FRAGMENTOS, MÚLTIPLAS LINGUAGENS, CORTES TEMPORAIS, IRONIA... PORQUE CIDADÃO KANE É O QUE É, O MAIS MODERNO E O MAIS VAIDOSO DOS FILMES

Orson Welles foi um gênio. Esse foi seu legado, foi seu brilho e foi sua maldição. Pois ele era maior que o meio. Seu gênio foi do tipo renascentista, ele fosse nascido no século certo teria sido um Wagner ou um Leonardo. No tempo e no lugar em que nasceu, tornou-se um pastiche de si-mesmo. O cinema era pouco para ele, a tv era nada para ele, a vida lhe foi asfixiante. Foi um menino prodigio que tocava Mozart aos 3 anos, que se apresentava como mágico profissional aos 5 e que com 15 anos já excursionava com seu grupo teatral pela Irlanda. Aos 18 causou escândalo na Broadway com seu Macbeth negro e aos 19 era famoso em todos os USA graças ao rádio, midia que ele revolucionou. Aos 21 já era um mito do cinema. Aos 30 era um velho acabado.
Cidadão Kane é inacreditável. Nunca ninguém foi tão genial em seu primeiro filme ( !!!!!! ). Primeiro filme.... A impressão que o filme dá ainda hoje é das mais modernas possíveis: ele é feito de fragmentos, de estilos que se chocam, de tempos que se atropelam e de uma verdade que é sempre inescapável. Imaginar o que deve ter sido ver este filme em 1941, o choque que causou, o espanto e a inveja que fez nascer...
Todo o cinema feito até então está explicitada aqui: os primeiros minutos, dos mais belos da história, são puro Murnau e Lang. A câmera que voa, as fusões que dançam, o jogo com espelhos, as imagens deformadas, a fluidez...
Mas todo o filme é feito dessa liberdade extrema. Cada cena tem um estilo de cinema próprio. Há coisas do policial noir, do cinema poético francês, da fábula e da montagem russa, do épico de John Ford. Tudo Welles pega e usa a seu modo, e tudo ele destrói.
Não há trama cronológica, certas cenas parecem de documentário, a câmera treme e segue os atores, algumas falas são improvisadas, algumas são estilizadas. Ele cria, sem se perder, um frenesi de criatividade, uma fragmentação estética que espelha a própria condição da vida moderna: incerteza e fluidez sem fim.
É conhecida a riquesa das imagens deste filme. Rostos imensos cortando o foco, cenas de fundo vivas e ricas, a tela se enche de detalhes, de movimento e então se congela e se crispa em drama puro. Mas há mais: Welles, irriquieto, usa coisas operísiticas, usa o humor, usa tudo que o cinema permite e tudo que ele viria a ser. Godard, Altman, Scorsese, Coppolla, Todd Haynes, Paul Thomas Anderson, Tarantino, Lumet, De Palma, Kubrick, Cassavettes... tudo está contido em cenas de Kane, ele anuncia o futuro, condensa o passado, brinca com o meio, faz dele o mais mágico dos brinquedos.
Mas de toda essa riquesa, nada impressiona mais hoje em dia que a beleza de suas imagens. Gregg Toland se esmera em cada take, se doa por ter recebido, finalmente, liberdade para ousar o que quisesse. E ousou. Sombras, focos distorcidos, câmera baixa, sets tortos. Kane esgota tudo o que pode ser feito em cinema. Filmes melhores podem existir, filmes tão ricos e com tamanha complexidade de detalhes e ideias, não há.
Falar sobre os bastidores, tão ricos quanto, do filme, deixo para quem assistir os excelentes extras do dvd. O que enfatizo é que Kane é inesgotável. É por direito o filme que mais despertou vocações de cineastas ( e de criticos também ). Para quem ama o cinema é seu Hamlet e seu As Meninas ( de Velazquez ). Tudo o que Orson fizesse depois só poderia ser decepcionante. E esperto como ele era, sempre soube disso. Kane foi sua jóia e sua maldição.