uma loura bonita. Nascida na favela, ela ri ao dizer que todo mundo nela diz favela. Comunidade é coisa de classe média ou de negro na TV. ----------------------- Eu queria ter falado à esse amigo dos livros que li, das experiências que tive, das pessoas que conheci. Impossível. Eu me sentiria em prova todo o tempo, ele a espera da revelação de minha condição de extremista de direita. ------------------- Enquanto isso pouco me interessa se Henry Miller amava Lenine ou não. O que importa é o modo como ele vê um pássaro e o que ele fala sobre a cor. Posso dizer que ele, morto em 1980, é muito mais próximo de mim que esse amigo perdido. O tempo.... ele é relativo.