REENCONTRO ( RENARD, VELHA RAPOSA )

   Eu ficava olhando aquela capa de papelão grosso. Admirava o azul celeste que emoldurava o desenho. Um leão, pássaros, um galo, carneiro, esquilo e um urso com uma lança à mão. E a raposa que se apresentava nessa cena diante do rei, o Leão. Eu não sabia ler, e então deveria ter menos de seis anos. Minha barriga sobre o tapete, frio, ficava vendo os desenhos nas páginas. Uma casa medieval em meio a neve e a Lua. Um cachorro vestido de camponês. E a raposa, sempre presente, dando golpes, fugindo com seu roubo.
   Depois esse livro desapareceu de casa. Foi um presente de minha madrinha, que se chamava Lourdes. Uma amada madrinha que me mimava com doces e brinquedos. Mas que um dia me dera esse que foi meu primeiro livro.
   Os anos passaram e acabei por descobrir que aquele livro desaparecido deveria ser o famoso "Renard, velha raposa", um livro francês medieval, de autor ignorado e que é considerado um dos textos fundadores da literatura do país. Nunca mais o vi. E, frequentando sebos desde 1992, sempre ia à sessão de livros raros para ver se o reencontrava. Quando arriscava perguntar, a resposta era sempre a mesma: "Jamais o vi". Será que eu sonhara com aquele livro?
   Fosse eu um milionário seria esse o livro que eu iria à caça. Nada de gravuras de Rembrandt ou textos sacros medievais. Seria o meu Renard.
   Minha madrinha morreu velhinha, eu entrei na maturidade e nunca esqueci desse livro número um.
   Um dia...
   Numa manhã chata e sem nada pra fazer, comecei a andar pela Paulista. Desci a Augusta e pensei em ir a uma feira. Mas em vez disso entrei em ruas que não costumo andar. Comprei então um porta-retratos e um livro de poesias de Keats. Já tarde, resolvi, cansado, voltar pra casa. Parei para amarrar o tênis e então olhei uma vitrine. Livros bobos e banais. Me voltei para partir mas meus olhos ainda tiveram tempo de ver uma capa azul... RENARD...era ele! Deus, era ele!!!! O mais procurado dos livros, o primeiro de todos, o impossível, o milagre....RENARD!!!!!
   Entrei na loja, o coração aos pulos. Pedi o livro e disse, "Vou levar!!!" Que importa o preço? Ele vale tudo o que tenho em minhas estantes. Mas estou ansioso. Antes da moça o colocar numa sacola eu o pego nas mãos. Olho, quarenta anos depois, sua capa, a raposa e o leão. Entrego o livro para a moça e finjo olhar outros livros. Escondo meus olhos, com lágrimas.
   Editora Vecchi, Rio, Capital, MCMXLVII....1947....quando o ganhei ele já era antigo....1947, por isso era impossível de o achar, 1947.....
   Volto pra casa e olho cada página. Estranho, lembro de tudo, de cada desenho, de cada forma.
   Obrigado pelo presente outra vez, minha madrinha....