SHELLEY E O HOMEM MODERNO

Termino de reler ADONAIS de Percy Shelley. Ao longo de centenas de versos Shelley se despede de Keats, morto tuberculoso em Roma, jovem e em seu apogeu criativo. Mas Shelley se despede também de sí mesmo : pouco tempo depois ele morreria aos 30, afogado num lago italiano, em desastre com seu iate. Nos bolsos ele levava Platão e Keats. Nascia com ele o artista sensível moderno.
Shelley nasceu nobre e rico. Sua família vinha de 1200. Cresceu amado pelo pai, em terras férteis e imensas. A criança Shelley foi educada para ser fazendeiro e artista. Vagou livre pelos lagos, grutas, bosques de seu pai; e estudou línguas, quimica, música. Nesse ambiente cheio de pássaros, flores e recantos vazios, Shelley criou sua persona poética. Tudo o que ele viu quando criança alimentou sua obra até o fim. ( E não somos todos assim ? ).
Jovem, foi expulso de Oxford por ser ateu e escrever um panfleto : " A necessidade do ateísmo". Travou contato com líderes políticos rebeldes, promovia poetas republicanos, vivia o amor livre. Shelley pregava a fidelidade ao ideal do amor, nunca a pessoa. Casou-se e foi infiel, foi pai, perdeu filho, provocou o suícídio de sua ex-esposa e de uma apaixonada. Enamorou-se da irmã do grande Lord Byron, e numa noite de festa entorpecida, ela, Mary Shelley, escreveu "Frankenstein". Orgias de ópio, de sexo, de poesia. Ele vaga pela Itália, tem melancolia, ajuda crianças pobres, doa dinheiro a amigos sem talento. Veleja e morre velejando, numa tempestade. E escreve.
Shelley define, conscientemente, o que é a poesia : uma religião para quem não tem religião. O poeta é uma antena que capta o que virá, define seu tempo. Ele, Percy, viveu intensamente o parto de nossa era. Sua obra é uma quebra, um conflito, um confronto. De um lado a natureza, a eternidade, o UNO imutável. De outro lado o vento, a mudança, o corpo apodrecido. Shelley, ateu, fala da alma que não muda, daquele centro incorruptível que há em todo homem, da força da vida. E ao mesmo tempo ele chora a folha que cai, o amigo morto, o amor que nunca se encontra. Yeats será seu melhor discípulo. O mundo é sua casa.
Percy é, com Keats, Byron e Wordsworth, o poeta que nos define, o poeta do novo tempo, a era da ruptura. do tempo que voa, da mudança que nada muda, do desumanismo. Desde então, todo artista que merece tal nome, é Byron, é Keats e é Shelley.
Byron é o criador satânico. O artista incestuoso, sádico e que ao mesmo tempo luta em guerras pela liberdade. Tem a sexualidade dúbia, um narcisismo imenso e tem fama, muita fama.
John Keats é o talentoso isolado. O ídolo dos ídolos. Pobre, sem fama, mas o mais genial. Keats cria o mito do "famoso após a morte", do talento desperdiçado.
E Shelley que é o dínamo, o incansável, o insatisfeito, o ansioso, o leão entre feras. É o jovem que rompe com a tradição, com a família, é o auto-exilado, o generoso, o sensível aventuroso.
Você encontra seus clones por aí desde então. Entre atores, músicos de rock, escritores e entre falsos poetas principalmente. O exemplo de jovens bonitos e sensíveis, correndo mundo atrás da poesia de viver, amando livremente, se drogando, e se consumindo cedo. Indo onde há vida.
Nós amamos Cervantes e Dante. Rembrandt e Velazquez. Mas o que eles eram ? É impossível ser Dante ou ser Velazquez. O mundo que os criou morreu com a industrialização. Adoramos Ésquilo e Sêneca, mas eles eram homens de um mundo povoado por deuses e por faunos. O único homem moderno antes da geração romântica é Montaigne, mas Montaigne é um mistério insondável : ele está fora do tempo ( como Shakespeare ). Shelley já nos é familiar. Seu medo é nosso medo, sua raiva é a que sentimos.
Tempo glorioso esse ! Entre 1790/1810, o mundo tendo em seus braços todos aqueles que fertilizaram os 200 anos seguintes : a louca audácia de Goethe, o orgulho profano e monstruoso de Beethoven, Napoleão criando a idéia de que tudo é possível, e os poetas românticos ingleses. Goethe nos dando a idéia de que um homem para ser grande precisa saber tudo sobre todos os assuntos; Beethoven clamando que nada e ninguém pode ser maior que a mente criativa e que mesmo um rei deve pagar para vê-lo tocar; Napoleão invadindo monarquias, ousando derrubar reinos milenares, dizendo que o tempo é hoje e agora; e Shelley, desafiando crenças, ansiando sempre por mais e sendo eternamente e belamente : jovem. Com ele nasce o mito da adolescência procurada, cultivada, acariciada. O poeta nunca mais será um sábio ancião, será antes, um jovem rebelde. Nós seremos a última geração a ouvir sua voz.
Não vou dizer da excelência de sua obra. Leia. Leia no mato, entre vozes de pássaros, ou leia de noite, a luz de velas, chovendo. Leia. Sua voz é a voz de 'MORRO DOS VENTOS UIVANTES", é a voz do que vale a pena. É dele a mais bela idéia sobre o que seja a vida :
DOMO COLORIDO, DE VIDRO
QUE SE DESPEDAÇA EM MILHÕES DE ESTILHAÇOS
BELEZA QUE SE FAZ BELEZA.
MORRER É ACORDAR DO SONHO DE VIVER
A VIDA, VAZIA, É DORMIR.
Percy Bysshe Shelley foi o cristal mais puro.