É PRECISO APRENDER A VER?

    Crianças sabem ver. Olham.
   O vidro gordo de Toddy. A cor marrom e a tampa de lata. O rótulo com a cara de um menino que ri. As letras que dão voltas e curvas. A redondez da embalagem pesada.
   O tom de azul de uma ilustração do Peter Pan. Um azul profundo dos céus noturnos de uma Londres que nunca existiu. O azul mais profundo e salpicado de luzes brancas e de pontos dourados. O azul infinito, o mais lindo tom da mais linda noite. Cor que se esparrama das folhas de papel perfumadas de novidade para minhas mãos.
   O formato das bolachas doces em forma de bichos. O desenho sinuoso da girafa e a forma compacta do rinoceronte. O leão que parece rugir e a hiena que é feia. A cor sem graça das bolachas e a dureza da forma simples. Algumas são mais escuras, e essas são as melhores.
   Melhor que ver as imagens na tela de TV é ver o belo móvel de madeira amarela. As pernas longas e finas, pretas, com pés dourados. Os botões redondos, de madeira preta e que são enfeitados com metal. A tela de vidro verde, arredondada, que reflete o meu rosto. O brilho da madeira lustrada, com cheiro de lustra-móveis Shell. E detrás dela um mundo de segredos. Uma placa de papelão e entre as frestas posso ver as válvulas acesas. Elas brilham amarelas, fios se aquecem e fazem um zumbido discreto. Será dentro dessas válvulas que vivem os homens que aparecem na TV?
   As paredes com sua geografia de linhas pintadas de azul claro. Lá no alto há uma moldura de madeira que corre por todo o quarto. O lustre é um imenso guarda-chuva de ferro, cheio de furinhos, azul. A parede á áspera e vejo uma aranha minúscula passear. As cortinas voam com a brisa da manhã preguiçosa.
   Um cesto de roupas velhas. De palha. Dentro dele tem paletós antigos e panos vários. E lá mora um ratinho branco que nunca vi. Abro o cesto e me enfio lá dentro. Nele exsitem coisas para se ver que nunca ninguém viu. E eu quero ver o que nunca ninguém viu. Dentro.
   Cada flor guarda seu inseto. O vermelho faz "zuuummmm" e uma doçura que não provo se esparrama para fora. Por entre as folhas verdes o sol pinta círculos que tocam minha cara. No chão as formigas correm para fugir do tempo. Joaninhas nas folhas, marimbondos voam. A terra úmida tem uma confusão de folhas perdidas.
   Em cada pedra há uma vida.
   Os pássaros voam em círculos que toda tarde são os mesmos. E toda tarde eu observo e vejo. E toda tarde é um todo. Conheço cada um deles. O que tomba para a direita, o que tenta ir à frente, aquele que pia mais alto. As nuvens tem um deus que me olha. Isso eu sei e ninguém me disse.
   Depois eu pedi essa nuvem pra mim e tirei o deus de lá.
   .......Então a gente para de ver.
   E hoje eu mal sei como é seu rosto.
   A arte nada mais é que a tentativa de se voltar a ver. A poesia é a lingua da visão.
   Frase de Picasso: "Passei a vida inteira tentando reaprender a ver como era quando criança".
   E eu? Tenho passado as últimas três décadas tentando ver como via antes......
   A janela do porão era suja e quebrada. Ficava ao rés do chão de quem passava fora. No vidro imundo e quebrado uma teia de aranha. Ela era vermelha, redonda, e me dava medo. Mas a vontade de ver era maior. A teia parecia pó e carregava um monte de insetos já secos. Tudo naquele cenário parecia úmido. No beiral da janela tinha um dedal. E uma bolinha de gude. Quando chovia a aranha sumia. Eu pensava que ela se encolhia até ficar um nada. Um nada que morava lá. A chuva batia no vidro e algumas gotas entravam no porão. Era um lugar precário. Um rato passou lá fora um dia. Olhou pro vidro e correu. Um dia pintaram tudo.