DA VIOLENCIA E DO JARDIM

Cabeças de inimigos eram penduradas em postes na entrada da cidade. Um corpo é exposto em carrinho de supermercado. Inimigos. O ser-humano é violento por natureza. Violento por ser covarde. Nossa violencia não nasce da necessidade, nasce do medo. Não somos um Leão caçando para comer. Somos uma Zebra que aprendeu a destruir.
O iluminismo nos deu a ilusão de que com o uso da razão tudo de ruim e sujo seria eliminado. Mera questão de educação, de evolução, de tempo. Adquirimos essa fé no progresso. É dificil perceber que o progresso é só o das Coisas. O mundo vivo, a natureza e o homem, esses continuam iguais. Provávelmente mais sujos, menos virginais, mais desencantados; mas com os mesmos impulsos, desejos, fenômenos e medos.
A única coisa que ganhamos foram vinte anos a mais de vida. Para morrer mais vinte anos de tédio. O que perdemos foi a sensação de possuir uma alma. A cabeça pendurada no poste era um símbolo. Simbolizava a vitória, a morte do mal, o afastamento do inimigo. O corpo no carrinho é uma compra no supermercado. Adquiri este corpo, fiz dele o que desejei, ele é um produto. Eu sou foda !
O corpo não é mais sagrado. Abre-se uma barriga para extrair um tumor, abre-se uma barriga para matar um mané. Não se ama um corpo como invólucro de mistério sagrado. Penetra-se nesse monte de carne quente como posse de coisa que desejo. A nobreza não vem mais do modo de olhar e da atitude de uma refinada alma. Vem de fora para dentro : a plástica certa, a roupa certa, a dieta certa. O corpo manda, mas o corpo é falível, perecerá, é máquina química, é coisa sólida e desvendável. Todo ato desse corpo é portanto banal.
A morte então se banaliza. Como o sexo se banaliza. Eu disse, o homem sempre foi violento. Mas a morte nunca foi banal. Sofria-se por ela. Havia um sentido, mesmo que falso e injusto. Mas agora é um corpo que morre. Carne desvendada. Máquina que elimina máquina. Como o ato sexual. Corpo dentro de corpo. Simbolizando o gozo de dois corpos. E nada mais que isso.
Quando trucidava-se um inimigo, um pecador ou um bandido, eu o trucidava pela vida da nação, da fé ou da justiça. O trucidamento agora é por meu narcisismo, meu ego, porque sou mais fodão que ele.
Talvez a verdade tenha sido sempre essa. No fundo toda violencia sempre foi uma questão de egos. Mas os símbolos nos consolavam. O que nos consola hoje ?
Voltaire dizia que no fim tudo que importa é que cada um cuide de seu jardim. É o que tento fazer. Viver como eu quero. Com meus valores, meus símbolos e meu sentido. Tentando me sentir um cara do século XVIII. Tentando ignorar esta hora errada em que nascí. Mas é impossível. Violentamente sou invadido pelas imagens de corpos destroçados e do carrinho do supermercado levando a coisa morta pela rua. Pior que a violencia é esse sensacional frenesí pela divulgação do mal. As coisas assistem coisas sendo destruídas.
Não seja bobo. Cada corpo destruído num atentado é mais um passo na futilização de seu interior. Cada filme novo que mostra a destruição de tudo que é vivo, é mais um tijolo na parede que nos aliena da vida. Tudo tem uma direção : a falência do símbolo. Cristo crucificado se torna apenas um bom homem que pagou o pato. Todo o sentido do sacrifício e da dor se faz pó.
Cuidar do jardim. Nunca isso foi tão necessário.