O PÁSSARO DE PEITO AMARELO

Começaram a derrubada exatamente no ano em que ele faleceu. Todos os passos que meu pai deixou estão sendo apagados. A primeira casa onde ele morou é hoje uma obra. lá será erguido mais um prédio de apartementos, de luxo, que será habitado por novos casais. A primeira loja onde ele trabalhou é agora uma montanha de tijolos e de canos retorcidos. Todas aquelas esquinas onde o jovem homem, que viria a ser meu pai, cruzava, não são mais esquinas, foram redesenhadas. Havia um mercado onde ele me levava para fazer as compras de Natal. Onde ele está ? E uma banca onde eu comprava os gibis com o trocado que ele me dava. Para onde ?
O primeiro bar que ele comprou é hoje uma avenida e o bar onde ele mais foi feliz é uma ruína reformada. O balcão onde eu tomava Fanta e comia misto-quente foi substituído por medíocres mesinhas de metal. O escritório dos fundos onde ele contava seu dinheiro é um depósito de garrafas vazias.
Minha casa vende telefones celulares. É a casa onde eu deitava em seu colo e ria com os 3Patetas. A casa dos patos em tanque de louça, de coelhos brancos soltos na grama, de uvas adoçando ao sol. Hoje ela é cimento que vende celulares de plástico. Onde descobrí Os Monkees e as manhãs de neblina, o que existe agora é trânsito e buzina.
A outra casa vende casas, é imobiliária. O quarto grafitado foi arrombado, exposto, deflorado. O quintal de Nicky, o mais amado dos cães, tornou-se um estacionamento e onde descobrí o amor com uma menina cheia de ansiedade e de olhar risonho, hoje há um balcão onde se fala de aluguel. A árvore que me fazia sombra e tinha cheiro verde é nada.
O lago onde meu pai criou carpas está seco. O rio de onde eu trazia peixinhos em lata enferrujada é agora um esgoto encanado. O lugar onde enterrei meu papagaio tornou-se lixo.
Todas as pegadas de meu pai estão sendo apagadas. Todos os locais onde Nicky deixava suas marcas se foram. Aquilo que meu pai viu não mais é visto por mim. O que viu Nicky passar não pode mais ver.
Quem recolherá meu rastro ? Nada do que ví sobreviverá a mim ? Tudo o que tanto amei será feito pó ?
Nestes tempos virtuais nada é mais importante que esta pergunta : O que resta de tudo ?
A videira que meu pai podava e acariciava, a rua onde ele caminhava segurando minha mão, a praça onde namorou minha mãe. O vinho que a videira daria é hoje uma laje onde passam carros. A rua é um conjunto de prédios, onde meninos passeiam e vão ao cinema. A praça é um camelódromo onde se vende e se rouba. O mundo dele ainda existe ? Meu mundo, para onde irá ?
É essa estupefação que nos faz crer em "Realidade ilusória", "Outras dimensões ", e baboseiras mais. O bicho que somos não aceita um ambiente, um habitat, um ninho que se desfaz assim. Nosso campo de caça, nosso rastro de bosta, nosso totem sagrado... onde ?
O que resta então é fechar os olhos e nada ver ? Fazer de conta que tudo sempre foi nada.
Mas eu lembro da rua de Aninha, eu sei onde fica a casa de Mauro, onde era o futebol e porque eu adorava passar por lá. Se eles se foram que deixem ao menos seus rastros ! Não esburaquem a rua de Mauro, não transformem a casa de Aninha, implodam o prédio de Jane... deixem meu mundo de pé !
Coração de melancolia nascido antes da hora ou depois da hora, mas nunca no tempo certo.
Locais de melancolia, amados quando deixam de existir, procurados na destruição.
Desconectado melancólico, como ver uma rua que não será amanhã o que foi agora ?
A loja onde meu velho comprava carrinhos Matchbox pra mim é agora um boteco sujo. Era onde eu era feliz. Ainda vou lá, passo na porta, espreito. Procuro ver se algum fantasma ficou preso naquele endereço. Bato uma foto escondido.
Nada do que vivermos então importa. Será, cedo ou tarde, destruído. Esquecido.
O vasto campo silencioso onde eu me escondia da vida é hoje um shopping center vulgar. As formigas que me fascinavam, estão enterradas em concreto. E o lodo do lago virou escada rolante.
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Um Bem-Te-Vi passa voando, agora, pela frente de minha janela. Ele pousa na árvore da esquina e toma fôlego. Canta e voa mais. Vai.
Com meu pai, na rua que não mais existe, eu ví um Bem-Te-Vi pousar numa árvore. E cantar.
Ele permaneceu.