EU QUERO SER AMIGO DESSE CARA! BEAT THE DEVIL.

   Uma das coisas mais chatas de 2020 é que, apesar de ainda admirarmos alguns artistas, são poucos, ou quase nenhum, que adoraríamos passar ao lado três meses de férias bancadas por eles mesmos. Admiro Tarantino, mas não teria saco pra ficar 12 semanas vendo filmes dos anos 70 e conversando sobre artes marciais. Scorsese não me parece muito divertido e Wes Anderson é do tipo que me proporia brincar com trenzinhos. Muitos passariam esses meses de férias drogados e outros em clínicas de repouso. Talvez fosse divertido passar esses meses com Coppola na sua vinícola. Ou com Clint Eastwood. Posando de cowboy em Carmel. Mas não me parecem boas companhias. Os filhos chatos de Francis Ford logo iriam encher o saco e Clint deve estar cercado de enfermeiras.
   Três meses com John Huston seriam um sonho. Como era moda em seu tempo, artistas faziam coisas. Tinham a tal da "ansiedade por viver". Hoje há a tal "depressão por ter de estar vivo". John Huston criava atividades. Uma viagem ao Japão, caçar raposas na Irlanda, pescar no Pacífico, beber em Roma. Jogar em Cannes, andar pela França, ver toureiros na Espanha, nadar no Canadá. Ir em festas em Londres. E falir mais uma vez. Não importa, a vida é curta e só nos resta viver bem.
   Huston pegou uma grana de seu amigo, Bogart, e foi pra Itália em 1953 fazer Beat The Devil. Chamou Humphrey e ainda a big star Jennifer Jones. Mais Peter Lorre, Gina Lollobrigida, Robert Morley e botou atrás das câmeras Oswald Morris. Chegam todos na Itália prontos pra filmar. E descobrem que não há roteiro. A grana foi gasta com bebida, comida, hotel, jogo e mulheres. Huston chama um garoto de nome Truman Capote e juntos escrevem no hotel aquilo que será filmado no dia seguinte. O trabalho começa sem roteiro. Huston e Capote dão gargalhadas enquanto imaginam um bando de mentirosos tentando dar um golpe na Africa. Algo a ver com uranio. Bogart logo percebe que sua grana foi pro ralo. Briga com Huston e a amizade se desfaz. Os outros atores, sem terem posto dinheiro na coisa, aproveitam o sol italiano. O filme é lançado, a crítica odeia e o chama de lixo mal acabado e o público foge. Nos anos 80, três décadas depois, vira cult. É um dos meus 50 filmes favoritos.
   Demorou pra que eu gostasse dele. Só na quarta vez eu o aceitei. Na primeira achei-o chato. Na segunda incompreensível. Na terceira vi que era interessante. Na quarta me apaixonei. Ontem o revi. É uma  festa!
  Nada no filme é sério. Todos os personagens mentem uns para os outros. E Capote mais Huston mentem para os atores. A gente sente os dois rindo enquanto enrolam seus astros. É o mais malandro dos filmes. É sobre a mentira engraçada. É a alma de John Huston na tela.
  Três ladrões, Morley, Lorre e Ivor Barnard. Nunca no cinema houve um trio tão lamentável. Você ri olhando para eles. Lorre finge ser irlandês. Morley finge ser esperto. Ivor finge ser humano. Bogart é empregado deles. Finge ser Bogey. Jennifer mente o tempo todo. E finge para si mesma estar apaixonada por Bogey. Gina é a mulher de Bogey. Finge ser inglesa. E Jennifer tem um marido que finge ser rico. Pegue esses tipos e faça um roteiro. Minta para os atores. Minta para o produtor. Minta para o público que for ao cinema. E se divirta muito fazendo este carnaval em preto e branco.
  John Huston não foi o melhor diretor de cinema. Mas caramba! Não houve nenhum mais legal que ele.