EXATAMENTE COMO A VIDA REAL

   Uma coisa que me dá o que pensar: porque as pessoas percebem tanto mérito em filmes e livros que "são exatamente como a vida real"? Qual o mérito em se criar algo que nada mais é que uma cópia daquilo que a vida já criou? O máximo que uma obra realista pode atingir é saber olhar bem.
   Mas posso unir isso a mania de biografias e posso ir ainda mais longe e ir até os reality shows. Do extremo realismo às biografias e ao reality show o caminho é o mesmo, a via que declama em alto e bom som que só o que é "a verdade" tem valor e pode ser util.
   Quando um autor como Dickens cria mais de dez mil personagens, todos "irrealistas", o que ocorre? Dickens está negando a vida e criando gente que nada tem a ver com o real? Ou seria o contrário?
   Toda obra excessivamente realista tem algo de hospitalar. De quase sem vida, quando não, de morto. O escritor recolhe dejetos, fatos "´já acontecidos", e portanto, passados, e os fixa em linhas ou imagens. O mesmo ocorre com as biografias. Sempre passam a sensação de serem testamentos ditados por um moribundo. Um testemunho vindo do leito, leis cheias de "verdade". Que verdades são essas? Desde quando dizer a verdade é ser verdadeiro?
   Quando um autor poderosamente imaginativo cria personagens, lugares e ações, ele cria "a vida". Esse escritor, digamos Dickens, repete a criação que a natureza opera, do nada ou do vazio, cria personalidade. O movimento é o oposto do realismo, da reportagem ou da biografia. Neles voce participa da memória de um fato terminado, morto. No artista original, voce toma parte na criação presente, na liberdade de dar vida e sentido a uma narração.
   Nos acostumamos ao pequeno, ao pouco ambicioso. Autores criativos são vastos e me parece que eles assustam aos pequenos leitores de hoje. A criação deles é vasta demais, exigente demais, complexa demais. Mas é Chesterton que me alerta para o fato principal: autores como Dickens ( e Rabelais, e Swift ), são alegres demais.
   Eles trazem o dom da fertilidade, da fecundidade. Tocam o papel e criam, e criar vida é sempre um ato de alegria. Seus livros pulam, uivam, dançam, dialogam, dão prazer e dão ideias.
   Pessoas educadas ( ou domesticadas? ), a crer que "arte" seria um espelho da vida, e que vida seria tédio e atos minúsculos, jamais conseguirão tolerar os exageros de sentimento, apetite e de criação de Dickens ( e Balzac, e Cervantes ).
   Um artista sempre foi Prometeu. Um homem ladrão, que com o fogo na mão tentava dar luz e calor para a humanidade.
   Hoje, reduzido a um tipo de repórter do vazio e do não-ocorrido, ou um retratista do já terminado, um jornalista-divulgador da "verdade", ele carrega fogo apagado, impotência fria, tristeza de quem não sabe mais fazer viver, criar, inventar, ser feliz.