MEU TEMPO E SEU TEMPO

======================================== O meu tempo não é o seu tempo. E isso é corriqueiro. ---------------- Luis Schiavon morreu nesta semana e disse uma frase interessante ( frase que sinto sempre ): " O pior de ficar velho é se despedir de seu mundo. Ele desaparece dia a dia ". Não, não pense que este texto é choroso. Não faço elegias ao meu tempo. Ele existe enquanto existo. E tenho orgulho em ser dele e não deste. Muita coisa se foi, mas eu estou aqui. Sujando e poluindo o mundo de hoje. ------------------ Fui criança nos anos 60 e o que morreu daquele tempo foi o espaço. Havia espaço, não apenas uma quantidade imensa de terrenos vazios e ruas desertas, veja os mapas de então, como espaço para planejar. O futuro parecia um campo sem muros. Otimismo baby, um imenso otimismo. Nas ruas, tomadas por crianças, seja aqui seja no Japão ou em NY, o que mais lembro são dos rádios, volume alto, muita música. Música alegre. Minha cidade era muito pobre, mas não se ligava muito pra isso, porque a vida era vivida na rua. Em comunidade. Muita festa: carnaval com lançaperfume, guerra de confetes, em cada rua crianças jogando água em quem passava. Páscoa com os Judas amarrados nos postes. Festas juninas com fogueiras nos quintais e balões aos céus. Muita pipa, pião, bola, corda pra pular. --------------- Minha melhor década foram os anos 70. Quadrinhos, as bancas tinham cerca de 50 títulos mensais de quadrinhos. Discos e revistas de mulher pelada. Foi uma década colorida, de rock e de surf na alma. Carros amarelos, laranja, verdes, camisas de estampados absurdos, calças rosa e roxa. Tudo era exagero e eu exageradamente só pensava em mulheres e rock. Longos cabelos, longas noites na rua, longas conversas, Amigos vinham em casa sem avisar, porque ninguém tinha telefone, então pra ver alguém tinha de ir lá e correr o risco de dar com a cara na porta. Normal. No fim da década veio a discoteque e a coisa mudou, agora a gente tinha de ser elegante. E saber dançar. Adorei. ------------------- Os anos 80 foram uma chuva de cocaína. Todo mundo cheirava, era barato. Década de se sair toda noite e voltar com o sol. Eu detestei essa década desbundada, onde se falava muito, onde todo mundo parecia histérico, onde nada fazia sentido nenhum. Foi minha década pesadelo mas também minha década de apaixonado, em love por livros, filmes, meninas, praias, festas. Tudo sem regra, tudo free. Foi o tempo mais livre, mais irresponsável, mais over que eu vivi. ------------------ Nos anos 90 começaram os primeiros anúncios do que somos hoje. Mas ainda era louco. Foi um tempo que tentou pegar o melhor dos anos 70 e juntar ao que havia de bom dos anos 80. Não rolou. Os anos 90 foi um replay dos anos 70 em modo cínico. De repente tudo que era dos anos 70 era cool: filmes, discos, cabelos, roupas, modismos, tudo feito em 1976 parecia cool em 1996. Mas a coisa era fake, 1996 tinha uma frieza e uma melancolia que não havia em 76. --------------------- Então veio 2000 e logo veio a queda das torres e o mundo virou uma merda. A propagação do medo fez de nós um bando de dedo duros sem trégua. É um mundo de pavor, de cuidados, de receios e de policiamento absoluto. Quem nasceu dentro desta paranoia não pode a perceber, isto é tudo que se conhece, mas para a minha geração a coisa é ridícula. ------------------- Meu mundo tinha Paulo Francis e Nelson Rodrigues. E eles seriam impossíveis hoje. Meu mundo tinha Von Karajan e George Solti. Eu vivi sabendo que Dali e Miró estavam vivos. E fui acostumado a esperar um livro novo de Saul Bellow, Norman Mailer, John Updike e Graham Greene. Eu conheci o cinema lendo sobre a estreia dos novos filmes de Bunuel, Truffaut, Kurosawa e Bergman. Quando comecei a ir ao cinema sozinho, aos 13 anos, ainda produziam filmes gente como Hitchcock, Elia Kazan, Vincente Minelli e pasmem!, George Cukor!!!! Kubrick e Fellini estavam cheios de energia. ----------------- Aqui no Brasil a nova música tinha Secos e Molhados, Alceu Valença e Fagner. O país crescia a 12% ao ano. Mais que Coreia do Sul ou Singapura. Tivemos nossa chance. Mais uma. 1988 mataria nossas chances. ------------------ Esse é meu mundo e todo dia eu vejo um pouco dele sumir. O primeiro sinal faz muito tempo, foi a morte de Lennon em 1980, um sinal de que minha infancia estava partindo. Depois foram centenas: desde a casa de minha ex que é demolida, a rua que fica cheia de prédios, o amigo que morre ou enlouquece. -------------------- Mas o fim de meu tempo não é exatamente a morte de um guru ou a destruição de uma memória física, a morte do meu mundo é muito mais cruel e muito mais sutil, é o fim de um modo de viver, de pensar, a morte de valores e de sonhos. É o fim do "numa boa", a extinção do "eu quero é mais", o silenciamento do "é proibido proibir", tudo isso trocado por coisas, para mim ridículas, atitudes que cobram de todos uma espécie de eterna guarda, eterna tensão contra "o inimigo", inimigo que não existe, que é um espantalho criado para unir os diferentes em pseudo igualdade. ----------------- No meu mundo ser diferente era ser melhor. Hoje são todos falsamente iguais. A diversidade dos que pensam o mesmo e são diversos apenas na fachada. ------------------------ Meu mundo ria, ria muito. Ria do careca, do gordo, do magro, do baixo, do alto, do preto, do portuga, do gringo, do paulista, do baiano, do gaúcho, de todo mundo. Rir era recomendado e se voce era alvo de riso, então que se crie uma piada melhor como resposta. O brasileiro era famoso por contar piada. Por rir. Se contava piada no ônibus lotado, na praia, no bar, na escola. E acima de tudo, se admirava a mulher.... Se amava a beleza, as curvas, o sorriso da mulher. Drummond, Vinicius, Bandeira, eles falavam da mulher que passa, do molejo, do bamboleio, da felicidade que era a presença da mulher. ------------------------- Preciso dizer que isso morreu? As feias tiveram sua vingança. --------------------- Irreconhecível mundo meu. Amado mundo meu. -------------------Penso então que ele não morreu. Na verdade ele passa, eternamente, em looping, bamboleando como aquela mulher indo à praia. ---------------- Não falo de mulher por acaso, a beleza e o elogio à beleza são hoje atitudes rebeldes. Nada parece mais revolucionário que amar a beleza e elogiar a mulher como ser mágico e encantado encantador. -------------------- Então encerro dizendo que elas ainda existem e ainda são lindas e que o eu de 13 anos, que as descobria e as amava como fossem elas mágicas, tem seu canto em meio a melodia da moça que passa ao caminho do mar. Pois a moça bonita e o mar, esses não mudam, não morrem e resistem. E eu, ainda aqui, e esperando viver pelo menos mais 20 anos, testemunho, alimento, insisto e faço presente o meu mundo vivo. E como diria o poeta maior: Bebete vão bora pois já tá na hora!