DELINQUÊNCIA

Estou na academia de ginástica. Uma bela mulher passa na minha frente. Sinto um desejo imenso de olhar seu traseiro. Mas sei que não devo. Olho. Me sinto um delinquente. Acabo de infringir uma lei não escrita: não sentirás desejo numa academia. ---------------- Nos anos 80 ou 90 academias tinham clima de bar, a paquera rolava explícita. Nada havia de errado ou não aceito em olhar com admiração uma bela mulher. Porque toco nesse assunto? ---------------- Ontem conversei com um amigo psicólogo e em dado momento ele me fala da delinquência. De que desde que nossa civilização existe, todo jovem foi delinquente em algum momento. Geralmente contra os pais ou a escola. Isso faz parte da criação de uma personalidade, de um caráter. Em um mundo, o de agora, em que quase tudo é permitido, como se rebelar? Olhando o traseiro de uma mulher? Ora, cometer esse gesto é uma pequena delinquência cabível apenas a um homem de outra geração, alguém como eu. Para um jovem de 12 ou 17 anos, criado em meio a vídeos pornô, onde olhar um traseiro na rua nada tem de interessante, como cometer uma delinquência? ---------- Pois vai longe o tempo em que acender um cigarro de maconha ou pular o muro da escola era um ato de coragem. Hoje nada mais é que fazer o que todo mundo faz ( fumar ), ou algo que não tem mais o menor sentido ( pular o muro ). Temos como resultado uma geração terrivelmente apática. Jovens com pais que tudo permitem dentro de uma sociedade onde ser rebelde é ser "um dos nossos". ---------------- Mas o que desejo falar é sobre livros. Com meu amigo eu falei dos livros que li recentemente: Gibson, Murakami, Houellebecq, Durrell. Algo nos bons livros de Houellebecq e Murakami me incomodou. Falta algo neles que não consigo definir o que seja. Mas agora entendo o que é: Delinquência. Em Murakami a rebeldia dos personagens foi vencida a muito tempo e em Houellebecq, autor inconformado e azedo, essa delinquência se transformou em narcisismo e medo. São dois autores de hoje e que, por terem talento, revelam nossa condição anti delinquente. Durrell, sendo 40 anos mais velho, ainda está inserido na literatura que crê no confronto. Seus personagens são todos anti sociais. Se movem no lodo e na luz da rebelião. Sofrem de ansiedade por viver, nunca por medo de morrer. -------------- Pois a LITERATURA, a grande e maravilhosa arte literária, de Raskolnikov à Heathcliff, de Macbeth à Ahab, sempre falou de gente delinquente. Todo grande romance, mesmo que discretamente ( em Henry James e em Jane Austen ) falou de personagens que reagiam ao meio, que se moviam contra aquilo que lhes era dado, que saíam de casa ou do país em busca de algo, que se construíam. Esse dom da literatura é tão forte, ou era, que escritores como Joyce, Tolstoi ou D.H. Lawrence se tornaram eles mesmos delinquentes morais. Desde o momento em que Prometeu rouba os deuses até o ato gratuito de Camus, escrever foi um ato de enfrentamento. Murakami e Houellebecq falam da impotência. Do mundos sem luta a ser vencida. De se perder aquilo que nunca se tentou ter. Julien Sorel de Stendhal, os novos ricos de Balzac, Oliver Twist e David Copperfield de Dickens, Tom Sawyer e Huck Finn, todos são delinquentes. ------------------ Delinquente aliás é uma palavra mal entendida. Hoje ela é sinônimo de ladrão. Mas veja: o ladrão ou o traficante não são necessariamente delinquentes. Eles podem ser apenas mal caráteres ou malandros que agem de acordo com o meio onde vivem ( o que não os absolvem, muito pelo contrário ). Delinquente é aquele que vai contra o lugar ou o meio onde nasceu. É aquele que tenta ser o que é. Que briga para abrir espaço. Um desbravador. Um construtor. Um corajoso. É quem vai contra a maré. Grita. Se impõe. Falando de modo bem didático: um hippie em 1965, no meio do Kansas, era um delinquente. Um hippie em San Francisco em 1972 já não era. Peço agora que imaginem como um filho desses hippies de 1972 poderá ser um delinquente em casa. Se os pais pregam a paz, o amor, a liberdade total, a aceitação de qualquer tipo de desejo sexual, como os enfrentar, como se afirmar, como ser delinquente "para os pais que se acham delinquentes eles mesmos"? Como um jovem de 15 anos pode ser "jovem e moderno", "novo e ousado", "livre e ativo", se seus pais, e até os avôs, são "livres-modernos-ativos-revolucionários-liberais"? Eu respondo: Sendo ausente. Se alienando. Não desejando. Saindo da luta antes mesmo dela ser proposta. É isso que vejo nos jovens de hoje. É isso que leio na literatura de agora. ( Outro modo de confronto com os pais seria os negando: sendo conservador. Mas o conservadorismo tem um apelo tão pouco sedutor para quem tem menos de 30 anos, que é uma opção nem pensada. Sexo sempre importa. Ser um deprimido trancado no quarto tem ainda algo de sexy, mesmo que seja um sexy triste. Ser um católico conservador nada tem de sexy ). ---------------- Então eu olho a bunda da moça que passa. Olho apenas um segundo. Ou menos. E mais ninguém olha. Fui mau. Fui contra uma regra do bom costume. Fui delinquente.