LINCOLN

   Leio hoje que o século XX não mereceu o século XIX. Eu jamais havia pensado isso. Que o século XIX preparou o mundo para ser um lugar muito melhor. Que o ano de 1900 prometia paz, progresso e cada vez mais justiça. O século XIX desenvolveu a ciência, trouxe a ideia de democracia de volta às mentes, popularizou as artes, e acabou com a escravidão. Mas meu século, o XX, destruiu quase todas essas ideias. Tudo o que os sonhadores do século anterior sonharam, o XX desfez.
  Lincoln não é um grande filme. Spielberg depois de velho resolveu ser John Ford. Mas ele não pode ser Ford porque o mundo onde Ford foi formado foi o idealista mundo do século XIX. Mas Spielberg tenta e devo dizer que pelo menos nesta época de cinismo e de negativismo blasé, Spielberg insiste em nos oferecer humanismo. O filme é digno, solene, seco e não faz concessões. Fala do tempo em que os homens faziam politica.
   Politica...Voce pode não acreditar mas a politica já foi a coisa mais importante da vida. Hoje ela não existe. Não se faz politica, se administra um banco. A economia tomou seu lugar. Porque politica não é pensar em termos de lucro e divida. Politica é ter projetos, pensar o futuro, acreditar em ideologias e saber fazer aliados e calar inimigos. Não há um só lider nacional que pense em termos politicos hoje. Pensam em conseguir lucros e assim garantir mandatos. São gerentes de bancos.
   Lincoln nos mostra a politica. E recordo de outra coincidência. Não faz mais de dois dias que li que o sexo tomou o lugar da politica na vida dos jovens. Nenhum jovem pensa em politica e isso é bom para quem odeia a politica mas ama o poder. Pois Lincoln amava a politica.
   Cheguei a acompanhar o último politico grande vivo: Maggie Thatcher foi pura politica. Uma raposa, uma gênial mistura de crueldade e de visão a longo prazo. Depois dela...vácuo.
   Terá a geração teen a consciência da importância histórica do que lá é recordado? De que enquanto nós aqui pagávamos o mico de ter uma familia real de sangue europeu, os EUA, na vanguarda, continuavam a construir seu projeto de nação? ( Que foi traído no século XX ). Podemos odiar os yankees, mas é a verdade, os EUA do século XIX são um projeto racional, duro, teimoso de nação. O filme mostra isso. Se Lincoln errasse o país negaria seu destino, ele não errou. O erro viria em 1898 com o começo do imperialismo nas Filipinas e Porto Rico. Como dizia Gore Vidal, a partir daí os militares passariam a ser o poder do país. No tempo de Lincoln não. Há o projeto civil, republicano e representativo. Um projeto que ousa, em 1864, dar a liberdade aos negros africanos.
   Spielberg apenas filma, nada inventa. O filme não tem uma grande cena. Daniel Day-Lewis está pegando todos os grandes papéis. Além de ser grande ator, tem concorrentes fracos. Quem mais poderia ser Lincoln? Sean Penn? Não temos mais Gregory Peck, Gary Cooper ou Henry Fonda. Esse tipo de ator, digno, viril, elegante, de voz poderosa, ponderado, desapareceu. Então quando precisamos desse tipo de ator temos Daniel. E Daniel. Ele está muito bem. Assim como Sally Field, melhor que ele, menos composta, mais quente que o inglês. E o grande Tommy Lee, cada vez melhor ator, que na verdade é o que mais me agradou, fazendo uma interpretação natural, matreira, cheia de nuances.
   Não é um grande filme. Longe disso. Espertamente Spielberg fez o filme certo na hora certa. O tema é muito bom. ( O roteiro é de Tony Kutchner. É aquele Tony, de Angels in America? ).
   Na verdade Cavalo de Guerra, como filme, me agradou bem mais. Mas todos devem ver este filme. Nem que seja para saber que um dia se fez politica no mundo. Que ela não é apenas isso que agora vemos, a administração de dinheiro e de negócios. Foi uma ideia, um plano e uma visão.
   Tá dito.