JUDEUS RUSSOS, CATÓLICOS PAULISTAS, VITEBSKI E SP. CHAGALL LIDO AQUI.

   Talvez pelo fato de meus olhos serem muito mais refinados que meus ouvidos eu veja nas biografias dos pintores uma beleza maior que nas dos escritores. Começo a ler a biografia de Marc Chagall e imediatamente me apaixono pelo texto que leio. Fico bêbado com as palavras judaicas que descrevem o colorido da vida na cidade de Vitebske, em 1900. Reunidos dentro do império russo, na região que hoje é a Lituânia, a Ukrania, os judeus vivem sua vida que se pauta pelas datas da religião. Isso tudo é fascinante. A tribo que sobrevive a todas as tribos. A sujeira extrema dos pobres na ruas enlameadas, entre bichos e barracos de madeira, e o refinamento dos ricos, homens eruditos e mulheres que trabalham. O Chagall menino, bonito e mimado pela mãe dominadora, vive na baixa, bem baixa burguesia. A mãe é analfabeta, o pai trabalha como um animal de carga. As irmãs, muitas, são quase sombras. O menino Chagall ama a mãe e é correspondido em dobro. Um idilio. Tímido, ele fracassa na escola. Desenha bem. Estuda pintura. 
  Jovem, 18 anos, vai para São Petersburgo. Aguenta apenas um ano e meio lá. Sonha com comida. Dorme em um quarto imundo com seis outros. Divide cama com operário, pulgas e percevejos. Judeus não podem viver em Petersburgo. Ele é ilegal, sente medo. A cidade, construída sobre um pântano pelo czar Pedro, é uma joia de beleza colorida. Uma joia que enlouquece muitos. E por trás dessa beleza vive a favela. Vive o saudoso Chagall. 
  Ele volta a sua cidade e nela vê beleza. Chagall é dos primeiros artistas a perceber beleza na miséria. Sem folclorizar, ele dá a sujeira vida. Ele ama Gauguin, mas cria um modernismo único. Sem contato com Picasso e Matisse, Chagall cria um estilo que é só dele. Se Matisse é um fauve e Picasso cubista, Chagall é chagaliano. Ele vive revivendo cores e sombras de sua infancia. Na cidade feia onde nasceu ele guarda inspiração para toda a vida. É ainda 1909, e Marc Chagall, que lindo, viveria até 1985. Serão 98 anos de vida onde sua Vitebske jamais irá morrer. 
   Estou no trecho onde ele conhece Bella, a filha silenciosa de um rico joalheiro. Vejo as fotos de Bella. E recordo...
  Em junho de 1984 a TV Manchete, uma TV que queria ser chique, passou uma série chamada Conexão Internacional. Roberto D`'Avila viaja à St. Paul de Vence onde vive Chagall. Aos 97 anos ele dá uma entrevista que eu assisto. 1909-1984...Rússia - Brasil...No ano mais decisivo de minha vida eu vejo Chagall e fico emocionado. Após décadas ele parece um anjo.
  1966.
  Conheci também quintais imundos. Milhares de imigrantes europeus vinham para São Paulo e recriavam em suas casas o mundo onde haviam nascido. Nesses bairros de portugueses, espanhóis, italianos, turcos, libaneses, japoneses, judeus, poloneses, sempre havia quintais. Com galinhas, patos, coelhos, pombos, cabras, e às vezes até um porco. Videiras, laranjas, limões, tomates, alfaces, feijão. E rosas, rosas de toda cor. Ao lado dessa vida se tinha o sangue dos bichos sacrificados para serem assados. As tripas, os restos. As fezes que a gente pisava. Uma multidão de cheiros, de cores, de lixo, de coisas vivas, dos caramujos, ratos, sapos e pardais. Lama, porões e as velhinhas andando na rua com véu preto na cabeça. Esse universo de coisas fertilizam uma alma, criam espírito, enchem a cabeça de ideias. 
  Um garoto judeu nos cafundós da Rússia de 1900 pode então unir mãos a um garoto católico dos cafundós do terceiro mundo de 1966. E com mãos unidas vemos a morte de todo esse mundo. E usamos nossa memória e nossa vida para não esquecer. E nesse ato fertilizamos o agora. Alegramos a noite dura. E sorrimos dentro. 
  Entendo.