O LEÃO NO INVERNO - ANTHONY HARVEY

Existem várias maneiras de se assistir este brilhante filme inglês. A política, a estética e a psicológica. Usufruir das três é ter um sorriso no rosto durante as duas horas e meia do filme.
A política.
O filme conta o dia de natal de 1183 em que Henrique, rei inglês, dono de metade da França, tentou decidir com quem ficaria seu reino. Ele apóia John, filho idiota e repugnante, mas sua mulher, Elinor, apóia Ricardo, uma máquina guerreira. Há ainda Geoffrey, filho ignorado e talvez o mais inteligente e Philipe, rei da França em visita ao castelo. Peter O'Toole faz Henry, Kate Hepburn é a rainha e Richard é Anthony Hopkins. Timothy Dalton faz Philipe. O rei mantém uma amante, exibida diante de todos, e trancafia a esposa num castelo durante dez anos. Eis o geral. Parece Shakespeare, mas felizmente, nunca tenta ser. O que vemos é uma feroz briga de cães. Agressões sobre agressões, mas que brilhantemente, sempre se encerram com uma frase de humor. O filme é drama medieval, mas com a ironia do século XX.
É o momento chave em que a monarquia se afirma na Inglaterra, o momento em que Henry dá as diretrizes do modo britânico de domínio e de guerra ( ele chega a dizer que ele é o inventor da guerra ). E vemos, deliciados, o quanto já fomos grandes.
De Shakespeare o filme consegue o efeito de nos fazer testemunhas do imenso universo que há no homem. Henry não quer, ele ansia. A rainha não trama, ela é diabólica. Tudo é inteiro, não existem meias emoções, o espírito humano está completamente livre. O roteiro de James Goldman, baseado em peça sua, tem diálogos que nos deixam sem fôlego. Jamais sabemos quem fala a verdade, quem está sendo leal, se as lágrimas são sinceras. Todos jogam, todo o tempo.
Estéticamente o filme é imbatível.
Começando com a trilha sonora de John Barry, uma das melhores e mais famosas do cinema. Barry foi um gênio, suas centenas de trilhas o provam. Aqui ele se supera. È música medieval e bárbara. Sublime. Mas há mais. Vemos a real arquitetura da época. O rei parece um mendigo, o castelo é frio e fétido, as tropas são pequenas e desorganizadas. Estamos longe da bela Itália e o rei francês é modelo de cortesia e educação, Henry perto dele é um bárbaro.
A fotografia é de Douglas Slocombe. A cena da rainha cruzando o lago justifica sua carreira.
Quanto aos atores... Kate ganhou seu terceiro Oscar aqui. Merecido ? Ora. Ela mereceria todos os Oscars da história. Sua superioridade sobre qualquer atriz de qualquer tempo é total. A rainha que ela faz é a mais triste das criaturas. Kate consegue passar a dor de uma mulher que envelheceu e perdeu seu amor. Ao mesmo tempo ela é má, mentirosa, jogadora, e começamos a duvidar de seu sentimento. Há uma cena em que ela se olha no espelho que é, talvez, o melhor momento de uma atriz já filmado. Só Falconetti em Joana D'Arc lhe chega perto.
Peter O'Toole perdeu mais um Oscar aqui. Para Cliff Robertson ( Pode ? ). O papel é o mesmo que ele havia feito em Beckett. Só que naquele filme era Henry jovem, aqui é o Henry aos 50. O que dizer dele ? Nos apaixonamos por seu rei. Olhamos fascinados seu descaramento, sua violência, seu gênio e no final, sua suprema decepção. Peter torna-se um sol. Uma aula para todo ator. Carisma puro, bem treinado, como só atores treinados em Shakespeare possuem.
Para voce sentir o clima do filme conto uma cena : o rei quer ir à Roma, anular seu casamento. A rainha o ameaça com a morte. Os dois discutem, se ofendem, são humilhados e ele parte. Kate, genialmente, diz ao final : - Qual a família que não tem seus altos e baixos ?
Por que não se fazem mais filmes assim ? Por que nossos filmes históricos não passam hoje de um enfadonho desfile de modas e a única questão é : quem ficará com a pobre mocinha ?
Creio que o principal é o completo desconhecimento de história e de estética. Mas talvez seja ainda pior. A incapacidade de se entender diálogos complexos e brilhantes. Uma pena.... Daniel Day Lewis, Meryl Streep, Susan Sarandon, Kevin Kline morrerão sem papéis como estes.
Em 1968 ele concorreu a montes de Oscars. Ganhou 3. Merecia mais.
Psicologia.
O filme trata do embate entre o princípio da pura masculinidade e da pura feminilidade. Trata da briga por atenção nas famílias. Trata do incivilizado tornado civilizado. Da dor de se precisar ser livre. E tem a exposição de almas desnudas, suas injustiças, seu egoísmo, seu medo.
Termino contando mais uma cena : Henry diz que após o natal a rainha voltará a seu cativeiro. Kate derrama uma lágrima discreta e diz que não há dor maior que a de se conhecer o mundo, a liberdade e perder todo esse mundo.
O filme é sobre isso. O cinema hoje vive esse dilema. Nós somos essa rainha.
Que Deus nos proteja e que Henry seja clemente.
O Leão no Inverno somos todos nós. Este é o inverno de nossa coragem.