Lembro bem. Lembro do prazer que eu senti ao ler A ILHA DO TESOURO, de R.L. Stevenson pela primeira vez. Consigo ver o sol que iluminava as páginas e sentir o cheiro que o volume exalou quando livre do plástico que o aninhava. E esse prazer nascia da narrativa. Eu lia por causa de Jim, o personagem principal e não por causa de Stevenson. E eu estava lendo em Bristol e depois no mar e não em minha casa. A narrativa me levava a ler. Era a fé naquilo que é narrado. Eu não lia um autor escocês chamado Stevenson. Lia o que um garoto de Bristol me contava, Jim.
Esse é o prazer que reencontro em Lewis. Vamos tentar falar dessa obra imensa e magnífica. Li todos os sete livros. E digo, foi um tremendo prazer.
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA começaram a ser publicadas em 1950, na Inglaterra. Nessa altura Lewis tinha 50 anos e era um homem conhecido. Professor em Cambridge, tinha programa de rádio e publicara diversos livros. Seu interesse central era o cristianismo. Nárnia seria portanto um livro cristão? Com certeza. Mas mais que isso ele é platônico. Para Lewis nosso mundo racional é apenas uma possibilidade. Mundos dentro de mundos, quanto menor, quanto mais dentro das coisas maiores elas ficam. Tudo o que vemos são pontas de icebergs. Perceber que isso tudo foi escrito na casa ao lado daquela onde Wittgenstein vivia e nas imediações dos físicos que criaram a teoria quântica faz todo o sentido do mundo.
Logo se tornaram um sucesso e foram premiados. Como literatura infantil. E digo que uma das boas coisas de nosso tempo, 2015, é o fato de que a literatura infantil, assim como o cinema de animação, tem deixado seu gueto de lado. Existe boa e má literatura, não importa se para meninos, velhos, crentes ou ateus. Não importa se escrita por mulheres ou por indios. A literatura infantil tem duas coisas que a literatura ""mais séria"" tem temido tocar: a criatividade despudorada e a crença naquilo que se narra. Lewis acredita no que escreve.
Será preciso falar da história? Do portal que une mundos? Um desses portais é um armário, outro é uma estação de trem ( Harry Potter bebeu muito aqui. Sem Lewis não haveria Harry. ) Mas pode ser um muro de jardim ou uma luz. Esse outro mundo é mais real que nosso mundo. Esse outro mundo é o mundo que suspeitamos existir. Lewis o descreve para nós. Nele há uma luta. Bem e mal guerreiam. É um mundo onde o bem é o bem, e o mal é o mal. Maniqueísta? Não bem isso, pois há gente má que se torna boa. Mas a luta acontece.
Nárnia tem muito de paraíso ecológico. Árvores têm alma e alguns animais falam ( não todos ). As crianças de nosso mundo, que cruzam o portal, vão lutar pelo bem, passar por aventuras, crescer e voltar para cá. E há Aslam.
Aslam é um enorme leão. Ele criou Nárnia. E ele cuida do sentido das coisas. Mesmo que a vida pareça não fazer sentido, tudo se revela depois de um tempo. Visto à distância, cada um tem o que merece. Ou não. Pois Aslam só intervém em momentos decisivos. Sim, podemos dizer que Aslam é Jesus Cristo. Ele chega a morrer e retornar. E é admirável o modo como Lewis encaixa esses acontecimentos. Há uma lógica perfeita nessa fantasia. A crença na fantasia faz com que a tal realidade perca seu valor. Nosso mundo, lendo os livros, parece se tornar pouco importante. O mundo decisivo está aqui, mas não é o que vemos. Cada ato nosso repercute no universo mais real, no mundo de Aslam. É uma responsabilidade grande. E é isso que amadurece as crianças.
O primeiro livro, na ordem em que Lewis desejou que fossem lidos, O SOBRINHO DO MAGO, narra a criação do mundo de Nárnia. Aslam cria todo esse mundo e Lewis descreve, com muita simplicidade, essas imagens. Há uma feiticeira do mal, as primeiras crianças da Terra, e a primeira explicação sobre a relação temporal entre os dois mundos. Mas, devo dizer, este talvez seja o mais fraco de todos os sete. É bom, mas jamais encanta.
O segundo livro é o mais famoso, O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Este sim, completamente viciante em sua maravilha. Crianças, Lucia, Pedro, Susana e Edmundo, são transportados para Nárnia. Edmundo será seduzido pelo mal, Lucia será a mais poderosa em relação ao bem. Suspense e poesia se mesclam criando uma fantasia inebriante. Jamais sabemos se o bem poderá prevalecer. É uma saga que abre nossa mente para a criatividade. E é um belo livro.
O terceiro se chama O CAVALO E SEU MENINO. É um dos meus favoritos. ( Tenho dois como favoritos ). Fala de fuga, travessia de um deserto, medo e sofrimento e tem um sabor de Mil e Uma Noites que me deixou completamente apaixonado. Acima de tudo, é este o mais aventuroso, o que esbanja mais ação e tem personagens muito bem descritos. O tipo do livro que voce sabe que um dia vai ler outra vez. E talvez com mais prazer ainda. O sol, a sede, a areia, voce vive dentro dessas paisagens e desses estados. Fantástico.
PRÍNCIPE CASPIAN é uma delicia. Narrada por um anão, é cheia de mistério. Muitas lutas, muitas reviravoltas e talvez seja a menos simbólica dentre todas as histórias. Caspian é um grande personagem! Como voce já deve ter notado, cada livro acrescenta personagens. Cada livro se passa em uma época diferente.
A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA é o quinto livro e é perfeito. Empatado com O CAVALO E SEU MENINO, é meu favorito. Num navio a remos e velas, partem os aventureiros em busca do fim do mundo. Este é o volume estilo ""história de pirata"". Personagens apaixonantes: RipChip é um rato que luta como um herói de Walter Scott. Ilhas de horror, de sedução, decepções, muitas surpresas. Lewis está aqui em pleno dominio. Um livro para guardar na alma. Sensacional.
O sexto livro é de todos o mais triste e o mais trágico. A CADEIRA DE PRATA traz muita melancolia à saga e um sabor cristão bastante explícito. O sofrimento se acumula. É um bom livro, mas após tanta maravilha ele nos dá um travo azedo. Recomendo a quem for ler toda a saga que não faça o que eu fiz. Que leia os cinco primeiros e espere alguns meses para ler os dois últimos. O choque será menor.
O último livro se chama A ÚLTIMA BATALHA e é o mais simples. Nárnia acaba, o mundo morre e Aslam surge para....Não conto o final. É um livro bonito, arremata toda a saga em tom de beleza, mas o auge de NÁRNIA está nos livros dois, três, quatro e cinco.
Termino este texto citando uma fala de A CADEIRA DE PRATA. Fala que explica toda a obra de Lewis.
...estou do lado de Aslam, mesmo que Aslam não exista. Quero viver como um narniano, mesmo que NÁRNIA não exista. Assim, agradecendo esta ceia, agradecendo a estes dois cavalheiros e a esta dama, estamos de saída para os mundos da escuridão. Passaremos o resto de nossas vidas procurando o mundo de cima, o mundo de Aslam.
Se a vida real, a vida da Terra, é tão chata como voces dizem, prefiro este mundo de ilusão.
Essa é toda a crença de Lewis. E diz ele que essa é toda a crença cristã. Apostar na fantasia crendo ser a fantasia a verdade final.
Há modo melhor de viver?
Esse é o prazer que reencontro em Lewis. Vamos tentar falar dessa obra imensa e magnífica. Li todos os sete livros. E digo, foi um tremendo prazer.
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA começaram a ser publicadas em 1950, na Inglaterra. Nessa altura Lewis tinha 50 anos e era um homem conhecido. Professor em Cambridge, tinha programa de rádio e publicara diversos livros. Seu interesse central era o cristianismo. Nárnia seria portanto um livro cristão? Com certeza. Mas mais que isso ele é platônico. Para Lewis nosso mundo racional é apenas uma possibilidade. Mundos dentro de mundos, quanto menor, quanto mais dentro das coisas maiores elas ficam. Tudo o que vemos são pontas de icebergs. Perceber que isso tudo foi escrito na casa ao lado daquela onde Wittgenstein vivia e nas imediações dos físicos que criaram a teoria quântica faz todo o sentido do mundo.
Logo se tornaram um sucesso e foram premiados. Como literatura infantil. E digo que uma das boas coisas de nosso tempo, 2015, é o fato de que a literatura infantil, assim como o cinema de animação, tem deixado seu gueto de lado. Existe boa e má literatura, não importa se para meninos, velhos, crentes ou ateus. Não importa se escrita por mulheres ou por indios. A literatura infantil tem duas coisas que a literatura ""mais séria"" tem temido tocar: a criatividade despudorada e a crença naquilo que se narra. Lewis acredita no que escreve.
Será preciso falar da história? Do portal que une mundos? Um desses portais é um armário, outro é uma estação de trem ( Harry Potter bebeu muito aqui. Sem Lewis não haveria Harry. ) Mas pode ser um muro de jardim ou uma luz. Esse outro mundo é mais real que nosso mundo. Esse outro mundo é o mundo que suspeitamos existir. Lewis o descreve para nós. Nele há uma luta. Bem e mal guerreiam. É um mundo onde o bem é o bem, e o mal é o mal. Maniqueísta? Não bem isso, pois há gente má que se torna boa. Mas a luta acontece.
Nárnia tem muito de paraíso ecológico. Árvores têm alma e alguns animais falam ( não todos ). As crianças de nosso mundo, que cruzam o portal, vão lutar pelo bem, passar por aventuras, crescer e voltar para cá. E há Aslam.
Aslam é um enorme leão. Ele criou Nárnia. E ele cuida do sentido das coisas. Mesmo que a vida pareça não fazer sentido, tudo se revela depois de um tempo. Visto à distância, cada um tem o que merece. Ou não. Pois Aslam só intervém em momentos decisivos. Sim, podemos dizer que Aslam é Jesus Cristo. Ele chega a morrer e retornar. E é admirável o modo como Lewis encaixa esses acontecimentos. Há uma lógica perfeita nessa fantasia. A crença na fantasia faz com que a tal realidade perca seu valor. Nosso mundo, lendo os livros, parece se tornar pouco importante. O mundo decisivo está aqui, mas não é o que vemos. Cada ato nosso repercute no universo mais real, no mundo de Aslam. É uma responsabilidade grande. E é isso que amadurece as crianças.
O primeiro livro, na ordem em que Lewis desejou que fossem lidos, O SOBRINHO DO MAGO, narra a criação do mundo de Nárnia. Aslam cria todo esse mundo e Lewis descreve, com muita simplicidade, essas imagens. Há uma feiticeira do mal, as primeiras crianças da Terra, e a primeira explicação sobre a relação temporal entre os dois mundos. Mas, devo dizer, este talvez seja o mais fraco de todos os sete. É bom, mas jamais encanta.
O segundo livro é o mais famoso, O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Este sim, completamente viciante em sua maravilha. Crianças, Lucia, Pedro, Susana e Edmundo, são transportados para Nárnia. Edmundo será seduzido pelo mal, Lucia será a mais poderosa em relação ao bem. Suspense e poesia se mesclam criando uma fantasia inebriante. Jamais sabemos se o bem poderá prevalecer. É uma saga que abre nossa mente para a criatividade. E é um belo livro.
O terceiro se chama O CAVALO E SEU MENINO. É um dos meus favoritos. ( Tenho dois como favoritos ). Fala de fuga, travessia de um deserto, medo e sofrimento e tem um sabor de Mil e Uma Noites que me deixou completamente apaixonado. Acima de tudo, é este o mais aventuroso, o que esbanja mais ação e tem personagens muito bem descritos. O tipo do livro que voce sabe que um dia vai ler outra vez. E talvez com mais prazer ainda. O sol, a sede, a areia, voce vive dentro dessas paisagens e desses estados. Fantástico.
PRÍNCIPE CASPIAN é uma delicia. Narrada por um anão, é cheia de mistério. Muitas lutas, muitas reviravoltas e talvez seja a menos simbólica dentre todas as histórias. Caspian é um grande personagem! Como voce já deve ter notado, cada livro acrescenta personagens. Cada livro se passa em uma época diferente.
A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA é o quinto livro e é perfeito. Empatado com O CAVALO E SEU MENINO, é meu favorito. Num navio a remos e velas, partem os aventureiros em busca do fim do mundo. Este é o volume estilo ""história de pirata"". Personagens apaixonantes: RipChip é um rato que luta como um herói de Walter Scott. Ilhas de horror, de sedução, decepções, muitas surpresas. Lewis está aqui em pleno dominio. Um livro para guardar na alma. Sensacional.
O sexto livro é de todos o mais triste e o mais trágico. A CADEIRA DE PRATA traz muita melancolia à saga e um sabor cristão bastante explícito. O sofrimento se acumula. É um bom livro, mas após tanta maravilha ele nos dá um travo azedo. Recomendo a quem for ler toda a saga que não faça o que eu fiz. Que leia os cinco primeiros e espere alguns meses para ler os dois últimos. O choque será menor.
O último livro se chama A ÚLTIMA BATALHA e é o mais simples. Nárnia acaba, o mundo morre e Aslam surge para....Não conto o final. É um livro bonito, arremata toda a saga em tom de beleza, mas o auge de NÁRNIA está nos livros dois, três, quatro e cinco.
Termino este texto citando uma fala de A CADEIRA DE PRATA. Fala que explica toda a obra de Lewis.
...estou do lado de Aslam, mesmo que Aslam não exista. Quero viver como um narniano, mesmo que NÁRNIA não exista. Assim, agradecendo esta ceia, agradecendo a estes dois cavalheiros e a esta dama, estamos de saída para os mundos da escuridão. Passaremos o resto de nossas vidas procurando o mundo de cima, o mundo de Aslam.
Se a vida real, a vida da Terra, é tão chata como voces dizem, prefiro este mundo de ilusão.
Essa é toda a crença de Lewis. E diz ele que essa é toda a crença cristã. Apostar na fantasia crendo ser a fantasia a verdade final.
Há modo melhor de viver?